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A EXCELÊNCIA DA ACÇÃO EM ARENDT

5. A Excelência da acção em Arendt

5.3. A liberdade e a acção

A consciência da liberdade, ou o seu oposto, surge, como reconhece Arendt, na nossa relação com os outros. Ao contrário do que acontece nas ciências, onde se procura a verdade na causalidade das coisas e nos deparamos com a ausência de liberdade, nos assuntos humanos ou políticos assumimos a liberdade como uma evidência, por isso “se promulgam leis nas comunidades humanas, e se tomam decisões e se aplicam sentenças”139. É neste domínio da liberdade prática que se situa a nossa discussão. No exemplo, recorrente em Arendt, da liberdade experimentada entre os homens da Antiga Grécia, a liberdade era entendida como a possibilidade de o homem livre sair de sua casa, a esfera privada, e dirigir-se ao mundo, a esfera pública ou polis, onde se reúne com outros homens igualmente livres. Aí, a liberdade foi conhecida como um facto da vida de todos os dias, um fenómeno passível de ser observado pelos sentidos e vivido em colectivo. A antítese da liberdade, acontecia nos espaços não políticos como a privacidade dos lares e as sociedades tribais, quer uma quer outras sujeitas à autoridade despótica de uma hierarquia em pirâmide, como referimos anteriormente. Neste caso, os homens, apesar de viverem juntos, não formavam um corpo político. O âmbito da liberdade estava, portanto, bem definido: acontecia na esfera pública, constituída por homens livres, dotados com a capacidade de agir e discursar que, em situação de igualdade, tratavam dos assuntos humanos, isto é, políticos. Ou seja, a liberdade, enquanto experiência humana e fenómeno passível de demonstração, coincide com a política, e as duas estão intimamente relacionadas. Neste sentido, a esfera da política equivale à esfera da liberdade e, por consequência, o sentido da política é a liberdade ou, na expressão de Arendt, “a raison d’être da política é a liberdade, e o seu campo de experiências é a acção”140. Tendo em conta que a política se concretiza na acção, é na acção que se realiza a liberdade, por isso Arendt afirma que a liberdade emerge da acção política. Aliás, a realidade mundana, que resulta da

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(BPF, p. 155/142) “… laws are laid down in human communities, that decisions are taken, that judgements are passed”.

140

(BPF, p. 158/145) “The raison d’être of politics is freedom, and its field of experience is action”.

acção entre os homens, é vital para a liberdade que, “sem uma esfera pública politicamente garantida... fica sem espaço onde emergir”141.

No contexto da liberdade política não se inclui a liberdade interior pois esta tem a ver com o refúgio do eu, numa espécie de fuga ao mundo, não se expondo à presença dos outros, a condição necessária para se tornar política. A liberdade política não se reduz à liberdade de escolha entre duas coisas dadas, para a qual teremos as motivações que nos pré-determinam. Não é, por isso um fenómeno de vontade, do eu-quero ou do liberum arbitrium. Não obstante as motivações ou objectivos que impelem à acção serem factores importantes, eles não podem ser determinantes sob pena de a acção perder o seu carácter livre. Seria, neste caso, condicionada por um objectivo, apreendido primeiro pelo intelecto e pelo seu juízo, e desejado, posteriormente, pela vontade que ordena a sua realização. “Dar ou obedecer a ordens não é uma questão de liberdade mas sim uma questão de força ou fraqueza”142. A acção, na definição de Arendt, é livre, portanto não se sujeita ao intelecto nem à vontade, embora necessite de ambas para a sua realização. Arendt inspirou- se na distinção que Montesquieu apresentou quando se referiu à liberdade interior, que associou à vontade, e à liberdade política, que associou à liberdade, distinção que fundamenta a incompatibilidade que Arendt encontra entre o eu-quero e o eu-posso, entre a vontade individual e o poder comum.

Para Arendt, a liberdade coincide com a política, no entanto, esta coincidência não é garantida por si só. A história política está repleta de exemplos em que a liberdade não anda a par da política. Aliás, trata-se de um fenómeno que vem de longe, da filosofia política de Platão e de Aristóteles, os seus fundadores, que na altura, já apontavam no sentido da separação entre a liberdade e a política, uma consequência da condenação à morte de Sócrates. Os governos despóticos, que se fundamentam na vontade de um perante os outros, imposta com recurso à violência, são um bom exemplo mas não o único, pois existem democracias que, em nome da segurança ou da economia, impõem a sua vontade perante o povo. Arendt destaca dois exemplos de

141

(BPF, p. 160/147) “Without a politically guaranteed public realm, freedom lacks the worldly space to make its appearence”.

142

(BPF, p. 163/150) “The power to command, to dictate action, is not a matter of freedom but a question of strength or weakness”.

sistemas políticos onde a liberdade é excluída da esfera política: a tirania e o liberalismo. Ambos concebem a liberdade como um atributo da vontade e não da acção. Na tirania, a liberdade foi transposta para o domínio do eu-quero, onde a vontade se confunde com o poder e a vontade de um é soberana sobre a vontade de muitos143. A vontade é a antítese da liberdade, e, precisamente por isso, a antítese da política. Para Arendt, os homens que desejem ser soberanos, quer individualmente quer em grupos organizados, têm que submeter-se à vontade, quer à sua própria, com a qual se obrigam a si mesmos, quer à vontade de um grupo organizado, se nele estiver inserido. “Se os homens desejam ser livres é precisamente à soberania que devem renunciar”144. A vontade não possibilita o encontro das opiniões das diferentes pessoas, pois impede a capacidade de cada um se colocar no lugar dos outros e de ter diferentes perspectivas. Sem o conjunto das diferentes perspectivas do mundo, este deixa de ser comum. Por sua vez, no caso dos liberais, a política visa quase exclusivamente a preservação da vida e a salvaguarda dos seus interesses, tendo como base a vertente económica. Se a vida está em risco, a acção passa a estar submetida às necessidades da vida, equivalentes às que existiam na esfera privada da antiguidade grega, onde o chefe de família age apoliticamente, vedando a liberdade daqueles que se encontram sob a sua hierarquia, estando ele próprio submetido a objectivos pré-definidos, e actuando no sentido de se tornar independente das necessidades e garantir o acesso à esfera da liberdade. Ou seja, na doutrina liberalista, a política ao recair sobre o jugo da necessidade imposta pela vida económica e social, perdeu a capacidade de ser livre.145

Como herança da tradição política, da tradição filosófica, originalmente antipolítica, bem como das tradições cristãs, qualquer delas estruturantes do nosso pensamento, tornou-se difícil conceber uma liberdade que não é um atributo da vontade mas sim uma qualidade da acção política. No confronto com a tradição política ocidental, a autora alerta-nos para o facto de a acção ter perdido a dignidade quando foi confrontada com as necessidades da vida moderna vivida em sociedade, na medida em que deixou de ser livre e se

143Cf. BPF, p. 174/161. 144

(BPF, p. 176/163) “If men wish to be free, it is precisely sovereignty they must renounce”.

submeteu quase na totalidade à dependência das necessidades. Ao contrário da Agora grega, onde a liberdade se associava à esfera política, a liberdade moderna encontra-se remetida para a esfera contemplativa dos pensadores, a vita contemplativa, refugiada das fragilidades dos negócios humanos146

e do mundo. Afastado das coisas do mundo, o filósofo não intervém na vita activa. Esta separação entre o filósofo e o político, que tem a sua primeira etapa no julgamento de Sócrates e no conflito que se estabelece entre o filósofo e a polis, teve fortes consequências quer a nível político quer a nível filosófico.

Na perspectiva de Arendt, a necessidade nunca está associada à liberdade, são conceitos opostos e incompatíveis. Arendt encontra, na actualidade, um nicho político onde a liberdade ainda tem lugar: a esfera dos negócios estrangeiros. Isso acontece porque, não obstante a tendência ser a questão económica, existe ainda entre os diferentes países hostilidades e simpatias que não podem ser reduzidas aos factores económicos. Na política internacional, a liberdade organiza-se em torno do eu-posso e não em torno do eu-quero.

Tanto a polis como a res publica foram espaços em que a liberdade, a igualdade e a acção puderam ser exercidas. Na linguagem actual, foram espaços com uma lógica de participação activa, embora exclusiva por não incluir as mulheres e os escravos. No caso da polis grega, as leis garantiam a liberdade no espaço público, e o legislador era visto como “construtor dos muros da cidade”147, comparável a qualquer artesão. Portanto, o legislador não era político. Na res publica romana, pelo contrário, as leis faziam parte da esfera política. A lei era vista como uma forma de obtenção política de tratados e alianças para o agir em conjunto. Para Arendt, a lei romana permitia a “fundação” do agir em conjunto, pois traduzia-se no fundamento que conferia autoridade ao poder, dois conceitos que Arendt relaciona e distingue, como veremos adiante.

Para Arendt, foi curioso o facto de o conceito de liberdade política não ter estado integrado na filosofia grega, uma vez que se trata de um conceito exclusivamente político. Aliás, Platão e Aristóteles, na sua filosofia política,

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As fragilidades dos negócios humanos resultam do facto de não existir nenhum princípio limitador das actividades da esfera política.

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quando promoveram a legislação e a construção de cidades ao mais alto nível da vida política, desvirtualizaram a experiência política grega original. Segundo Arendt, foi Santo Agostinho, nascido em Roma, o primeiro a formular as implicações filosóficas da antiga liberdade política. Fê-lo em De Civitate Dei, onde, segundo Arendt, defendeu a liberdade não como uma disposição interior do homem, ele não possui a liberdade, mas como uma característica da existência humana no mundo148. Santo Agostinho partiu da experiência política central da antiguidade romana que, como vimos, era baseada na ideia que a liberdade enquanto começo se torna manifesta no acto da fundação149. Ou seja, a experiência antiga de liberdade, recuperada por Arendt, é espacial, porque decorre no espaço onde os homens aparecem, e relacional, porque resulta da relação entre os homens. No isolamento, a liberdade política seria impossível.

A liberdade está relacionada com o início de algo, com a novidade. Na medida em que cada nascimento representa algo de novo no mundo150, cabe ao homem poder começar, porque ele próprio, recém-chegado ao mundo, é um começo, constitui um initium. Santo Agostinho assim o afirmou: “[Initium] ergo ut esset, creatus est homo, ante quem nullus fuit”151

, ou seja, o homem foi criado para que houvesse um início no mundo. Seguindo esta linha de pensamento, em que Arendt relaciona o homem com o conceito de início, o homem, porque é um começo sente-se impelido a tomar iniciativas, a agir, e, pelo mesmo motivo, por ser um começo, é, por definição, livre. A novidade da acção encerra em si a liberdade de trazer à existência algo que não existia antes, que não foi dado e, como tal, não poderia ser previsto, porque a liberdade é “experimentada na espontaneidade”152. A história comporta novos começos devido à condição humana da natalidade, através da qual o mundo se

148

“Yet we find in Augustine not only the discussion of freedom as liberum arbitrium, (…) but also an entirely differently conceived notion which characteristically appears in his only political treatise, in De Civitate Dei”. [Não obstante, encontramos em Agostinho não só a discussão da liberdade concebida como liberum arbitrium, (…) mas também uma concepção totalmente

distinta que, sintomaticamente, aparece no seu único tratado político De Civitate Dei] (cf. BPF, p. 178/165).

149Cf. BPF, 178-179/165-166. 150

Veja-se p. 29. 151

“O homem foi criado para que houvesse um começo, e antes dele ninguém existia” (De

Civitate Dei, Livro XII, cap. 20, referência de Arendt in HC, p. 226/177, e também in BPF,

p.179/166).

renova potencialmente a cada novo nascimento. A natalidade assume-se, desta forma, como a condição humana que, associada à liberdade e à pluralidade, caracteriza a acção, a actividade política por excelência. Ou seja, a natalidade constitui a categoria central do pensamento político arendtiano.