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Complexo de Édipo, identificação e a consciência moral como função do ideal do

Capítulo 4. Psicologia das massas e análise do eu

4.6. Complexo de Édipo, identificação e a consciência moral como função do ideal do

Além de sua relação com a consciência moral, i.e., com a internalização da lei, o conceito de identificação se torna central na pesquisa sobre as massas, pois representa o mecanismo pelo qual se dão os laços amorosos entre os indivíduos nesse contexto.

Após demonstrar a hipótese de que os laços estabelecidos entre os indivíduos numa massa ocorrem devido à energia libidinal da pulsão sexual, ou seja, por meio do investimento do indivíduo nos objetos do mundo externo que limitam o seu narcisismo171, o próximo passo de Freud (2006a, p. 114) será questionar a “natureza desses laços”. A relação com o líder, condição mesma das demais relações, não é tida como sexual, ao menos não no sentido estrito do termo, mas identificatória. Na verdade, para a psicanálise, a relação com o líder, ou seja, com a autoridade, é um substituto de uma outra, muito anterior na história do indivíduo, estabelecida nos primórdios de sua existência, qual seja, aquela com o pai, – primeira autoridade do ponto de vista ontogenético –, que, por sua vez, nos remete aos primórdios da história da humanidade e deriva da relação com o pai primevo – primeira autoridade na perspectiva filogenética. Este último ponto será discutido mais à frente.

Psicologia das massas e análise do eu será o primeiro texto cultural freudiano a tratar de modo mais sistemático o conceito de identificação 172 . Ademais – e isso importa

171“O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos” (FREUD, 2011b, p. 58).

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Segundo Perez (2016, 186-188), o primeiro uso do conceito de identificação surge pela primeira vez numa carta a Fliess, de 17 de dezembro de 1897. Nela, o termo concerne à suposta satisfação do desejo que o eu recalca no outro. Assim, a inveja e o ciúme seriam o reconhecimento da privação do eu de um objeto que o outro usufruiria e o eu atribuiria a sua privação a essa fruição do outro. Esses sentimentos hostis podem surgir na

sobremaneira à nossa pesquisa – será a segunda vez em que se articulam as noções de complexo de Édipo e identificação de modo a gerar como resultado a instância crítica relativa à consciência moral. A primeira vez, como sabemos, e se considerarmos a ideia de introjeção como precursora da identificação, se deu em Totem e tabu (1912). Foi, com efeito, a partir da introjeção das qualidades do pai morto – e sua ressurreição simbólica – que adveio a reação moral da culpa, as proibições (tabus) sociais e a possibilidade individual de condenar internamente um desejo (a consciência moral). Tendo em vista a intrínseca relação entre consciência moral e identificação, nos parece imprescindível analisar mais de perto a maneira como Freud caracteriza esta última.

De acordo com ele, a “identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional” (FREUD, 2006a, p. 115). Ela desempenha um papel de destaque no complexo de Édipo do menino, em que este deseja ser como o pai, tomando-o, assim, como o seu ideal. Concomitante a isso ou “um pouco depois”, diz Freud, o menino desenvolve um investimento objetal para com a mãe. É interessante notar o lugar de primazia da identificação paterna – identificação primária – que diz respeito a uma possível antecedência cronológica de grande repercussão na vida do indivíduo De acordo com Laplanche e Pontalis (1991, p. 232), o uso da expressão “identificação primária” é raro na obra de Freud e designa “uma identificação com o pai ‘da pré-história pessoal’ tomado pelo menino como ideal ou protótipo (Volbild) ”. Trata-se, assim “de uma identificação direta e imediata que se situa anteriormente a qualquer investimento de objeto”. Ela diz respeito, portanto, à fase oral primitiva do desenvolvimento psicossexual do indivíduo, na qual não havia distinção entre investimento objetal e identificação, sendo ela marcada pelo processo de incorporação.

Gerez-Ambertín (2003, p. 64), entretanto, aponta para um aspecto central desse processo primário de incorporação do pai e sua relação com a instância crítica, a consciência

constituição de identidades individuais e grupais. Em 1900, na Interpretação dos sonhos, a ênfase é dada à identificação histérica que consiste na introjeção de um traço relativo ao objeto amado que permite ao indivíduo ter uma relação de estranhamento e ao mesmo tempo de familiaridade com esse outro com o qual se identificou. Mais adiante, em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud progride na relação entre identificação e incorporação. Esta se encontra especialmente representada na fase pré-genital denominada de fase canibal ou oral, paradigma das identificações. Nela, a atividade de nutrição coincide com a de satisfação, e a meta sexual é a incorporação do objeto, no caso, o leite materno. Além disso, nessa situação o interessante é notar que não há distinção ou limite entre o interior e o exterior. Em Introdução ao narcisismo (1914), “a identificação aparece no deslocamento da escolha de objeto narcísica para o modelo de relação parental ou o substituto dos pais. O que mostraria como condição necessária para uma saída do narcisismo a aparição do ideal do eu. Desse modo se abriria o leque de relações que possibilita o jogo das identificações e a aparição de objetos substitutivos” (PEREZ, 2016, p. 187). Esta última concepção acerca da identificação e a sua relação com o ideal do eu será de extrema importância para o desenvolvimento seguinte desta pesquisa.

moral. De acordo com a autora, “na identificação primária se trata do pai, mas nela não se assimilam seus atributos, pois ela é anterior a todo investimento de objeto. Portanto, o pai se incorpora, não se assimila. Sempre permanece um resíduo, puro resto que se faz ouvir em um eco crítico”. Quanto a essa dimensão crítica do pai, ela será mais bem entendida adiante. Por ora, é relevante apreendermos apenas o papel significativo dessa identificação paterna na história de constituição do indivíduo e notar a sua relação com um poder cruel internalizado.

Em determinado momento da vida infantil, surge uma confluência no indivíduo das duas tendências citadas acima, ou seja, aquela relativa ao desejo sexual dirigido à mãe e a corrente identificatória voltada ao pai – tendências que até então eram desligadas uma da outra. A psicanálise denomina esse momento pleno de consequência para todos os seres humanos de complexo de Édipo. Nele, o menino percebe a presença do pai como uma ameaça à sua relação com a mãe. A identificação “adquire então uma tonalidade hostil” (FREUD, 2011b, p. 60), e o menino se identifica com o desejo de substituí-lo em sua relação com a figura materna. A identificação, porém, é, desde sempre, ambivalente e carrega consigo o caráter de admiração simultaneamente ao de ódio no tocante ao mesmo objeto, isto é, o pai. Essa ambivalência de sentimentos nos remete à relação dos filhos com o pai da horda primeva do mito moderno freudiano. Aqui, mais uma vez, filogenia e ontogenia se assemelham, e a história da espécie preludia a do indivíduo. O pai primevo, cujo poder e perfeição serviram de modelo e ideal para os filhos, também passou por um processo de incorporação análogo ao processo ontogenético aqui descrito: ele foi incorporado pelos filhos, que, além da assimilação de suas qualidades, tiveram que arcar com a ressonância de seus restos inassimiláveis, que os atormentaram na forma da consciência moral e da culpa, preço a ser pago por desejar tomar o lugar do pai.

No que tange à história individual, os desdobramentos relativos à introjeção paterna não são muito diferentes. Contudo, antes de passarmos às consequências trágicas da identificação concernentes ao estabelecimento da instância crítica (consciência moral) no interior do indivíduo – que diz respeito ao resto inassimilável do pai –, cabe ainda explicitar algumas formas possíveis de identificação que irão nos auxiliar no entendimento da relação desse conceito com aquele da consciência moral.

Conforme Freud (2011b, p. 62), “a identificação se empenha em configurar o próprio eu à semelhança daquele tomado por modelo”. No capitulo VII da Psicologia das massas e análise do eu, além da explicação sobre a identificação primária, que toma o pai como modelo, Freud ainda nos apresenta outros tipos de identificação: a identificação por meio do sintoma; a identificação na gênese da homossexualidade; e a identificação com o ideal do eu.

Na primeira, a assimilação de determinado traço de uma pessoa amada – como no caso de Dora, que imitava a tosse do pai – diz respeito à regressão da escolha de objeto para a identificação.173 Esse processo, capaz de instalar no eu as características do objeto perdido, se refere ao mecanismo presente na psicopatologia melancólica que, ao contrário do que se pensava antes, mostrou-se típico e comum, transformando-se no protótipo da identificação. Assim, nos ensina Freud, quando o objeto amoroso necessita, por alguma razão, ser abandonado pelo indivíduo, ele é substituído por uma identificação. Nesse caso, a libido livre, i.e., retirada do investimento objetal, não se direciona para um novo objeto, mas retorna ao eu, seu lugar de origem. Ali, contudo, sem encontrar nenhum uso adequado para essa energia, a libido serve para “produzir uma identificação do ego com o objeto abandonado” (FREUD, 2011d, p. 61-62).

Desse processo, em que parte do eu é transformada no objeto amado por meio do mecanismo identificatório174, é que surgem os reclames da consciência moral, tão incômodos para o indivíduo. A partir daí, o eu passa a ser julgado por essa instância crítica como objeto – como o objeto que foi abandonado –, promovendo então o conflito entre a instância crítica e o eu modificado pela identificação, processo que também ocorre fora do estado patológico, porém de maneira menos acentuada. No caso da melancolia, as consequências da ação dessa instância crítica (a consciência moral) se fazem notar por meio dos sintomas da doença, como as autoacusações, o rebaixamento da autoestima, as autorrecriminações e os autoinsultos, que são, na verdade, direcionados, não ao eu do indivíduo, mas ao objeto que agora faz parte dele. Isso porque, apesar de amado por ele, o mesmo objeto também era, em algum nível, odiado pelo indivíduo, não escapando, portanto, de seus sentimentos de ambivalência. 175

Tanto o mal-estar provocado pela introjeção do objeto amado no eu quanto a transformação do amor objetal em identificação – que, em última instância, concerne à dificuldade do sujeito em lidar com a perda daquilo que foi outrora amado– podem ser verificados na identificação pelo sintoma apresentada por Freud, ultrapassando, assim, a

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Nas palavras de Freud (2011d, p. 62), “então só podemos descrever a situação dizendo que a identificação tomouo lugar da escolha de objeto, e a escolha de objeto regrediu à identificação”.

174“A sombra do objeto caiu sobre o eu” (FREUD, 2011d, p. 60-61). 175

O processo de identificação é imbuído de ambivalência. O próprio paradigma das identificações, a saber, a introjeção do objeto na fase oral(canibal), é um exemplo disso. Segundo Freud, “a identificação é a etapa preliminar da escolha de objeto e é a primeira modalidade, ambivalente na sua expressão, pela qual o ego distingue um objeto. Ele gostaria de incorporá-lo, na verdade, devorando-o, de acordo com a fase oral ou canibalística de desenvolvimento libidinal” (FREUD, 2011b, p. 62-63).

esfera da melancolia. 176 Um outro caso de identificação pelo sintoma, apresentada no capítulo VI de Psicologia das massas e análise do eu, nos interessa sobremaneira por ser a responsável pelos laços existentes entre os membros de uma massa e entre eles e o líder, ou melhor, a autoridade. Para Freud (2011b, p. 65), essa identificação “pode surgir a qualquer nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos [impulsos] sexuais”. O exemplo dado para esse tipo de identificação se refere à reação histérica de uma das meninas de um internato devido ao ciúme provocado pelo recebimento de uma carta do rapaz por quem ela estava secretamente apaixonada, reação que imediatamente contagiou as demais meninas à sua volta. Nesse caso, diz Freud (2011b, p. 64), não se trata de uma catexia de objeto abandonada, mas sim “[o] mecanismo é da identificação baseada em querer ou poder colocar-se na mesma situação”.

A gênese da homossexualidade masculina também contribui para a investigação psicanalítica da identificação, e possui a vantagem de relacioná-la com o complexo de Édipo e com a dificuldade de abandono do objeto sexual que vislumbramos nos casos de melancolia. Freud afirma que, com a chegada da juventude, surge para o menino a ocasião de substituir a mãe por outro objeto sexual, devido à barreira do incesto. Contudo, a recusa ao abandono da mãe transforma-se em identificação com ela. Segundo Freud (2011b, p. 66), o que há de notável nessa “identificação é sua amplitude; ela muda o ego num ponto extremamente importante, no caráter sexual, segundo o modelo do que até então fora o objeto”.

Essa ampla mudança do eu via identificação será central para a compreensão do próximo tipo de identificação apresentado: a identificação com o ideal do eu. Para sua exposição, Freud retoma o mecanismo identificatório da melancolia, apenas para mostrar com maior clareza a divisão entre o eu e a instância crítica (consciência moral). É importante destacar novamente que a atuação dessa instância também ocorre em casos normais, porém de modo menos enfático. Em Psicologia das massas e análise do eu, a concepção acerca da consciência moral sofre uma virada significativa em relação aos anos anteriores, pois passa a

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Na verdade, essas características podem ser vislumbradas desde muito antes, como demonstra o mito do pai da horda primeva. Nele, a morte do pai, causada pelos próprios filhos, fez com que estes se identificassem com aquele como consequência do luto, ou seja, de sua perda como objeto amoroso. O que resultou em um mal-estar perpétuo devido à internalização da lei paterna e da introjeção da violência desmedida e inassimilável do pai congregados na forma da consciência moral. Sobre o caráter inassimilável do Pai Primordial e seu luto, Gerez- Ambertín (2003, p. 62) diz “[...] embora o assassinato provoque a euforia do triunfo, sobrevém o luto pela morte e a veneração pela memória do poder e perfeição inigualáveis (modelo, ideal do eu). A transformação em Pai Morto – que por ser simbólico legifera e pacifica – não consegue dissolver totalmente os restos do invulnerável Urvater, cujos ressaibos se apresentam na vertente cruel da consciência moral. Incorporação do pior do pai pelo viés da maldade indestrutível instalada agora no penhasco estrangeiro interior. ”

ser considerada uma função da instância denominada de ideal do eu177. Nas palavras de Freud (2011b, p. 67-68) :

Já em ocasiões anteriores (“Narcisismo” [1914], “Luto e melancolia” [1915]) fomos levados à suposição de que no Eu se desenvolve uma instância que pode se separar do resto do Eu e entrar em conflito com ele. Nós a chamamos de “ideal do Eu” e lhe atribuímos funções comoauto-observação, consciência moral, censura do sonho, eprincipal influência na repressão. Dissemos que é a herdeira do narcisismo original em que o Eu infantil bastavaa si mesmo. Gradualmente ela acolhe, das influências do meio, as exigências que este coloca ao ego as quais o Eu nem sempre é capaz de cumprir; de modo que o indivíduo, quando não pode estar satisfeito com o seu Eu em si, poderia encontrar satisfação no ideal do Eu que se diferenciou do Eu. Contatamos, além disso, que no delírio de observação se torna patente a decomposição dessa instância, desvelando sua origem nas influências das autoridades, sobretudo dos pais.

A ideia freudiana de que a hipótese acerca do ideal do eu já se encontrava explícita em 1914 merece algumas ressalvas. É verdade que há coincidências entre o presente conceito de ideal do eu e aquele estabelecido em 1914, mas é preciso destacar que algumas das atribuições feitas ao ideal do eu nesse momento antes pertenciam à consciência moral. Isso porque, lá, ambas as instâncias por vezes se confundiam, apesar de suas diferenças. Por essa razão, talvez seja interessante fazermos uma pequena recapitulação desses conceitos no interior dos dois textos de Freud a fim de vislumbrarmos, de maneira ainda mais precisa, os seus contornos.

Em Introdução ao narcisismo (1914), texto que nos ajudou, dentre outras coisas, a pensar o caráter flexível do ideal, vimos que a consciência moral, ou melhor, a sua instituição, é “uma corporificação inicialmente da crítica dos pais, depois da crítica da sociedade, processo que é repetido quando nasce uma tendência à repressão a partir de uma proibição ou um obstáculo primeiramente externos” (FREUD, 2010b, p. 43). Ela é a instância psíquica pela qual se assegura a satisfação narcísica por meio do ideal do eu e que continuamente observa o eu, medindo-o por este último. Ademais, a consciência moral, em 1914, se relaciona ao

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Talvez aqui valha a pena retomar alguns sentidos atribuídos a consciência moral até o momento, ao menos no que tange aos textos culturais de Freud. Em Totem e tabu (1912) essa instância foi definida como a “[...] percepção interna da rejeição de um determinado desejo a influir dentro de nós (FREUD, 2005, p. 76). A consciência moral exerce seu poder contra o indivíduo coagindo-o a respeitar os tabus, i.e., as regras morais da sociedade totêmica, punindo-o mediante a culpa quando estas são desobedecidas. A origem da consciência moral se dá no ato do parricídio, ou seja, da consumação das moções pulsionais hostis do indivíduo, que passa então a se responsabilizar por elas. Já em Considerações atuais sobre guerra e morte, a consciência moral é definida como “o juiz inflexível pelo qual a têm os mestres da ética” isso porque a qualquer momento, devido ao caráter plástico dos impulsos, ela pode involuir (regredir) para um estágio de ação em que era somente “‘ medo social’ e nada mais” (2010, p. 217). Esse estágio corresponde aos primórdios da espécie humana, mas é reproduzido na história do indivíduo. De acordo com Freud, a origem da consciência moral se encontra, portanto, no medo social, que se traduz em medo da coerção (autoridade) externa.

“delírio de ser notado” presente nas doenças paranoides. A propósito, um dos grandes trunfos freudianos foi ter extrapolado esse poder – característico desses estados psicopatológicos –, capaz de observar as nossas intenções e ações e as criticar para toda a nossa vida normal, transformando-o em procedimento comum do psiquismo humano.

Assim, desse breve retorno ao conceito de consciência moral tal qual enunciado em 1914, podemos inferir ao menos três aspectos que servem à nossa investigação atual: 1) desde a Introdução ao narcisismo já havia uma relação entre a instância crítica (consciência moral) e o ideal do eu; 2) nesse escrito, a função de auto-observação era atribuída à consciência moral; e 3) a função de censura onírica também se relacionava a essa instância, apesar de se ligar ao ideal. Tendo isso em vista, podemos agora confirmar a nossa hipótese de que, em Psicologia das massas e análise do eu, a descrição do ideal do eu, apresentada por Freud, de fato se apropria de algumas das funções que em Introdução ao narcisismo (1914) concerniam à consciência moral, como as de auto-observação e de censura dos sonhos, além de se apossar da própria consciência moral enquanto tal. Entretanto, dos apontamentos feitos sobre o eu178

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A noção de ideal nas obras culturais de Freud já encontra seus esboços no texto Moral sexual cultural e doença nervosa moderna (1907) – isso se considerarmos, como aponta o escrito, o comportamento sexual exigido aos indivíduos pela sociedade da época como uma das principais metas da civilização moderna. De acordo com Freud, esse ideal concernente à “moral sexual cultural” disseminada na era vitoriana consiste no ato sexual com vistas à reprodução, dentro de um casamento monogâmico entre pessoas de sexo oposto. Em 1912, a noção de ideal se modifica e se liga à figura do pai primordial, cuja eliminação despertou a saudade nos filhos responsáveis por seu assassinato, saudade derivada da afeição outrora recalcada sentida como remorso após o crime cometido. Conforme Freud (2005, p. 152), quando a raiva contra o pai que havia impulsionado os filhos “à ação, tornou-se menor, e a saudade dele aumentou, [tornou-se] possível surgir um ideal que corporificava o poder ilimitado do pai primevo contra quem haviam lutado, assim como a disposição de submeter-se a ele”. Em Totem e tabu, a noção de ideal, pela primeira vez, se mostra atrelada ao caráter cruel do pai, ou seja, a sua violência e dominação, apesar de simultaneamente representar a sua face benevolente e protetiva. Trata-se, assim, de um pai-ideal que, mais tarde, na história da humanidade, será engrandecido e transformado em deus. Em Considerações atuais para os tempos de guerra e morte (1915), Freud chama a atenção para a idealização da