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O desafio do cotidiano: a vivência do tempo.

A ARTE DE SER: JOVEM, MULHER, NEGRA E

3.5 Os múltiplos tempos da experiência cotidiana

3.5.2 O desafio do cotidiano: a vivência do tempo.

Em suas experiências temporais, as jovens combinam vários tempos e rítmicas peculiares a suas práticas sociais e vivências cotidianas, bem como expressam os problemas advindos da variedade e da descontinuidade dos tempos por elas vivenciados na vida contemporânea. Nande, por exemplo, explicita a dificuldade de administrar os tempos de suas diversas experiências. Sua vivência temporal diária divide-se no tempo do grupo As Revolucionárias do Rap, no tempo destinado às atividades domésticas e familiares e no tempo de atuação como artesã e educadora social. A sobrecarga de tarefas em seu cotidiano a impede de realizar algumas projeções e de vivenciar, de uma maneira mais prazerosa, o tempo de que dispõe. Ela vivencia a dificuldade comum aos atores sociais das sociedades contemporâneas de conciliar o amplo campo das possibilidades com suas experiências cotidianas. Diante da necessidade de escolher entre tantas possibilidades, é inevitável o sentimento de incerteza sobre as escolhas e a sensação de estar “deixando algo para trás.”248 No entanto, como nos lembra Giddens (2002), falar de uma multiplicidade de escolhas não significa afirmar que todas estejam

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igualmente abertas a todas pessoas. Isso porque a disponibilidade das opções depende do contexto social e histórico-concreto no qual os sujeitos se encontram.

O relato de Nande evidencia os limites presentes em suas possibilidades de escolha. A busca pelo aprimoramento profissional aliada à necessidade do sustento familiar, a impede de vivenciar o desejo de cursar a faculdade. Frente a um contexto repleto de limitações, Nande, assim como as demais jovens, nem sempre pode ou tem a oportunidade de escolher. Contudo, os limites impostos não a impedem de vivenciar suas práticas cotidianas, como ela mesmo nos diz:

Então, eu faço pouco lazer, assim. (...). Hoje em dia, eu consigo pouco ter grana assim para essas coisas. Às vezes, a gente ganha cortesia para peça de teatro, porque eu ainda conheço algumas pessoas de teatro. Mas, por exemplo, cinema, a gente tinha combinado. Teve um dia que a gente até tava com a grana, mas acabou mudando e fizemos outra coisa. Mas são poucas vezes que a gente pode fazer, isso porque o dinheiro não dá, não dá, o dinheiro é sempre muito contadinho. É assim, para garantir a alimentação, sempre o básico assim, pagar as contas, né? e só. Quase não dá assim para lazer. Realmente, não dá. Então, a gente assim, às vezes dá para ir. (...) Então, por exemplo, uma coisa que eu passei a fazer todo mês, eu compro um dvd que eu consegui há pouco tempo comprar agora um dvd, graças a Deus. (...) Então, agora não deixa de ser uma opção também, né? Uma coisa prazerosa em casa. Aí, por exemplo, eu compro todo mês um filme,de 1 a 2 filmes assim, nem que seja desses da turma mais barata, produção alternativa que tem pela cidade. Aí, eu compro, a gente vê e tal. Eu faço umas coisas assim. Passei a comprar, lá em casa eu comprei vários joguinhos: xadrez, baralho, várias coisas assim. (...) Aí, às vezes a gente joga um baralho, joga um xadrez, uma coisa assim que eu ainda to aprendendo. (...) Mas assim, grana para lazer, eu sempre busco essas coisas alternativas mesmo, porque dinheiro para lazer, gostaria de ter, caminho e busco na minha vida, mas ainda não deu. (sic)249

Núbia também se vê obrigada a organizar, a dividir e administrar sua experiência do tempo, contemplando, principalmente, as atividades do trabalho, do grupo e do curso pré-vestibular que freqüenta. Quando questionada qual o tempo destinado para a

vivência do namoro, ela relata:

Quase nenhum (RISO). Já tem, vai fazer quase um mês que eu não via ele por causa do tempo assim. Então é, é entre uma reunião e outra e no encontro das mesmas reuniões que eu com ele tenho assim. Mas é, tempo, tempo mesmo assim, a gente não tem quase nenhum, porque de quinze em quinze dias, a gente tem aula de técnica vocal, a gente ensaia nos outros finais de

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semana, tem reunião no outro dia, domingo à noite, tudo, todos os dias, todo o horário ou eu estou trabalhando ou estou estudando ou estou reunida, fazendo reunião.(sic)250

No entanto, Núbia explica que essa sobrecarga de tarefas em seu dia a dia não a impede de vivenciar práticas de lazer, e, assim, ela formula a importância de vivenciá- las:

Então, acho que é isso porque se a gente não fizer isso, acho que a gente vai pirar, nós vamos pirar. Eu vou chegar nos meus quarentas anos neurada e falar “nó, eu não fiz nada na minha vida, não me diverti nada”. Nos meus momentos de lazer é isso, eu gosto de fazer festa, de ir pra casa dos amigos, mesmo que não tenha nada, a gente só fica lá despreocupada, batendo papo, mas eu gosto de fazer isso, estar sempre reunindo com os amigos (sic).251

Em relação à vivência do tempo em família, a jovem destaca que quase não encontra com seus familiares porque os tempos pessoais não coincidem. É possível notar que a experiência temporal dessa jovem, assim como das demais, envolve uma combinação de tempos que ela precisa costurar. Porém, nessa articulação, há uma hierarquia ou uma predominância de tempos, ou seja, nem todas as suas temporalidades são vivenciadas com a mesma intensidade ou com a mesma importância. Nesse sentido, como nos explica Teixeira (1999), a experiência do tempo para essas jovens é um trabalho, no qual articulam, combinam e administram as várias temporalidades implicadas em suas diversas atividades e vivências.

O cotidiano de Nadira também pode ser traduzido a partir de sua sobrecarga de tarefas. Além de seu trabalho no grupo, a jovem dedica seu tempo às suas atividades como assessora municipal de juventude, como integrante de outros coletivos, como o Hip-Hop Chama, e como estudante do curso de Psicologia. Ela confessa sua dificuldade

de organizar, administrar e, mais importante, significar seus tempos cotidianos. Fica evidente seu conflito em relação aos imperativos temporais incorporados nos

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Núbia, (entrevista,informação verbal).

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calendários, nos horários e nas programações próprios da instituição acadêmica, os quais nem sempre são compatíveis com suas outras dinâmicas temporais e, também, com seus desejos e necessidades.

A esse respeito, Melucci (2004) nos explica que o tempo, devido às constantes mudanças da modernidade, torna-se múltiplo e descontínuo, pois implica a passagem de uma rede social a outra, de um universo de experiência a outro e de uma linguagem de códigos de um determinado território a espaços sociais semântica e afetivamente distintos. Como conseqüência, aumenta nossa dificuldade de transferir um mesmo modelo de ação de um tempo para outro. Além disso, nem sempre podemos contar com nossas habilidades adquiridas para resolver novos problemas. É justamente o que ocorre com Nadira. A jovem expressa sua dificuldade de transpor seu modelo de ação de sua vivência temporal nos movimentos sociais para sua vivência temporal na instituição acadêmica. Ali, suas delimitações temporais são rígidas e construídas visando à homogeneidade e à uniformidade. Os tempos são definidos, divididos e fragmentados. Trata-se de uma vivência do tempo previamente demarcada, que não necessariamente coincide com outras formas de vivências pessoais de seu tempo cotidiano. Para vivenciar esse conflito, a jovem destaca o papel do grupo, evidenciando a contribuição do “outro” na construção de nossas referências.

Em relação à experiência cotidiana do tempo, nota-se uma predominância da experiência temporal na militância política. Sua atuação, como militante, é tão intensa que se confunde ou converge com seu trabalho e com sua atuação na Organização As Revolucionárias do Rap. É o que se pode perceber em seu relato:

(...) Eu acordo cedinho, venho pro serviço, que era na Coordenadoria de Juventude e que agora é no Conselho Municipal de Juventude, né? que eu sou assessora municipal de juventude. (...) Eu fico aqui (coordenadoria) o dia todo e, como aqui não tem uma estrutura adequada ainda, então eu tenho que ir em outros lugares pra imprimir, pra usar a internet e tal e vou acompanhar algumas reuniões. (...) E, assim, eu acompanho algumas coisas do As