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O AMBIENTE COMO LUGAR ONDE O POLÍTICO PODE SURGIR

10. A crise ambiental como resultado de uma crise civilizacional

10.1 As origens da alienação do mundo moderno

10.1.2. A dúvida cartesiana

Para Arendt, as consequências a nível filosófico da alteração do ponto de referência, que deixou de ser metafísico para se assumir cientificamente universal, foram mutiladoras da faculdade de pensar em termos transcendentes e absolutos, aquilo que foi a base da filosofia tradicional. Descartes, com o de omnibus dubitandum est, foi o primeiro a conceptualizar a forma moderna de duvidar, que se constituiu como o motor do pensamento. Arendt compara a posição central da dúvida cartesiana na filosofia moderna com o espanto perante tudo o que é como é (thaumazein) da filosofia conceptual de Platão e Aristóteles.

A certeza científica da posição relativa do sol e da Terra trouxe a incerteza sobre a capacidade de os nossos sentidos e a nossa mente apreenderem a realidade e a verdade. A leitura de um instrumento revelou à mente e aos sentidos que o Ser e a Aparência afinal não são o mesmo. A oposição entre a verdade dos sentidos e a verdade racional, entre a “inferioridade” dos sentidos e a “superioridade” da razão, perdeu consistência, uma vez que nem a verdade nem o real são dados, nem um nem outro se apresentam como são.256 Com o desaparecimento do mundo, tal como é dado aos sentidos, desaparece também o mundo transcendente e, com ele, a possibilidade de se transcender o mundo material em conceito e pensamento. A universalidade da dúvida impede de se excluir qualquer experiência ou

pensamento. Ficou claro que a nossa mente não pode ser a medida de todas as coisas e da verdade mas é, segundo a filosofia de Descartes, a medida do que afirmamos ou negamos. Ou seja, a palavra verdade foi substituída por veracidade, e a palavra realidade pela confiabilidade. Esta solução cartesiana para a dúvida universal permitiu, segundo Arendt, aceitar a ideia de um homem verdadeiro, mesmo que não exista a verdade, bem como a ideia de um homem confiável, mesmo que não exista certeza confiável.257 Embora não possa reconhecer a verdade como algo dado e revelado, o homem pode pelo menos conhecer o que ele próprio faz. O ponto de partida do filósofo deixou de ser Deus e a Natureza, como acontecia em Platão e Aristóteles, para ser o próprio sujeito do conhecimento, que tem consciência de si reflexiva, ou seja, que tem consciência que é consciente da sua capacidade de conhecer. Descartes foi o grande responsável por esta ruptura ao assumir como objectivo da sua filosofia a descoberta do homem interior.

A concepção idealista de Descartes, segundo a qual a essência da res cogitans revela a essência da res extensa, sugere a possibilidade de a natureza poder ser revelada através do pensamento, não porque a essência possa revelar a existência real, o pressuposto das filosofias platónica e aristotélica, mas porque Descartes transferiu o ponto de vista arquimediano do universo para dentro do próprio homem que, numa atitude de introspecção, entendida como interesse cognitivo da consciência em relação ao seu próprio conteúdo, se convence da realidade e da certeza, através das fórmulas matemáticas que produz. Esta atitude, configurada pela própria mente, produz a certeza, na medida em que na introspecção só está envolvido aquilo que a própria mente produz. Produz a certeza, em primeiro lugar, de si próprio, a certeza da sua existência, que lhe permite garantir, por sua vez, não a realidade que recebe através dos sentidos e da razão, mas a realidade das sensações e do raciocínio que ocorrem na sua mente. Todas as experiências ficam reduzidas à relação do homem com o seu pensamento. O homem só se encontra a si mesmo, projectado por um ponto de vista arquimediano que foi transferido do universo para dentro de si próprio, fechando-se na interioridade da sua própria consciência, alheado do mundo e dos outros num subjectivismo

radical. Os homens deixam de ter o mundo em comum e vivem no singular, como se não fossem os homens mas o Homem quem habita a Terra. A fórmula cogito me cogitare é disso prova: resume-se a uma experiência mental para a qual nenhum dos sentidos, que nos dão a realidade de nós mesmos e de um mundo exterior, é necessário258. O modelo de homem produzido através da introspecção cartesiana é um modelo alienado de toda a realidade que o rodeia e isento da influência da condição humana. O homem é, simplesmente, o cumprimento da sua essência. Arendt considera o solipsismo, que atingiu em Descartes a “alta dignidade de consistência teorética e existencial” a “mais perniciosa falácia” da filosofia, segundo a autora259. Os dados mais elementares da nossa existência e experiência assim o indicam.

10.1.3. As ciências

As consequências da descoberta do ponto de vista arquimediano traduziram-se num aumento comprovado, e cada vez mais rápido, da força e do conhecimento humanos, para além da dimensão terrestre, sendo o mundo actual inteiramente determinado por uma ciência e uma tecnologia que decorrem das leis universais. Ao pesquisarmos a natureza a partir de um ponto exterior, desvendámos alguns dos seus segredos bem guardados. A nova ciência – a ciência universal – trouxe novidade ao mundo e um enriquecimento da mente humana em termos de capacidade de agir e de prever. Adquirimos o estatuto de seres universais e começámos a pensar em termos de universo, embora com os pés assentes na Terra. Passámos a importar para dentro do planeta forças universais e cósmicas que lhe eram estranhas, sem pensar nos possíveis riscos para todo o processo vital natural. Tornámo-nos conscientes do poder que possuímos e do perigo que representamos para o mundo terreno. Diz Arendt:

258Cf. LM1, p. 58-59/48-49. 259

“Solipsism, open or veiled, with or without qualifications, has been the most persistent and, perhaps, the most pernicious fallacy of philosophy even before it attained in Descartes the high rank of theoretical and existencial consistency”. (O solipsismo, aberto ou velado, com ou sem qualificações, tem sido a mais perniciosa falácia da filosofia mesmo antes de ter alcançado em Descartes a alta dignidade de consistência teorética e existencial) (cf. LM1, p. 57/47).

Sem termos de facto, o ponto de apoio que Arquimedes buscava (dos moi

pou stō), presos ainda à Terra pela condição humana, descobrimos um

meio de actuar sobre a Terra e dentro da natureza terrena como se pudéssemos tratá-la de fora, do ponto de vista arquimediano. E mesmo a risco de ameaçar o processo vital natural, expomos a Terra a forças universais e cósmicas alheias ao reino da natureza.260

A alienação da Terra deu origem à ciência moderna, radicalmente diferente das anteriores. Como exemplo desta radicalidade, Arendt refere o desenvolvimento do mais importante instrumento mental da ciência de hoje – os artifícios da álgebra moderna que libertaram o matemático dos grilhões da espacialidade, isto é, da geometria que dependia de medidas terrenas. A linguagem simbólica da álgebra contém a capacidade de reduzir dados sensoriais e movimentos terrestres a símbolos matemáticos. Como exemplo está a lei da gravidade de Newton, cuja equação se aplica igualmente ao movimento dos corpos celestes e dos corpos terrestres. A natureza passou a ser vista através do cálculo matemático e o conhecimento humano ganhou uma dimensão universal. A matemática moderna, produto da transferência do ponto de vista arquimediano para dentro do próprio homem, assumiu-se como a principal ciência da era moderna. “O pressuposto é que nem Deus nem um mau espírito pode alterar o facto de que dois e dois são quatro”.261

O papel principal da matemática no mundo das ciências atira para segundo plano a razão e os sentidos quando lê, através de jogos lógicos de símbolos e equações, os fenómenos e objectos que nos rodeiam, produzindo igualmente os fenómenos e objectos que deseja observar. O facto de se ter excluído os sentidos dos processos cognitivos limitou os resultados matemáticos a simples modelos da realidade que, por não terem sido criados à imagem das nossas experiências sensoriais, não correspondem à realidade propriamente dita. A ciência moderna cai num círculo vicioso: os cientistas formulam hipóteses, a

260

(HC, p.326/262) “Without actually standing where Arquimedes wished to stand (dos moi pou

stō), still bound to the earth through the human condition, we have found a way to act on the

earth and within terrestrial nature as though we dispose of it from outside, from the Arquimedian point”.

261

(HC, p. 350/284) “The assumption is that neither God nor an evil spirit can change the fact that two and two equal four”.

partir das quais realizam as suas experiências, e, em seguida, empregam essas experiências para verificar as hipóteses. Presos aos modelos matemáticos, nunca atingem o âmago da questão, pois durante todo o tempo estiveram a lidar com uma natureza hipotética. Tal natureza hipotética expressa-se através de fórmulas matemáticas, onde o discurso natural não tem lugar. Incapazes de pensar e falar sobre aquilo de que somos capazes de fazer, tornámo-nos prisioneiros da nossa própria capacidade técnica e científica.

A verdade objectiva da ciência, que busca a essência das coisas com base nas leis universais, não explica a arbitrariedade dos acontecimentos nem a existência, porque a verdade subjectiva do existente não pode nunca tornar- se objectiva nem ser universalmente válida, segundo Kierkegaard262. A constatação de que a essência não explica a existência teve consequências profundas para a história do conhecimento, pois constituiu-se um importante argumento para o afastamento entre a filosofia e a ciência. Em meados do século XIX, como consequência da filosofia positivista de August Comte, deu- se a separação formal entre a filosofia e a ciência. A ciência tornou-se responsável pelo conhecimento do mundo em si e a filosofia reduzir-se-ia, neste âmbito, à reflexão sobre o significado do trabalho científico, assumindo- se como uma epistemologia ou uma teoria das ciências. Isentos do conhecimento do mundo em si, os filósofos focaram o seu interesse no conhecimento das estruturas e formas da nossa consciência e na linguagem como modo de expressão, ou seja, a filosofia centrou-se no conhecimento do homem enquanto ser racional e moral, responsável por uma teoria sobre a capacidade e a possibilidade humana de conhecer, e uma ética ou estudo das condições de possibilidade da acção moral, enquanto sujeita à liberdade e ao dever.