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2 AS VARIÁVEIS DA DEMOCRACIA

2.1. A DEMOCRACIA E SUAS FORMAS

2.1.1. A Democracia Direta

O mais antigo regime democrático é o da democracia direta, modelo desenvolvido pelos gregos em suas cidades-estados9. Na democracia direta, a soberania popular é exercida sem intermediários ou representantes, onde os cidadãos10, titulares do poder político, participam das decisões, discutindo-as e votando-as em assembleias. Nessa forma de regime os representantes são dispensáveis, pois quem decide de forma direta é o povo.

Velloso e Agra (2014, p. 19-21) ao tratarem da origem da democracia registram Atenas como sua precursora, em que pese apenas uma minoria ter participado dessa formação. Chevallier (1983, p.31) ressalva que os cidadãos de Atenas11 passaram a decidir diretamente em assembleia geral sobre os assuntos concernentes à cidade, quando Clístenes instaurou as primeiras instituições democráticas atenienses em 508 a.C. Assim, todos aqueles que integravam um demo12, dirigido por um demarca, participavam das assembleias, surgindo daí a expressão democracia, ou seja, governo do demos, pela junção do governo (kratia) do povo (demos).

Foi através da democracia ateniense que nasceu a ideia fundamental do pensamento democrático, que posteriormente iria constituir para autores como Rousseau e Kelsen, o princípio fundamental do regime: a liberdade. Todavia, importante esclarecer que tal liberdade deve ser vista com os olhos daquele tempo, isso porque não havia liberdade do

9 Definição de Cidades-estados ou pólis: ―Por Pólis se entende uma cidade autônoma e soberana, cujo quadro institucional é caracterizado por uma ou várias magistraturas, por um conselho e por uma Assembleia de cidadãos (politai).‖ (BOBBIO, 1995, p. 949).

10 Vale lembrar que a democracia direta grega reconhecia como cidadãos apenas algumas pessoas: para ser considerado cidadão aqueles do sexo masculino nascidos de pais atenienses. Era uma sociedade patriarcal, de sorte que as mulheres não possuíam o direito à cidadania. Estavam excluídos desse rol os metecos (estrangeiros) e os escravos. Nesse sentido ver: ROSSET, Luciano. A democracia ateniense: filha de sua

história, filha de sua época. Revista de Cultura Teológica. V. 16, n. 64, Jul/Set. 2008, p. 183-207.

11 A democracia ateniense foi o modelo, que por suas dimensões culturais e econômicas, mais se expandiu pelo mundo, chegando aos nossos dias por meio dos seus historiadores e filósofos, todavia, como ressalva Bonnard (1984, p. 102), não foi ela – a democracia ateniense – a primeira cidade-estado governada democraticamente: antes havia as cidades na Jônia.

12 O termo demo, significa um subdivisão da Ática, região da Grécia ao redor de Atenas, eram subdivisões de terra que existiam mesmo antes das reformas operadas por Clístenes em 508 a.C.. Nesse sentido ver: VAYENÁS, Alexander. Democracia: das origens à modernidade. In: ZANERRI, Hermes (org). Democracia:

a grande revolução. Brasília: UnB, 1996, p. 31/33; LEISTER, Margareth. A polis ateniense. Revista Mestrado

homem antigo com relação às leis da cidade, ele estava à disposição da pólis e somente os cidadãos as alcançavam13.

Segundo Bobbio (1992, p. 58-59), a ideia do homem livre que poderia se opor contra o Estado, que teria direitos individuais, pertence ao jusnaturalismo e só veio a ser inserido com John Locke. Antes disso, ressalva Bobbio, os direitos que os homens possuíam estavam restritos à oikia, ou seja, a casa, à esfera econômica do seu próprio domínio.

Conforme destaca Jaguaribe (1985, p. 48), o povo que se constituía no poder de exercer a democracia era um conjunto reduzido dos possuidores de bens, excluídos, portanto, grande contingente de produtores, escravos, mulheres e estrangeiros, pois, para isso, o cidadão deveria provar, por exemplo, ―o pleno gozo dos seus direitos políticos, que não devia ao Estado, que era de costumes puros, que estava legitimamente casado, que possuía bens de raiz na Ática [...]‖. Ressalva o autor que a exclusão populacional realizada na democracia ateniense deve ser relativizada, pois devem levar em conta ―o fato de que nenhum sistema político pode superar os parâmetros da própria cultura‖.

Chaui explica que a democracia grega era direta ou participativa e não como as modernas representativas salienta a autora que nesse sistema:

Dois princípios fundamentais definem a cidadania: a isonomia, isto é, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, e a isegoría, isto é, o direito de todo cidadão de exprimir em público (na Boulé ou na Ekkléria) sua opinião, vê-la discutida e considerada no momento da decisão coletiva. Assim, a democracia ateniense não aceita que, na política, alguns possam mais que outros [...] (CHAUI, 1997, p. 111).

Urbinati (2010, p.214) lembra que ―escritos clássicos que descreviam a democracia ateniense realçaram que todos os cidadãos possuíam uma chance igual não apenas de competir pelo poder, mas também de propor leis e conquistar a maioria na ekklesia‖.

Aristóteles (2010) via na democracia um governo da maioria, no qual tinha como essência a igualdade. Para o filósofo a igualdade e liberdade eram valores a ela. De se destacar que essa maioria na Antiguidade era a minoria, ou seja, uma minoria de homens livres cuja liberdade só a eles era conferida. Para o autor, a pluralidade da cidade seria indispensável para a diversidade de fins próprios da comunidade política. Segundo Bobbio

13 Característica própria da antiguidade era a distinção entre pólis e oikia: segundo FERRAZ JR (1993, p. 27), a oika ou casa, era o governo de um só, ―a sede da família e e as relações familiares eram baseadas na diferença: relação de comando e de obediência, donde a ideia do paterfamílias, do pai, senhor de sua mulher, seus filhos e seus escravos‖ e a pólis era por muitos governada.

(1995, p. 321), essa tipologia clássica aristotélica, chega até a era moderna em autores como Locke e Rousseau.

Esse modelo logo se esgotou com o fim das cidades-estados e pelo aumento populacional, cada vez mais se tornava impossível a participação direta. Atualmente é quase impossível, considerando que não há forma de catalisar toda a vontade da população. Borja (1991, p. 126), ao tratar do assunto ressalta que esse governo direto, pensado como governo do povo pelo povo, ―é definitivamente uma ficção, carente de conteúdo real e de possibilidade prática, haja vista que é impossível que a multidão exerça por si mesma as funções diretivas do Estado‖.

A democracia em Atenas revelou, à sua época, de forma original dois princípios democráticos: a liberdade e a igualdade. Isso porque garantia, segundo Chevallier (1983, p.31-34), a igualdade de justiça para todos (isonomia), abolia títulos ou funções hereditárias (isotimia) e garantia o direito do uso da palavra em assembleias (isagoria).

Não obstante, Bobbio (1997, p.53-54) destaca a insuficiência da democracia direta quando analisados dois dos seus institutos clássicos, hoje encontrados nas democracias modernas (representativas): i) assembleia dos cidadãos deliberantes sem intermediários; e ii) referendum. Quanto à assembleia dos cidadãos, o autor afirma que tal órgão deliberativo estaria restrito as pequenas comunidades, como a Atenas dos séculos IV e V, ―quando os cidadãos não passavam de poucos milhares‖ e ainda era possível reuni-los em um mesmo lugar estabelecido.

No que tange ao referendum, o autor aduz que de fato é o único instrumento de que se utiliza a democracia direta, dotado de ―concreta aplicabilidade e de efetiva aplicação na maior parte dos estados de democracia avançada‖, porém, adverte ser um instrumento que cabe apenas em ―circunstâncias extraordinárias‖ (BOBBIO, 1997, p. 54-54). Tal advertência se deve ao fato da inviabilidade de consulta à população em razão do volume da demanda legislativa.

Imaginar a aplicação do referendum como uma regra no sistema nacional brasileiro, seria algo complexo. Vejamos, por exemplo, os dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação – IBPT (AMARAL, 2017), no qual realizou-se uma pesquisa acerca da produção normativa no país desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Segundo esse estudo:

No âmbito federal, foram editadas 163.129 normas desde a promulgação da Constituição Federal, passando por 6 emendas constitucionais de revisão, 97 emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 95 leis complementares, 5.590 leis ordinárias, 1.356 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas provisórias, 11.995 decretos federais e 138.496 normas complementares. (AMARAL, 2017 p.34)

Em média, conforme a pesquisa, foram editadas 15,96 normas federais por dia ou 22,93 normas federais por dia útil nestes 28 anos. Se pensássemos em realizar consultas via referendum para as normas federais, por exemplo, já seria impossível, quiçá incluir as municipais e estaduais.

Importa lembrar que alguns institutos próprios da democracia direta ainda existem nos ordenamentos jurídicos, além do próprio referendum, o plebiscito, a iniciativa, o veto popular e o recall. O plebiscito chamado também de referendo consultivo, ―consiste numa consulta prévia à opinião popular‖; a inciativa é a possibilidade de conferir ―a um certo número de eleitores o direito de propor uma emenda constitucional ou um projeto de lei‖; o veto popular, guarda estrita relação como referendum, no qual ―dá-se aos eleitores, após aprovação de um projeto pelo legislativo, um prazo [...] para que requeiram a aprovação popular‖; e o recall ―instituição norte-americana, que tem aplicação em duas hipóteses diferentes: ou para revogar a eleição de um legislador ou funcionário eletivo, ou para reformar decisão judicial sobre constitucionalidade de lei‖ (DALLARI, 2006, p. 153-155).

O ordenamento pátrio prevê o plebiscito14, o referendo15 e a iniciativa popular16, no artigo 14 e seus incisos17, como forma de exercício da soberania popular, por tal motivo muitos autores consideram a nossa democracia como semidireta18.

14 No Brasil foram realizados: em 1963 na gestão de João Goulart para escolha do sistema de governo; em 1993, para escolha da forma de governo (monarquia parlamentar ou república) e sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo); em 2010 no Acre para decidir acerca do fuso horário do estado e em 2011 no Pará foi realizado plebiscito sobre aprovação ou não da divisão do Estado.

15 Alguns consideram o de 1963 como referendo e em 2002 foi realizado o referendo acerca da proibição do comércio de armas de fogo e munição.

16 Existem alguns exemplos no Brasil de projetos que se originaram de inciativa popular e viraram lei: Lei n. 8.930/94 ―Dá nova redação ao art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5o, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências‖ que teve origem no caso Daniela Perez; Lei n. 9.840/99, que Altera dispositivos da Lei no 9.504, de 30 de setembro de 1997, e da Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral.‖; Lei n. 11.124/05, que ―Dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS.‖; e Lei Complementar n. 135/2010, lei da Ficha Limpa.

Bobbio (1997, p. 12), salienta que ―se por democracia direta se entende literalmente a participação de todos os cidadãos em todas as decisões a eles pertinentes, a proposta é insensata.‖ Uma vez que, complementa o autor, permitir ―que todos decidam sobre tudo em sociedades sempre mais complexas como são as modernas sociedades industriais é algo materialmente impossível. E também não é desejável humanamente, isto é, do ponto de vista do desenvolvimento ético e intelectual da humanidade‖.

O que se observa acerca da democracia direta é que, apesar de trazer princípios essenciais à formação do pensamento político, a saber, a igualdade e liberdade, mostrou-se insuficiente para lidar com a evolução social complexa e com as grandes dimensões dos Estados modernos. Percebeu-se que a representação política tornou-se essencial para o desenvolvimento dos regimes democráticos, isso porque, conforme acentua Bobbio (1997, p.53), a democracia direta ―é uma reminiscência histórica ou uma curiosidade folclórica‖, afinal, destaca o autor, ―hoje nenhum Estado pode adotá-la, já que não é possível reunir milhões de cidadãos, frequente e quase diuturnamente, para que resolvam os problemas comuns‖.

Desta feita, com a decadência das cidades-estados e o fim da experiência democrática grega, um novo ideal democrático surge com a inseparabilidade da necessidade da representação o que levou à evolução da democracia direta para a democracia representativa.