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A deposição da consciência moral pela massa: a nova autoridade

Capítulo 4. Psicologia das massas e análise do eu

4.4. A deposição da consciência moral pela massa: a nova autoridade

O antagonismo dos padrões éticos de uma multidão tal qual pensados por Le Bon – isto é, o fato de esta última poder ser irracional e ao mesmo tempo capaz de feitos criativos e inteligentes – incita Freud a buscar algumas respostas na psicologia social de William McDougall158, mais precisamente em seu livro The Group Mind (“A mente grupal”), em que soluciona essa questão apontando para as diferentes formas de organização das massas. Segundo McDougall, nos casos mais simples, ela nem mesmo mereceria esse nome, mas sim ser chamada de amontoado (Haufen, ou crowd, em inglês), em contraposição às massas mais estáveis. Contudo, ele aponta para uma condição importante para que se possa iniciar um processo semelhante à união psicológica entre os membros das massas, a saber, a posse de algo em comum entre eles. Sem essa condição satisfeita, não há grupo, mas apenas um amontoado de pessoas.

Esse algo em comum, condição dessa passagem, qual seja, de uma multidão ocasional para um grupo com rudimentos de organização, pode ser, de acordo com o autor, “[...] um interesse ou emoção específica ou ainda uma influência recíproca mesmo que de forma inesperada ou imprevisível” (MACDOUGALL apud PENNA, 2014, p. 166). Isso aponta para algo importante no que concerne às dinâmicas grupais, a saber, uma transformação necessária do indivíduo a fim de que se dê o seu enquadramento na massa. Em outras palavras, um determinado grau de homogeneização, um apagamento das diferenças devido à situação grupal. Sendo assim, a perda do limite entre uma e outra pessoa, a extinção mesmo que

das massas no sentido estrito do termo [pois, provavelmente, de acordo com Freud, uma série de estruturas bastante diferentes se fundiu sob a expressão “massa”], ou seja, os grandes movimentos coletivos do tipo missa leiga que visa louvar os ídolos e fazer crer na destruição deles apenas pela palavra (dito de outro modo, os movimentos em que a palavra é rainha e onde, portanto, ela pode exercer seus efeitos fascinantes; ou aqueles que visam a ação imediata, irrefletida e mais ou menos violenta, como ataques, linchamentos, grandes marchas). Em todos os casos em que a palavra submete-se à reflexão, ou em que a ação é organizada ou modulada, os elementos descritivos considerados não podem ser utilizados tais quais”.

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No que diz respeito a McDougall, “ suas pesquisas contribuíram para o estudo dos pequenos grupos no século XX, principalmente porque apresentaram uma visão mais otimista dos grupos organizados, destacando suas características intrínsecas especialmente a homogeneidade que conduzia à coesão grupal”. Apesar do seu trabalho diferenciado sobre grupos, McDougall não discordava de Le Bon acerca de alguns aspectos das multidões, “conferindo-lhes também inteligência diminuída, sugestionabilidade e impulsividade, contrastando, entretanto, essas características com as do grupo organizado” (PENNA, 2014, p. 165-166).

temporária da individualidade passa a ser o fator responsável pela facilidade com a qual seria possível que um grupo desorganizado se transformasse em uma multidão psicológica. 159

O contágio, exposto por Le Bon, razão da influência entre os indivíduos nas massas, é análogo ao “‘princípio de indução direta da emoção por meio da resposta simpática primitiva’” de McDougall (apud FREUD, 2011b, p. 35), que visa, dentre outras coisas, explicar a intensificação da emoção nesse contexto. Tal princípio diz respeito ao meio pelo qual uma multidão organizada se forma e o modo pelo qual os indivíduos são levados a partilhar essa emoção. Quer dizer, conforme MacDougall, os indivíduos quando em grupo tendem a perder o senso crítico, facilitando assim o contágio de emoções, o que consequentemente aumenta a interação entre eles. Essa função crítica, como já vimos, concerne à consciência moral, que é temporariamente suspensa na atividade grupal.

A massa está suscetível ao número de pessoas que a compõem e provoca no indivíduo uma sensação de poder e perigo. Nas palavras de Freud (2011b, p. 36), uma massa momentaneamente “[...]se colocou no lugar de toda a sociedade humana, a portadora da autoridade [Autorität], cujos castigos a pessoa teme, e em nome da qual se impôs tantas inibições”. Ela é, portanto, a nova autoridade e em obediência a ela “pode-se pôr a

‘consciência’ [Gewissen] anterior fora de ação e render-se à atração do ganho prazeroso que se obtém ao suprimir as inibições”.

É interessante notar aqui que as massas possuem características semelhantes àquelas que atribuímos à consciência moral, pois, assim como esta, elas substituem a voz da

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De acordo com a psicanálise, desde o seu nascimento o indivíduo, para se constituir, se aliena ao desejo do outro, sendo o desejo da mãe um desses primeiros da série de alienações (junto à alienação ao significante paterno). Qualquer processo de enamoramento, de investimento objetal, repete esse processo, e a inserção na coletividade, que requer um investimento afetivo, somente é possível através disso: de um não reconhecimento de si próprio e de uma entrega a um sentido vindo de fora (ver MAC-CORMICK, 2014, p. 52). Sem insistir na noção de alienação, que não vem ao caso no que diz respeito à teoria de McDougall, podemos apenas dizer que ligação com o outro é o que permite a constituição de um indivíduo para a psicanálise. Ademais, devemos ressaltar que, por meio do processo de homogeneização de que fala McDougall, pode haver não só o benefício da inclusão do indivíduo em um grupo social como também o efeito colateral do apagamento de suas peculiaridades. Isso porque as massas tendem a uma totalidade que não faz distinção entre seus elementos formadores. Assim, constatamos que a inserção dos indivíduos num grupo, sua inevitável relação com o outro desde o interior da cultura, pode ser ao mesmo tempo fonte de sua criação e destruição. Cito Ritvo (apud MAC- CORMICK, 2014, p. 52) : “A pulsão de morte que age no silêncio da vida tem, na obra deste [Freud] um papel duplo, como anunciado pelo mito de Empédocles: ele destrói o indivíduo para formar totalidades indiferenciadas – traduzido ao termo dos não mitomorfos, para formar massas – mas ao mesmo tempo faz resistência frente a mesma totalização massiva de Eros, para preservar a individuação, o impensável sem o recurso da ação negativa. Quer dizer, a massificação – que baseia a sua estrutura sobre a libido homossexual como um fator de coesão inconcebível sem a segregação – exerce uma censura eficaz à proliferação de diferenças singulares e sexuais – a massificação condena ligações assimétricas entre os sexos – e é precisamente o retorno da multiplicidade diferencial no momento em que os laços sociais estão rachados, o que traduz o aspecto duplo das pulsões destrutivas”.

sociedade160, são fonte da autoridade e, quando desobedecidas, exigem castigos e expiações por parte dos indivíduos que reúnem. Além disso, provocam o medo [Angst], que, como vimos, é um dos principais sentimentos morais presentes nos textos culturais freudianos. É por esses motivos que Freud pode dizer que as massas eliminam a consciência moral, pois elas são capazes de substituí-la no tocante à imposição e à observância das ações individuais – e também porque estão aptas a controlar os indivíduos que as compõem, exigindo destes renúncia pulsional, ao menos o suficiente para que haja vínculo libidinal entre seus membros. Logo, uma renúncia apenas no tocante à ligação com pessoas (e ideais) de fora do grupo ao qual pertencem. No que diz respeito ao restante dos investimentos pulsionais, ou seja, aqueles que passam pelo crivo da“consciência grupal” da massa, o gozo parece ser incentivado, daí inclusive a sensação de poder que o indivíduo sente quando está em grupo.

McDougall ainda nos esclarece que o poder da massa sobre os seus membros é um poder tirânico, que atua de forma extremamente violenta e impulsiva, de modo a impor as leis da mente grupal à mente do indivíduo, mesmo que por alguns instantes. Essa tirania da massa é análoga àquela da consciência moral, que, como contatamos em Totem e tabu, detém o poder máximo de condenação sobre os afetos do indivíduo, além de se sobrepor a todas as outras instâncias psíquicas deste, não podendo ser, por essa razão, contrariada em suas ações. De acordo com Freud, a massa, tal qual compreendida por McDougall, destitui esse tirano interno ao indivíduo, a saber, a sua própria consciência moral, e passa então a fazer o seu papel, oferecendo a este os mesmos perigos e, por vezes, uma sensação de invencibilidade em virtude de sua coadunação à “nova autoridade”.

Ademais, McDougall acrescenta às investigações anteriores sobre as massas as principais condições para “a elevação da vida anímica da massa a um nível superior”. São elas a continuidade material e formal, i.e., a permanência dos indivíduos nas massas ao longo do tempo, a definição de funções e capacidades destas, a posse de tradições hábitos e costumes e, por fim, uma estrutura definida – condições que equivalem às características do indivíduo que se perderam na massa (ver FREUD, 2011b, p. 37-38).

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Como vimos em Introdução ao narcisismo (1914), a consciência moral é uma corporificação, dentre outras coisas, da crítica da sociedade (ver FREUD, 2010, p. 43) Nesse sentido, ela condensa as diversas vozes das autoridades que compõe esta última. Sendo assim, uma espécie de substituto da sociedade, porém em funcionamento no interior do indivíduo.