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O HIP-HOP DAS MINAS

2.6. Os significados atribuídos: o rap e os grupos

2.6.1 A Escolha do Estilo

Os depoimentos dessas jovens não são muito diferentes dos depoimentos de jovens descritos em pesquisas realizadas pelo hip-hop. Os relatos demonstram que a escolha pelo estilo veio tanto por uma identificação com a proposta do movimento quanto por uma afinidade pelo ritmo musical. As jovens afirmaram gostar do ritmo e se identificar com o

conteúdo das letras de rap que retratavam questões muito próximas às suas realidades de jovens pobres.

A identificação com a discussão da questão étnica-racial trazida pelo movimento também foi um fator fundamental para a escolha delas. Em um dos relatos, foi possível observar a importância do hip-hop ser um movimento com a predominância da presença de pessoas negras, com uma proposta de reivindicação de direitos e de denúncia contra a violência social e racial vivenciada por essa população. Nesse sentido, houve um processo de reconhecimento e de identificação com essa discussão:

O hip-hop é uma cultura negra e por mais que o pessoal insista aí, de vez em quando, em dizer que cultura não tem dono, que eu acho que é um grande equívoco, para conseguir roubar mesmo alguns elementos que são significativos, eu acho que essa questão dessa linguagem, de ser uma linguagem negra, que é acessível, que mexe com o corpo, mas que também mexe com a mente, por mais que a sociedade às vezes diga, ah, aquele cara é maconheiro, aquela menina é maloqueira”, pra gente do hip-hop, ser do hip-hop é uma coisa muito positiva, muito significativa pra nós, muito forte (sic) 145.

Para essas jovens, ser uma rapper representa a afirmação de uma identidade étnico- racial que é negada e omitida pela sociedade e por algumas instituições sociais como a escola. Representa participar de um movimento em que a questão racial, por ser valorizada, possibilita a construção de um outro olhar e de um outro discurso, produzido sob a perspectiva do sujeito discriminado que, justamente por isso, compreende os sentidos dessa discriminação para sua condição de jovem, negra e rapper. Nesse âmbito, como nos mostra Gomes (1996b), o hip-hop possibilita aos jovens negros a construção de uma história da cultura negra, resgatando sua positividade, sua beleza e sua presença na constituição de nossa formação cultural, como se nota no depoimento a seguir:

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(...) A minha estadia nesse mundo assim, ela é completamente marcada pelo hip-

hop. (...) Mudou demais assim. Não que seja outra, mas que qualificou demais a

minha presença nesse mundo, eu nem tenho palavras. (...) Ela denegriu minha passagem pelo mundo assim, ficou mais negra mesmo, em tudo. Olha, se você pegar umas fotos minhas assim de uns anos pra cá e de hoje, visualmente, tem uma diferença assim. Visualmente tem uma diferença, de pensamento tem uma diferença (sic) 146.

Para essas jovens, pertencer ao hip-hop significa adotar um posicionamento, uma postura de coerência em suas atitudes, “entre o que você vive e o que você fala”. Nessa linha de leitura, é possível observar que o envolvimento com o estilo revela-se mais do que uma preferência musical. A identificação com a proposta do movimento envolve um conjunto de escolhas, de ideais e de atitudes que interferem nas práticas e nas relações sociais estabelecidas, assim como na construção das identidades dessas jovens. É o que pode-se constatar no relato de uma delas:

Eu tenho certeza se eu não tivesse no hip-hop, eu estaria reproduzindo o que a sociedade coloca pra mim. Igual eu falei, o hip-hop pra mim é um estilo de vida mesmo, eu incorporo ele em qualquer lugar. Igual, agora, tem pouco tempo que eu estou no meu serviço. No pouco tempo que eu trabalho lá, eu já assim, eu já mudo, já estou colocando, tudo o que eu faço eu coloco no meu serviço. (...) E o

hip-hop me ajudou a ter essa outra visão assim, entendeu? E é isso. Pra mim, é o

meu estilo de vida, é o meu comportamento como indivíduo e meu comportamento com os outros. É passar o que eu sei para as outras pessoas; é fazer com que outras pessoas estejam abertas à cultura também (sic) 147.

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Apesar de haver certas variações em relação ao grau de importância ou ao significado, é possível encontrar uma unidade no que diz respeito à compreensão do hip- hop como um estilo de vida. Tomando como orientação a discussão proposta por Giddens

(2002), compreende-se “estilo de vida” como um conjunto de práticas sociais que o indivíduo adota não somente para preencher necessidades utilitárias, mas também para materializar a narrativa particular de sua auto-identidade. Nessa perspectiva, os estilos de vida são concebidos como práticas rotinizadas incorporadas em hábitos de vestir, comer,

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Nadira (entrevista, informação verbal).

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modos de agir e etc. O autor nos explica que, na vida social contemporânea, a noção de estilo de vida assume um significado particular. Nesse contexto social, o re-ordenamento do tempo e do espaço induz a reconstituição da vida diária em termos do jogo dialético entre o local e o global, provocando mudanças maciças nas formas de representação do eu. Isso porque, esse re-ordenamento, confronta o indivíduo com uma pluralidade de opções, tornando inevitável a escolha de um estilo de vida como modo de expressão pessoal e de distinção social.

Em outras palavras, cada decisão tomada durante o dia, sobre o que comer, o que vestir, com quem se encontrar pode ser considerada uma decisão sobre como agir e também sobre quem ser. Entretanto, essa multiplicidade de escolhas não implica uma igualdade nas possibilidades de acesso nem tampouco uma compreensão da diversidade de alternativas possíveis para as decisões. Também não significa que a noção de estilo de vida só se aplique a determinados segmentos sociais com condições materiais privilegiadas, pois o termo também é válido em condições de severa limitação material. No entanto, o autor pontua que divisões de classe e outras linhas fundamentais de desigualdade, como as que dizem respeito à gênero ou à etnicidade, podem ser aspectos limitantes às experiências de auto-realização e às relações pessoais.

Um estilo de vida, ao envolver um conjunto de hábitos e de orientações, apresenta uma certa unidade capaz de ligar as opções em um padrão mais ou menos ordenado. Assim, o sujeito que está comprometido com um determinado estilo de vida necessariamente compreende várias alternativas como “inadequadas” a ele. Além disso, a seleção ou criação de estilos de vida é influenciada por pressões de grupo e pela visibilidade de modelos, assim como pelas circunstâncias socioeconômicas. Dessa forma, como nos mostra Herschmann (2000), aquele que expressa o seu gosto, evidenciando o seu estilo, classifica e

é classificado, sendo o estilo inseparável de seus modos de vida. O autor recorre ao esquema teórico formulado por Bourdieu que articula a interiorização das condições sócio- históricas à exteriorização das preferências pessoais. Em outras palavras, os estilos “revelam os habitus de cada grupo, fração de classe ou classe social” 148. No entanto, o autor adverte que apesar de o esquema bourdiano ser útil para o estudo das sociedades contemporâneas, é preciso considerar suas limitações, pois no contexto social cuja dinâmica cultural opera a partir de múltiplas referências, a noção de habitus pode restringir os agentes sociais a fronteiras delimitadas. Nesse sentido, Herschmann considera que “os estilos de vida juvenis em constante construção, nos quais linguagem, vestuário, músicas, danças, discursos e trajetos urbanos formam um universo cultural no qual se desenrolam sociabilidades, definem-se trajetórias, constroem-se sentidos e territorialidades”.149 A proposição sinaliza na mesma direção do depoimento do jovem entrevistado:

(...) através do hip-hop, eu consegui ter muita auto-estima, sabe?! Por que, olha só, eu num, eu era uma pessoa que, tipo, tinha sonhos, mas não acreditava tanto em meus sonhos, né, e o hip-hop fez eu acreditar naquilo que eu queria, entendeu?! Fez eu acreditar naquilo que eu queria e correr atrás daquilo que eu queria, entendeu?! Então, através disso, eu tive um pouco mais de motivos, motivação de vida assim, motivação das coisas em tudo assim na minha vida, entende?! Então, eu passei a ter um pouco mais de auto-estima, sabe?! Um pouco mais de razão de viver, entendeu?! (sic) 150

Integrantes de ambos os grupos acreditam que o estilo adotado lhes permitiu a construção e a expressão de um discurso próprio. No Os Mensageiros, os jovens ressaltaram a possibilidade de transmitirem, por meio do rap, seus valores, suas posturas e suas crenças religiosas. Joana, ao explicitar o significado do estilo, utilizou-se de termos vagos e de alguns conceitos já previamente consolidados no movimento, como, por

136 148 HERSCHMANN, 2000, p. 61. 149 HERSCHMANN, 2000. p. 63. 150

exemplo, a compreensão de que o hip-hop é fazer revolução. Embora não fique claro o que a jovem compreenda por “revolução”, percebe-se que esse termo aparece como uma elaboração teórica utópica. Pois, ao explicar o que seria essa revolução, a jovem resignifica esse termo de acordo com os seus preceitos religiosos:

Ah, pra mim, eu acho assim... Meu Deus, eu não tenho nem palavras para falar exatamente o que significa. Uma porque eu amo demais o hip-hop, eu não trocaria o hip-hop por nada. Através dele, eu sei que eu faço muita coisa boa que incentiva ou até mesmo tirar alguém da vida ruim e através dele eu faço muita coisa boa e ele pra mim significa é... revolução, é..., salva, salvador de vidas, alguma coisa assim. Pra mim, significa meio que isso, pelo menos o hip-hop gospel, né. (sic) 151.