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A definição do tema de estudo e dos objectivos da investigação

Capítulo III. Enquadramento do trabalho de investigação no sector da saúde em Portugal

4.1 A definição do tema de estudo e dos objectivos da investigação

Em diversos países desenvolvidos, fruto de um conjunto de circunstâncias específicas, que analisámos no primeiro capítulo da primeira parte deste trabalho, tem surgido, ao nível do discurso e das intervenções políticas, uma crescente tendência para a quebra dos consensos sociais estabelecidos em redor do Estado Providência. Esta quebra tem facilitado a introdução de reformas nos sistemas públicos, as quais, partilham aspectos comuns do quadro geral conhecido na literatura como a NGP.

Não obstante a falta de acordo entre os académicos quanto às características específicas deste movimento, à sua universalidade ou, ainda, quanto aos efeitos que tem provocado na administração pública, é possível dele extrair um conjunto de elementos que identificámos como estruturantes para essas mesmas reformas. O mais consensual será, porventura, a tentativa de romper com os regimes tradicionais de coordenação burocrática, baseados na hierarquia, por outros baseados nos mecanismos de coordenação ou de regulação pelo mercado ou quase- mercado (Deakin e Walsh, 1996; Hood, 1991; Le Grand e Bartlett, 1993 e Reed, 2002). Estes mecanismos visando, essencialmente aumentar a competição, promovem uma reconfiguração do próprio poder político e institucional, baseada na alteração dos papéis do Estado.

No sector da saúde, uma das estratégias de ruptura mais em evidência consiste na separação entre financiador e prestador e na adopção de políticas contratuais com as entidades prestadoras de cuidados de saúde, com o propósito de se assegurar a manutenção dos princípios básicos da sustentação dos sistemas de saúde, nomeadamente, o financiamento público, a universalidade no acesso e a equidade na prestação dos cuidados.

Em Portugal esta tendência teve início nos finais da década de 1990 com a criação das agências de contratualização dos serviços de saúde (Despacho Normativo n.º 46/97, de 8 de Julho). Mais tarde, (através do Despacho Normativo nº 22 250/2005, de 3 de Outubro), estas agências foram reabilitadas, tentando reforçar-se a importância da contratualização, enquanto mecanismo de distribuição de recursos, com o objectivo explícito de promover o controlo do crescimento dos gastos com a saúde, introduzindo maior eficiência no sistema de saúde e promovendo uma melhor adequação das respostas às necessidades em saúde das populações. É, então, nos finais de 2005, que o governo português adoptou como linha de acção política a

reintrodução de processos de contratualização entre a administração em saúde e as instituições prestadoras de cuidados que integram o SNS.

O abandono do financiamento retrospectivo e a operacionalização de um orçamento “contratado”, que tenha em consideração as especificidades da “produção” do sector, é apresentado no quadro de uma estratégia específica de reforma da saúde, em geral, e dos cuidados de saúde primários, em particular, como uma necessidade incontornável. A avaliação do desempenho, associada a um sistema de consequências, fecha o ciclo deste processo claramente sustentado nos pressupostos da NGP.

O presente trabalho insere-se no contexto destas mudanças e tem como principal objectivo analisar as experiências de contratualização com os CS, em Portugal. Mais concretamente, pretende-se fazer uma apreciação global dos resultados da experiência de contratualização com os CS por parte da Agência de Contratualização dos Serviços de Saúde da RLVT72, tanto no que toca

ao seu enquadramento, como no que concerne aos processos de contratualização adoptados. Por outro lado, procura-se desvendar os principais factores críticos que têm dificultado, ou até mesmo impedido, a concretização de processos de contratualização bem sucedidos, com especial enfoque na sua vertente de CSP, no âmbito da mudança do sistema de saúde português.

Assim, este estudo visa aprofundar o conhecimento sobre o contexto económico, social, cultural e político, que presidiu à introdução do processo de contratualização ao nível dos CSP, símbolo do processo de mudança que se procurava encetar.

Num momento em que se pretende reintroduzir o processo de contratualização em Portugal, ao nível dos CSP, torna-se premente iniciar uma reflexão crítica que permita, por um lado, identificar os principais factores de bloqueio que condicionaram o sucesso das primeiras experiências da contratualização em Portugal e, por outro, analisar o actual enquadramento em que se faz “renascer” o mesmo processo.

A experiência resultante de análises a anteriores reformas em diversos países desenvolvidos73

demonstra que existe um conjunto de eventuais factores de sucesso que é necessário evidenciar: a existência de uma liderança forte, uma boa coordenação entre os níveis político e operacional, a existência de acções de implementação próximas da agenda, a simplicidade das intervenções, para facilitar a sua compreensão por parte daqueles que as vão adoptar, e um antecipado investimento

72A única região de saúde que tentou, em larga escala e por um período de tempo superior a um ano, a negociação dos CS com Agências de

na formação, de modo a obter massa crítica entre os profissionais de saúde, tornando-os capazes de operacionalizar as políticas (Atun et al., 2006).

Os resultados do estudo realizado por Escoval (2003), no campo em que se situa o nosso tema de investigação, apontam no sentido de que a contratualização pode melhorar e recentrar a comunicação em torno de vectores como o desempenho e os resultados obtidos e, por essa via, ajudar a recolocar a qualidade do diálogo em torno das políticas, bem como da sua definição. O seu sucesso assentaria, a médio e longo prazo, em três pré-requisitos: (i) um clima de confiança que se deverá estabelecer entre as partes e que se supõe atender a um certo equilíbrio entre considerações formais e informais, a existência de um diálogo permanente, a troca de informação, a negociação, a clareza dos objectivos e o respeito mútuo; (ii) um compromisso em perseguir um objectivo comum e tornar transparentes os resultados obtidos, bem como dos adequados mecanismos de gestão e de avaliação e (iii) uma visão de conjunto que permitirá compreender que a contratualização não poderá cobrir a multiplicidade de factores ligados à gestão do desempenho, à cultura organizacional, às considerações políticas e aos aspectos administrativos que intervêm uma relação contratual.

No que concerne à avaliação da primeira tentativa de implementação de processos de contratualização nos CS portugueses, e reportando-se à experiência de contratualização com os CS por parte da Agência de Contratualização dos Serviços de Saúde da RLVT, no período de 1996 a 2000,Luz (2001) conclui que a criação da agência na RLVT permitiu introduzir uma maior transparência na utilização dos recursos de saúde, ao criar instrumentos que permitiram um melhor controlo dessa mesma utilização, desencadeando mecanismos de negociação interna num número apreciável de instituições abrangidas por este processo. Todavia, na opinião do referido autor, o impacto destas intervenções não foram suficientes para conseguir influenciar a distribuição desses mesmos recursos. Por outro lado, os incipientes avanços na determinação de indicadores de necessidades de saúde prejudicaram, ainda segundo o autor, uma das dimensões básicas para a efectividade/equidade dos cuidados em termos de saúde da comunidade. E acrescenta,

“A menorização nos termos de referência para o OP das actividades na comunidade, sobretudo as de prevenção e protecção de saúde, é um facto que introduz alguma perversidade no mecanismo de contratualização, se tivermos em devida conta o conceito abrangente de CSP” (Luz, 2001:34).

Sublinhe-se, ainda, a investigação desenvolvida por Cabral (2001), que conclui que a contratualização com os CS em Portugal ainda estaria a dar “os primeiros passos de um longo caminho de amadurecimento institucional e de criação de capacidades técnicas”, alertando para a possibilidade de constituir, além disso, um caminho com mais variações do que o que se seguiu com os hospitais” (Cabral, 2001:19). Partindo da constatação de que a primeira aplicação do processo de contratualização em Portugal se concentrou na vertente hospitalar, tentou analisar as diferenças conhecidas ou previsíveis da contratualização com os CS, quando comparada com a dos hospitais, e concluiu que, pelo seu grau de autonomia e pela sua organização interna, é mais fácil ao hospital do que ao CS estabelecer uma “contratualização interna” que permita realizar adequadamente a “contratualização externa” negociada com o financiador.

O autor admite, ainda, ser provável, que a participação dos profissionais médicos dos CS seja mais individual do que nos hospitais, na medida em que “nos CS não existe a equipa do serviço, com a hierarquia do hospital e responsabilização tradicional do chefe de equipa por todos os actos prestados aos doentes a cargo do serviço” (Cabral, 2001:20). Argumenta, igualmente, que a reorganização prevista (então já prevista) para os CS poderia superar em parte esta dificuldade. Neste sentido, postula que os CS

“Têm de se constituir como unidades institucionais com escala suficiente para se tornarem centros de custos com autonomia administrativa e financeira (…) e a capacidade gestionária capaz de posicionar o CS como um contratante de pleno direito” (Cabral, 2001:19).

Por outro lado, o autor aponta para a necessidade da criação de um ambiente mais competitivo, através do financiamento público, e alerta, igualmente, para a necessidade de valorizar o papel dos utentes em todo este processo, manifestando, a este respeito, uma preocupação fundamental: a de saber de que modo se iria enquadrar a liberdade de escolha que seria acompanhada pelo pagamento aos prestadores consoante a presença do utente (escolha manifesta no acto ou escolha manifesta na intenção de mudar de CS-inscrição)?

Por fim, Cabral (2001) considera, também, que as agências teriam de se capacitar do seu papel mais interventivo e colaborante na definição de “necessidades” a satisfazer e nos “resultados de estado de saúde” a avaliar. Este seria, provavelmente, ainda na opinião deste autor “um exercício

de longo prazo, pois coloca a questão do tipo de medicina de família que pode acelerar os melhoramentos ao estado de saúde da população” (Cabral, 2001:19). E acrescenta que,

“não podem simplesmente continuar a ser contratualizadas mais prestações do mesmo tipo. A saúde do adulto e a saúde materno-infantil têm utilidade pública limitada (embora continuem a ter grande utilidade privada) (…). Mas os problemas de saúde que foram inscritos no Plano Nacional de Saúde para o período de 1999-200274solicitam muito mais

do que isto. A sua contratualização a nível de CS requer informação quantificada (e de base populacional) de rotina na fase de negociação e na monitorização (provavelmente, a instalação do desejado SINUS em todos os CS).” (Cabral, 2001:19)

No que respeita ao nosso estudo, visamos, de um modo geral, aprofundar o conhecimento sobre o contexto económico, social, cultural e político, que subjaz ao sector da saúde, no qual se introduziu um processo de contratualização ao nível dos CSP (como se preparou o início do processo, como se programou a sua implementação e disseminação e porque não foi possível fazer a sua indução cultural), que procurava encetar um inovador processo de mudança (introduzindo responsabilização, descentralização, flexibilização e eficiência).

Nesta perspectiva, os principais objectivos deste trabalho de investigação são os seguintes:

1 Explicitar o processo de contratualização de serviços de saúde e o papel das agências de contratualização;

2. Examinar, em termos globais, a experiência de contratualização em Portugal no sector dos CSP, tanto no seu enquadramento estratégico, como nos processos de contratualização adoptados;

3. Avaliar, em termos globais, as percepções ou representações dos actores sobre os processos adoptados na experiência de contratualização com os CS da RLVT, na década de noventa;

4. Identificar os factores críticos que no contexto português, condicionam a implementação dos processos de contratualização na área dos CSP.

Relativamente aos objectivos definidos, é possível colocar algumas questões de investigação de âmbito mais “operacional”, a saber: que tipo de contexto enforma o sector da saúde em Portugal? Até que ponto será viável o processo de contratualização, sem o desenvolvimento de outras componentes, nomeadamente a regulação, a qualidade, a cidadania e a inovação na gestão? Qual o padrão de contratualização mais adequado ao contexto dos CSP? Que obstáculos operacionais e culturais surgiram no processo de desenvolvimento da contratualização? Até que ponto houve consolidação institucional das experiências anteriores de contratualização com CS (região LVT)? Existe ou não um controlo democrático do cidadão sobre os processos de contratualização?

4.2 Explicitação e justificação dos processos metodológicos