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Trabalho de campo com base em entrevistas

Capítulo III. Enquadramento do trabalho de investigação no sector da saúde em Portugal

4.2 Explicitação e justificação dos processos metodológicos

4.2.2 Trabalho de campo com base em entrevistas

Atendendo à especificidade do nosso objecto de estudo, ainda pouco analisado e conceptualizado, mormente no contexto português, optámos por assumir a entrevista semi- estruturada como a técnica de recolha de informação mais adequada às características específicas da nossa pesquisa.

Na abordagem qualitativa, eleita para presidir a nossa investigação, a entrevista é, por excelência, o instrumento de recolha de informação mais difundido e utilizado pelos investigadores, na medida em que permite uma interlocução directa entre os actores sociais envolvidos nesta acção. As entrevistas demonstram ser mais ricas do ponto de vista da amplitude e da profundidade da informação recolhida, permitindo uma maior interacção entre investigador e o inquirido, e fornecendo mais detalhes, tanto acerca do processo como do contexto em que as experiências dos sujeitos ocorrem. É inegável que suscitam, também, um discurso mais livre e possibilitam uma recolha de informação que não é deformada pela imposição de uma estrutura rígida, tal como acontece, por exemplo, com o questionário fechado.

Enquanto técnica, que pressupõe estratégias interactivas (Fox, 1987; Blanchet, 1989; McMillan e Schumacher, 1997) entre, pelo menos um(a) entrevistador(a) e um(a) entrevistado(a), mobilizados pela informação a dar e a obter, a entrevista requer alguns cuidados relacionados com o contexto dessa interacção, no qual se incluem factores pessoais e situacionais (Blanchet, 1989; Valles, 1997).

Como sublinha Fox (1987), enquanto técnica de interacção pessoal, que contempla uma relação “cara a cara” entre o investigador e o sujeito entrevistado, a entrevista apresenta, simultaneamente, vantagens e desvantagens para a investigação. Por um lado, afigura-se como uma relação de comunicação real, “na qual o sujeito se sente relaxado, confiante e aceite, a própria relação contribuirá para motivá-lo a responder de forma completa e sincera às questões da investigação. (Fox, 1987: 599-602). Não obstante, a introdução na relação de elementos como a “ansiedade, suspeita, hostilidade e quaisquer outros elementos negativos das relações humanas, a disposição para responder vai diminuindo até que, por último, desaparece a motivação para responder” (Fox, 1987: 599-602).

Por outro lado, a entrevista é, obviamente, baseada no discurso e este pode estar sujeito a interpretações múltiplas. Assim sendo, se bem que as entrevistas sejam apresentadas como uma

forma de ter em conta a perspectiva dos actores sociais para, a partir dela, compreender e interpretar a sua realidade, o investigador encontra-se confrontado com diversas posições subjectivas. Para além da sua própria interpretação, existem várias outras referentes à mesma realidade, que resultam da interpretação de cada um dos actores (Poupart, 1997). Esta questão, intrinsecamente associada à situação da entrevista, resulta na problemática do estatuto a conceder ao entrevistado e à informação por ele veiculada, fenómeno sobre o qual não existe consenso epistemológico entre os investigadores.

Também a função a desempenhar pelo entrevistador na orientação da entrevista, exige uma preocupação com aspectos relacionados com a comunicação verbal e não verbal (como, por exemplo, devendo deixar perguntas muito específicas para o final da entrevista e incentivando o entrevistado, dando a entender que o que relata é importante), bem como ao contexto físico de realização da mesma (preferencialmente um local com privacidade, distante de ruídos, que propicie o diálogo, previamente acordado entre ambos).

Na verdade, é importante termos em conta que, na realização das entrevistas, há condições gerais que podem afectar o seu desenvolvimento. Referimo-nos às variáveis espaço (lugar, conforto do mobiliário ou ruído), tempo (duração ou tempo disponível), agentes externos (interrupções por pessoas, telefonemas, actividade laboral) e à sua correlação. Assim, as condições físicas do local, o ritmo da entrevista ou elementos exteriores à mesma podem interferir na sua validez e fiabilidade e condicionar a relação entre o investigador e o entrevistado.

Nas entrevistas efectuadas, o papel do investigador foi essencialmente orientar o entrevistado, de forma pertinente e tão natural quanto possível, para as questões que não foram claramente abordadas na entrevista, ou para os objectivos estabelecidos quando o discurso deles se desviava. Igualmente, o papel do entrevistador, não se restringiu só a fazer perguntas de uma forma clara e inteligível, mas, também, pretendeu criar um clima favorável que permitisse ao entrevistado sentir- se à vontade. De uma forma geral, os entrevistados mostraram-se receptivos e motivados para cooperar na investigação.

Desta forma, tendo em conta que as realidades com que nos confrontamos, as entrevistas nem sempre corresponderam às expectativas teóricas do investigador, nem ao plano inicial do projecto de investigação. Fomos sendo flexíveis e compreensíveis com as diferentes justificações ou argumentos apresentados em diferentes situações, evitando condicionar ou forçar quaisquer

situações, de acordo com as características do investigador e da investigação, e, consequentemente, evitou-se criar qualquer tipo de conflito pessoal ou institucional.

É importante referir que as entrevistas foram realizadas numa fase em que o novo processo de contratualização nos CSP, agora representados pelas novas formas organizacionais, as USF, tinha em média um ano e meio de experiência76. Até então, no âmbito dos CSP, tais processos não se

encontravam ainda desenvolvidos de forma à criação de um processo de contratualização operacional e eficazmente aplicado aos CSP.

Tivemos consciência dos limites que este projecto de investigação pressupunha decorrentes, desde logo, do desfasamento temporal entre o momento da recolha de dados e a sua verificação histórica. Se por um lado, como sublinha Mendes (1999), a existência de um considerável distanciamento temporal entre o período focado e o da pesquisa pode ser vantajoso para que os factos - mesmo os mais exaltantes - possam ser interpretados num contexto histórico correcto “com o olhar desapaixonado que só um especialista pode garantir” (Mendes, 1999:101), por outro acarreta dificuldades acrescidas na reconstituição da memória dos factos por parte dos principais intervenientes no processo (nem sempre facilmente localizáveis e contactáveis).

Neste contexto, e dado o carácter distinto do papel desempenhado pelos vários actores no processo de contratualização, optamos por elaborar dois guiões de entrevistas, baseados num conjunto de questões abertas, que não pretendia erigir-se como uma grelha rígida, mas apenas como um ponto de referência para despoletar o discurso dos sujeitos. Estes guiões foram validados através das duas entrevistas piloto ou exploratórias, que se afiguraram bastante pertinentes na estruturação dos núcleos temáticos e dos respectivos tópicos das entrevistas subsequentes.

Procederam-se a alguns ajustes à estrutura inicialmente elaborada, especialmente na forma como se introduziam os temas mais polémicos ou comprometedores a nível da opinião pessoal. Seguindo algumas orientações, mencionadas anteriormente a propósito do instrumento da investigação, e em função da revisão de literatura internacional de referência para o tema da contratualização em saúde, em geral, e nos CSP, em particular, foram identificados elementos fundamentais e estruturantes que constituíram a base de construção dos dois guiões de entrevista (Anexo 1 e 2) utilizados no estudo. Um dos guiões foi usado com coordenadores, elementos da

76O processo de contratualização com as USF iniciou-se, precisamente, na fase em que as primeiras USF começam a sua actividade, em 2 de

equipa da Agência de Contratualização dos Serviços de Saúde da ARSLVT ou das Sub-Regiões de Saúde da RLVT (Anexo 1); o outro com elementos da equipa de direcção dos CS da RLVT (Anexo 2).

Ambos os guiões possuem cinco grandes blocos temáticos, inseridos com o objectivo de recolher a descrição dos acontecimentos experienciados por cada entrevistado. Procurou-se, sempre que possível, respeitar a ordem das questões incluídas nos guiões. Todavia, a opção sobre as questões a colocar, e a sua ordem, foi sendo tomada em função da própria interacção estabelecida com o entrevistado no contexto local.

No primeiro bloco temático (Bloco A) dos guiões pretendeu-se legitimar a entrevista, fazendo constar:

1. Informação ao entrevistado sobre o projecto de investigação (tema e objectivos específicos), em termos gerais.

2. Solicitação de colaboração e apelo a um esforço de memória reconstrutiva das experiências vividas há aproximadamente dez anos, sendo o seu contributo imprescindível para a prossecução do trabalho.

3. Segurança do carácter confidencial das informações prestadas.

4. Solicitação da autorização para a gravação da entrevista, assegurando que a mesma será destruída após a transcrição dos dados.

O segundo grupo temático (Bloco B) refere-se a um conjunto de questões gerais que permitam caracterizar, em termos sócio-demográficos e profissionais, o entrevistado, com especial enfoque sobre o cargo/função desempenhada à data da realização da primeira experiência de contratualização com os CS da RLVT.

Com o terceiro grupo de questões (Bloco C), procurámos obter as percepções dos entrevistados sobre o contexto/enquadramento estratégico do processo de contratualização em Portugal.

O quarto grupo temático (Bloco D), enquadrado numa lógica de partir do geral para o particular, tem por objectivo estimular o entrevistado a reavivar as suas vivências de

contratualização da Agência de Contratualização dos Serviços de Saúde da ARSLVT com os CS, no período de 1996 a 2000.

No quinto grupo incluímos um conjunto de questões finais, de carácter mais abrangente, cujo objectivo central consistia em identificar os acontecimentos, ou factores mais marcantes (positiva ou negativamente) ao longo da participação do entrevistado no processo de contratualização nos CSP.

Os entrevistados, em número de dez, foram identificados pelas siglas das instituições de pertença, designadamente, ACSS LVT para os membros da equipa da Agência de Contratualização dos Serviços de Saúde da ARSLVT; SRS LVT, para os elementos das Sub- Regiões de Saúde da RLVT e CS, para identificar os interlocutores entrevistados pertencentes a CS da RLVT.

De referir que, em dois casos, a pedido dos entrevistados, foi enviado com antecedência o guião de entrevista, para que o interlocutor pudesse previamente tomar contacto com o âmbito do estudo, reflectir sobre as questões ou até manifestar indisponibilidade para participar no estudo. Estávamos conscientes dos riscos advenientes desse procedimento, nomeadamente a inevitável, mas não desejável, pré-estruturação do discurso. Pretendíamos conhecer as representações dos interlocutores sem que elas fossem moldadas por leituras mais ou menos apressadas com o fito de revisitar os acontecimentos em causa. Dessa forma, queríamos homogeneizar o mais possível as condições de resposta em termos de recordação dos factos.

Apelando à realização de um exercício de memória reconstrutiva da sua experiência, foi pedido aos entrevistados que se reportassem ao período compreendido entre 1996/2001 e relatassem a sua experiência no processo de contratualização com os CS, quer em termos de expectativas, potencialidades e fraquezas do projecto, quer de outras opiniões conhecidas ao longo do processo de implementação, medidas tomadas para a divulgação, condições que deveriam ter existido para possibilitar uma evolução mais favorável do processo.

Esclarecendo melhor o modo como decorreram as entrevistas, podemos referir que foi efectuado um contacto prévio com todos os entrevistados através de correio electrónico e telefone, de maneira a apresentar os objectivos da entrevista e estabelecer uma primeira relação

para evitar as formalidades do primeiro encontro. Todas as entrevistas foram realizadas nos locais e horários indicados pelos entrevistados, coincidindo com o seu local de trabalho.

No contacto directo com os entrevistados, depois das naturais apresentações pessoais e dos objectivos da entrevista, sem ser apresentado o guião da entrevista, o entrevistador fez uma pequena contextualização do trabalho de investigação reforçando a importância que têm as opiniões do entrevistado para este estudo, fazendo-os sentir as vantagens da sua colaboração. Com relativa facilidade, na generalidade dos casos, o entrevistador conseguiu conduzir a um ambiente de confiança, tendo-se criado um espaço de enriquecimento mútuo, como se pode comprovar através de algumas citações apresentadas na interpretação dos dados.

As entrevistas foram conduzidas durante o último trimestre de 2008 e início do primeiro trimestre de 2009, assegurando-se a confidencialidade das respostas. Nos casos em que esta identidade é perceptível procurou-se autorização do entrevistado para tal eventual quebra de confidencialidade. Os dados foram trabalhados segundo a técnica de análise de conteúdo, um “instrumento polimorfo e polifuncional” (Bardin, 1998).

Aquando do pedido de marcação das entrevistas foi indicado um tempo de quarenta e cinco a sessenta minutos para a realização das mesmas. Na generalidade, o factor tempo não condicionou o normal desenrolar das entrevistas, tendo estas decorrido durante períodos de tempo que se ajustaram às necessidades, de acordo com os objectivos estabelecidos para as mesmas, variando entre o mínimo de quarenta e cinco minutos e o máximo de duas horas, e trinta minutos. As restantes entrevistas decorreram durante cerca de uma hora e vinte minutos. É de salientar que a entrevista, que decorreu durante mais tempo, foi realizada em duas sessões devido às interrupções na primeira parte que tinham a ver com o dia de atendimento público do entrevistado.

Numa primeira análise, a população teria de corresponder aos profissionais do sector da saúde que foram e/ou são testemunhas privilegiadas, isto é, de acordo com Quivy et al. (1998), interlocutores válidos que, pela sua posição, acção ou responsabilidades, têm conhecimento do problema. Não se verificando preocupações de generalização, a melhor estratégia de amostragem consistirá na utilização de uma técnica de amostragem não probabilística do tipo intencional (Moreira, C., 1994), que permita a obtenção de informação rica de casos para o estudo em

Um aspecto importante destacado por Trivinos (1992) é o de que a escolha do tamanho da amostra numa pesquisa do tipo qualitativo é, em geral, balizada por critérios distintos dos da pesquisa quantitativa. Considerações como, a importância dos sujeitos para o esclarecimento do assunto em foco, o grau de dificuldade em se localizar as pessoas, o tempo disponibilizado pelos sujeitos para a realização de entrevistas, entre outros, são aspectos determinantes na configuração da amostra.