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Os modelos agonístico e comunicativo da acção

A EXCELÊNCIA DA ACÇÃO EM ARENDT

8. Os modelos agonístico e comunicativo da acção

As actividades fundamentais do bios politikos, que para Aristóteles eram a acção, praxis, e o discurso, lexis, precederam a formação da polis e tiveram uma forte expressão no pensamento pré-socrático. Eram consideradas as mais elevadas de todas as actividades: a acção e o discurso, ambos com o mesmo peso, eram os principais motores, mais do que o pensamento, da vida política de então. Com a formação da polis, a acção e o discurso continuaram a ser as actividades fundamentais do corpo político, mas a ênfase passou da acção para o discurso, que se assumiu como meio de persuasão. Ou seja, já na antiguidade grega é possível detectar dois modelos de acção distintos: o expressivo ou heróico e o comunicativo. A historiografia grega, pelas qualidades heróicas atribuídas aos homens livres, baseava-se na narração dos grandes feitos dos heróis, como em Tucíades ou Homero. A dualidade patente nos dois modos de acção, está implícita nos dois termos totalmente diferentes que os gregos atribuíram à palavra agir: archein (

άρχειυ

) que significa começar, conduzir, governar, e prattein (

πράττειν

) que significa realizar, levar a cabo223. Ou seja, a acção assume duas partes: o começo, que corresponde à tomada de iniciativa por parte de uma pessoa; e a realização, que necessita da adesão de um grupo de pessoas para que a acção tenha continuidade. Estes dois aspectos da acção sugerem um dualismo entre a acção como começo, a acção do herói, e a acção como adesão do grupo, a acção da polis. São exemplos da acção enquanto começo os heróis de Homero que, através dos feitos e das palavras, foram capazes de se igualar aos deuses do Olimpo e conquistar a imortalidade na história da humanidade. A importância da excelência grega traduz-se naquilo que Heraclito defendia e que, segundo Arendt, se traduzia no seguinte:

... só os melhores (aristoi), que constantemente provam ser os melhores (aristeuein, verbo que não tem equivalente em nenhuma outra língua) e que ‘preferem a fama imortal às coisas mortais’, são

realmente humanos; os outros, satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferece, vivem e morrem como animais.224

Escolher a imortalidade225, deixando atrás de si uma história e uma identidade, implicava arriscar a vida. Aliás, só o homem que não sobrevive ao seu acto supremo é senhor incontestado da sua identidade e possível grandeza e não é responsabilizado pelas possíveis consequências e pela continuação daquilo que começou. A identidade intangível do herói torna-se tangível na sua história, que só pode ser conhecida depois da sua morte226. Portanto, a acção grega, de carácter individualista, reveste-se de um espírito agonístico, o desejo de auto-exibição na competição entre os homens da cidade-estado. Os heróis de Homero têm a coragem de desprezar a vida biológica em função do mundo, com a convicção de que não há nada humanamente superior que o facto de distinguirem-se perante os outros.

Quanto ao segundo significado grego da acção, prattein, apresenta-se como um modelo comunicativo ou narrativo. Na antiga Grécia, a capacidade de prattein, nos seus múltiplos sentidos, era atribuída ao governante ou chefe de família que, depois de se libertar das necessidades da vida, delegadas na família e nos escravos, assumia o seu papel de cidadão da polis, igual entre iguais, inter pare, onde com a ajuda dos demais poderia deliberar e tomar decisões que, no isolamento, seria impossível. A excelência parece ter sido modelo que a polis adoptou, pois o seu principal objectivo era “fazer do extraordinário uma ocorrência comum e quotidiana”227. Este objectivo levou

224

(HC, p. 31/19) “Only the best (aristoi), who constantly prove themselves to be the best

(aristeuein), a verb for which there is no equivalent in any other language) and who ‘prefer immortal fame to mortal things’, are really human; the others content with whatever pleasures nature will yield them, live and die like animals”.

225

A propósito da questão da imortalidade, é interessante verificar, como Arendt o fez, que depois de Sócrates, a preocupação com a imortalidade foi substituída pela preocupação com a eternidade, ou seja, Sócrates parece ter sido o último filósofo que assumiu simultaneamente o seu papel de filósofo e de político. A parábola da Caverna de Platão demonstra a impossibilidade de o filósofo, cuja experiência do eterno o excluiu do mundo dos homens, contribuir para os assuntos humanos da polis e, consequentemente, adquirir a imortalidade dos heróis. No regresso à caverna, o filósofo ao assumir-se como rei-filósofo cuja sabedoria impôs aos restantes, à semelhança do rei tirano que governa isoladamente, foi incapaz de reconhecer os restantes homens como iguais (cf. HC, p. 32/20).

226Cf. HC, p. 243/193. 227

Atenas ao seu expoente máximo do desenvolvimento do talento e do génio, mas também foi responsável pelo seu declínio.

Nos exemplos vindos da antiguidade romana, a língua latina também tinha duas palavras totalmente diferentes para designar o verbo agir: agere, que significa pôr em movimento, e gerere, que significa conduzir, ou, de algum modo, a continuidade sustentada das acções passadas cujos resultados são as res gestae, os feitos e eventos a que chamamos históricos228

. Ou seja, também para os romanos, o termo latino agere significa começo, ser livre e começar estão interligados mas de uma forma diferente da grega. Ao contrário dos gregos para quem as leis formavam a estrutura da polis mas não eram o conteúdo político, em Roma, a legislação e a fundação constituíam o corpo político romano. Neste caso, a liberdade romana resultava do acto correspondente à fundação da cidade. Os descendentes dos fundadores da cidade romana deveriam ocupar-se dos assuntos relacionados com a fundação, garantindo a sua continuidade e aumentando o seu território, naquilo que seria a res gestae. Portanto, a experiência política central da antiguidade romana assume a liberdade como um começo que se manifestou no acto da fundação de Roma. À medida que o Império romano crescia, aumentou o carácter de inclusão das pessoas na vida pública; ser cidadão romano deixou de ser um estatuto privilegiado para se transformar num instrumento de controlo social e pacificação, sujeito à normatividade das leis.

Comparando os exemplos da antiguidade grega e romana, é possível identificar os dois modelos de acção: a acção agonística ou expressiva da antiguidade grega, onde a relevância era dada à acção heróica, centrada na auto-realização da pessoa perante o reconhecimento de muitos, do carácter único do herói e das suas capacidades; e a acção comunicativa, o modelo adoptado sobretudo na antiguidade romana, que visava a fundação de uma cidadania, caracterizada pela igualdade e reciprocidade entre sujeitos reconhecidos como iguais, como se pode comprovar na historiografia romana pela referência à fundação da cidade romana, o garante da liberdade, perante a qual todos os romanos se sentiam unidos. Parece haver uma contradição entre os dois modelos mas uma leitura mais atenta de The Human Condition e

de On Revolution, permite verificar que eles não se opõem mas são compatíveis, tal como o duplo vocabulário quer grego quer romano, para a palavra acção. Porque o grande desafio de Arendt é pensar os lugares onde o político possa ressurgir, a autora, de forma original, conjuga a dualidade entre a acção agonística e a acção comunicativa na mesma proposta: a primeira entendida como acto de revolução ou novo começo, e a segunda como acto de continuidade, que pretende a preservação de um corpo político onde a participação pública é possível em condições de igualdade e estabilidade. A análise que Arendt faz da Revolução Americana é um bom exemplo: o povo, constituído por um conjunto de pessoas mobilizadas em torno de uma causa comum mas agindo em pluralidade como indivíduos distintos, conquistou o poder através de uma revolução, acção agonística, e, posteriormente, criaram uma nova ordem política baseada na acção comunicativa.