• Nenhum resultado encontrado

Período 1970-1984: A emergência e consolidação dos cuidados de saúde primários

Capítulo III. Enquadramento do trabalho de investigação no sector da saúde em Portugal

3.1. Antecedentes do actual Sistema de Saúde Português

3.1.1 Período 1970-1984: A emergência e consolidação dos cuidados de saúde primários

Até à década de setenta, o Estado português detinha responsabilidades no domínio da saúde pública, mas assumia um papel meramente supletivo na assistência aos doentes. A

responsabilidade pela assistência na doença competia às famílias, às instituições privadas (acessíveis sobretudo aos estratos socio-económicos mais elevados) ou aos serviços médico-sociais da Previdência (vulgo “postos das caixas”, que prestavam cuidados médicos aos beneficiários da Federação de Caixas de Previdência32). Pertenciam, então, às instituições particulares – com

grande relevo para as Misericórdias, que geriam grande parte das instituições hospitalares e outros serviços de saúde, por todo o país - o principal papel neste domínio.

A situação do sistema de saúde em Portugal, caracterizava-se, nesse período, pela existência de um sistema com uma elevada fragmentação nas estruturas de saúde33(baixo nível de integração e

concepção do sistema de saúde), com relações de gestão institucional do tipo “comando e controlo”, que, aliado ao baixo nível de financiamento dos serviços públicos de saúde (a despesas com a saúde era de apenas 2,8% do PIB, em 1970), resultava na apresentação de indicadores socioeconómicos e de saúde muito desfavoráveis quando comparados com os de outros países da Europa Ocidental (OPSS, 2001: 11) e (OPSS, 2002: 56). Neste contexto, a cobertura do país em serviços de saúde era insuficiente e o acesso das pessoas aos cuidados de saúde era limitado.

É no início da década de 1970, ainda antes da revolução de Abril de 1974, que surge uma reforma da saúde, conhecida como a “reforma de Gonçalves Ferreira”, materializada no plano jurídico pelos Decreto-Lei 413/71 e Decreto-Lei 414/71, de 27 de Setembro, que se propunha introduzir profundas alterações organizativas, e até mesmo conceptuais, na estrutura do sistema de saúde. Previa-se revalorizar a área de intervenção dos cuidados primários e introduzir uma nova lógica de funcionamento num sistema até então centrado na actividade hospitalar (hospitalocentrismo), complementada pela actividade ambulatória da Previdência Social (Ferreira, 1989).

Não obstante, observando a evolução histórica do processo encetado, é possível concluir que, apesar do importante conjunto de CS e de serviços centrais e distritais coordenadores da prevenção, promoção da saúde e atendimento a grupos de risco, então criados, os efeitos práticos

32A Federação das Caixas de Previdência, tida como o primeiro serviço de cuidados médicos de âmbito nacional, foi criada com a publicação do

Decreto-Lei n.º 35 311, de 25 de Abril de 1946.

33 De acordo com Sampaio (1981), “o Estado, não querendo assumir a responsabilidade dos cuidados de saúde dos portugueses, permitiu a criação de (…) um grande número de subsistemas independentes, difíceis de coordenar e originando duplicações e guerras de competência e rivalidade, que impediam ou dificultavam a formação de equipas multidisciplinares indispensáveis à redução dos problemas de saúde (…). Como resultado (…) os portugueses tinham vários serviços de saúde de tipo vertical, mal dotados e mal equipados.” (Sampaio, 1981:80).

destas tentativas de reestruturação do sector da saúde, não chegaram a ser muito perceptíveis. Nas palavras de Campos (1984), ao “pretender-se transformar a lei em motor desse processo, verificou-se que os progressos obtidos foram lentos, ficando sempre aquém do desejado” (Campos, 1984: 27). Para este relativo insucesso, segundo este autor, concorreu ainda o facto, dos objectivos da criação de uma rede de CSP nunca terem sido verdadeiramente conhecidos, quanto mais desejados, pelos principais agentes do processo.

Já Carreira (1996), explica esta situação, pela incapacidade demonstrada em proceder-se à integração dos Serviços Médico-Sociais das Caixas de Previdência, permitindo-se, assim, a manutenção de uma estrutura vertical e paralela para os CSP e hospitais.

Entretanto, é na década de setenta que se consolida, em termos europeus, a viragem para uma “nova” saúde pública, cujo núcleo central residia, essencialmente: i) na ampliação, universalização e descentralização da oferta de CSP, de forma a racionalizar os sistemas de saúde e a conter os encargos que estes representavam num contexto de crise fiscal dos estados e de crise “ideológica” do modelo biomédico de produção de cuidados de saúde; e ii) na viabilização da participação dos utentes na promoção da saúde e na adopção de estilos de vida “saudáveis” (Carapinheiro e Côrtes, 2000, p. 260-263).

Este enquadramento, em confluência com os processos de democratização e descolonização34,

serviu de pano de fundo à criação do SNS pela Constituição de 1976 (artigos 63.º e 64.º)35e à Lei

do SNS, em 1979 (Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro36). Esta legislação promovia uma política

unitária de saúde, com o reconhecimento da natureza social das prestações de saúde e a necessidade de concretização do direito universal, geral e gratuito, à saúde, bem como a salvaguarda incondicional da dignidade humana, do direito à protecção da saúde, da equidade no acesso e na utilização dos cuidados e da solidariedade entre todos os portugueses para garantir

34 Em termos gerais, podemos afirmar, como sustenta (Aguiar, 2000), que a leitura política orientou e modelizou o percurso no sentido do estabelecimento de um Estado Providência, e as especificidades ocorridas no processo de ruptura do sistema político, tais como sejam as nacionalizações, tiveram um impacto na volumetria do Estado, quer por acréscimo das funções de alocador, produtor e redistribuidor de riqueza, quer pela gestão patrimonial, resultante da apropriação dos meios de produção.

35 A nova Constituição da República, de 1976, no seu art. 64.º, reafirma o direito à saúde como um direito fundamental de todos os cidadãos, que deveria ser assegurada com a implementação de um SNS, universal, geral e gratuito.

36 A Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro instituiu o SNS, no âmbito do Ministério dos Assuntos Sociais, o qual apresentava como escopo central "assegurar o direito à protecção da saúde, nos termos da Constituição" (art.º 1.ºda Lei n.º 56/79). De acordo com o mencionado diploma, o SNS era "constituído pela rede de órgãos e serviços" aí previstos, os quais, "actuando de forma articulada e sob direcção unificada, gestão descentralizada e democrática", visavam a "prestação de cuidados globais de saúde a toda a população" (art.º 2.º da Lei n.º 56/79).

aquele direito.

Em suma, a criação do SNS representava uma das principais tentativas de edificação do Estado de bem-estar social. Para tal, o SNS foi dotado de autonomia administrativa e financeira (art.º 18.º, n.º 1), dispondo de “órgãos centrais, regionais e locais” e “serviços prestadores de cuidados primários e serviços prestadores de cuidados diferenciados”, prevendo-se que fosse “apoiado por estabelecimentos de ensino que visavam a formação e aperfeiçoamento de profissionais de saúde” (art.º 18.º, n.º2).

Todavia, como refere o OPSS (2003), as circunstâncias políticas, sociais e económicas presentes aquando a criação do SNS, fizeram com que este incorporasse importantes debilidades fundacionais. Tais debilidades manifestaram-se, no início da expansão das infraestruturas do SNS, na frágil base financeira e ausência de inovação nos modelos de organização e gestão, na coexistência, assumida, entre o financiamento público do SNS e o da “medicina convencionada” e, simultaneamente, numa grande falta de transparência entre os interesses públicos e privados, e na dificuldade de acesso aos cuidados de saúde, baixa eficiência dos serviços públicos de saúde e na escassa informação sobre a sua qualidade (OPSS, 2003).

Apesar destas fragilidades, a criação do SNS fez parte da democratização política e social do país e produziu, num período de tempo relativamente curto, melhorias significativas nos principais indicadores de saúde, permitiu alcançar uma boa taxa de cobertura da população portuguesa, facilitando, também, o desenvolvimento de uma estrutura de carreiras profissionais para a saúde (OPSS. 2001: 13-14). No que respeita aos indicadores de natureza económico-financeira, estes evidenciaram um aumento significativo das despesas totais com a saúde. De facto, entre 1974 e 1980, foi possível observar um aumento das despesas em saúde (cerca de 40%), tendo-se verificado, porém, que, desde 1981 até 1986, se registou, apenas, um incremento de 10% do investimento em cuidados de saúde (Nunes e Rego. 2002: 20).

Ao nível dos CSP, porque a saúde passa a ser considerada numa perspectiva mais lata pela OMS, por questões de racionalização do sistema e, ainda, pelo início de uma nova carreira médica, (Clínica Geral e Familiar37), procede-se à fusão dos numerosos postos dos ex-SMS (“caixas”) com

os “CS de primeira geração”, emergindo os “CS de segunda geração.” Todavia, estes CS continuaram a ser entidades sem personalidade jurídica nem autonomia administrativa e financeira, dependentes de aparelhos administrativos que até então geriam os serviços médico- sociais: as Administrações Regionais de Saúde (ARS) e as Sub-Regiões de Saúde (SRS).

Esta segunda geração de CS herdou das anteriores estruturas todos os recursos e património físico e humano e duas culturas organizacionais distintas. A diversidade de comportamentos e de práticas organizacionais nos diversos centros, evidenciada na descrição de experiências e respostas a questionários diversos, reflectia as influências, de peso variável, das instituições preexistentes e da fragilidade da gestão, apoio e acompanhamento deste processo de mudança (Sakellarides, 1984).

Na prática, de um modo geral, este processo de fusão conduziu a uma maior racionalidade formal na prestação de cuidados de saúde e na optimização de recursos, mas não conseguiu melhorar, pelo menos de forma consistente, algumas das virtudes das componentes anteriores, nomeadamente, a grande acessibilidade a consultas e a visitas domiciliárias oferecida pelos serviços médico-sociais e a programação com objectivos de saúde e procedimentos preventivos e de vigilância de saúde normalizados, que caracterizavam as actividades dos CS, com sucessos objectivados em diversas áreas, nomeadamente, na área materno-infantil (Sakellarides, 1984).

Em suma, o modelo organizativo dos CS de segunda geração, tendo permitido a afirmação da identidade das diversas linhas profissionais, em especial da carreira médica de clínica geral, mostrou-se, de certo modo, desajustado em relação às necessidades e expectativas dos utentes e das comunidades (Ramos, 1995). Para Ramos (1995), este modelo organizativo, acrescido ao normativismo e tutela centralista distante das SRS e das ARS, contribuiu para a insatisfação, exaustão e desmotivação de muitos dos seus profissionais de saúde.

3.1.2 Período 1985 – 1994 – O novo papel para o sector privado e a regionalização