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O desejo como avesso das proibições: o totemismo e a proibição do incesto

Capítulo 2. Totem e tabu

2.1. O desejo como avesso das proibições: o totemismo e a proibição do incesto

É inegável que, para que se consolidem, as restrições relativas à moral sexual devem antes se apoiar em diversas manifestações culturais, em dimensões como a religiosa, a ética e a política. No entanto, nenhuma dessas manifestações seria possível sem o fator

imprescindível da renúncia pulsional, motor de todo e qualquer fenômeno cultural. 56 O próximo objetivo desta pesquisa consiste em descrever, a partir do livro de Freud Totem e tabu, de 1912, a origem dessas restrições morais simultaneamente ao surgimento das organizações sociais e religiosas. Sendo o fim deste trabalho uma contribuição acerca do entendimento dos elementos constitutivos da moralidade nas obras culturais de Freud, trataremos daqueles primórdios da humanidade para visualizar as protoformas dessa moralidade – ambivalência, tabu (primeira proibição moral), remorso, culpa – e seu surgimento do ponto de vista filogenético.

Totem e tabu é um livro pleno de excentricidades, mas também fundamental para a teoria psicanalítica, uma vez que constitui parte da expansão histórica e social de seu escopo. Um pouco da estranheza que o escrito suscita junto ao leitores advém, além de seu caráter inovador, da pretensão freudiana de efetuar, por meio dele, uma mediação entre estudos da antropologia social, da filologia, do folclore e, é claro, da própria psicanálise (FREUD, 2005, prefácio à primeira edição). O diálogo desta com as ciências sociais e humanas quer, por um lado, reconhecer em seus objetos de estudo um interesse especificamente psicanalítico e, por outro, contribuir ao seu esclarecimento para o proveito dessas mesmas ciências.

No entanto, esse suporte epistemológico prometido pela psicanálise57 não é uma mera explicação adicional acerca dos fenômenos socioculturais. Aplicar os pressupostos psicanalíticos

56“Toda história da civilização [Kulturgeschichte] não faz mais do que nos mostrar em que caminhos os homens se meteram para a realização dos seus desejos insatisfeitos, em função das condições cambiantes e modificadas pelo progresso técnico, do consentimento e da interdição do lado da realidade” (ASSOUN, 2012, p. 65).

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A essas pesquisas antropológicas “Freud aplica algumas categorias da psicanálise nascente: a noção de ambivalência, herdada da definição que Bleuler propõe para a esquizofrenia [a qual será crucial para a presente interpretação de Totem e tabu]; a noção de narcisismo, herdada de Karl Abraham; a função do nome, herdada de Stekel, às quais Freud acrescenta a noção de projeção e seu interesse pelo luto” (BOCCHI; GEWEHR; OLIVEIRA, 2011, p. 261, alteração nossa). Não somente isso: há também a fundamental contribuição do conceito de complexo de Édipo e das pesquisas acerca das neuroses, especialmente a neurose obsessiva, além de toda a contribuição da teoria da sexualidade que subjaz a todas as demais.

aos temas das humanidades – ou ciências do espírito (Geisteswissenschaften58 ), como eram chamadas à época – significa, primordialmente, poder entendê-los à luz da experiência do inconsciente. 59Isso supõe, consequentemente, a busca pela “outra cena” da Kultur, quer dizer, a tentativa de apreendê-la não mais simplesmente à maneira das ciências do espírito, porém

“mediante seus ‘sintomas’” (ASSOUN, 2012, p. 14), uma vez que estes últimos foram produzidos por mecanismos ainda não pensados pelas teorias não psicanalíticas contemporâneas a Freud.

Não é despropositado falar, com Assoun, em “sintomas da cultura”, estabelecendo assim uma analogia com processos patológicos individuais. Freud segue seu estudo da cultura não apenas por seu interesse específico por ela, mas também, em boa medida, porque os fenômenos culturais contribuem para esclarecer problemas oriundos da clínica com os pacientes neuróticos. Além disso, a pesquisa antropológica da época sobre sociedades contemporâneas primitivas oferece igualmente elementos para entender a neurose do indivíduo civilizado. Em contrapartida, a psicanálise também pode, por meio do exame desses neuróticos, contribuir para a compreensão dos fenômenos culturais, localizando seus pontos obscuros, isto é, o que nele subjaz “inconsciente” (ASSOUN, 2012, p. 12). Trata-se, portanto, de uma via de mão dupla, e não poderia deixar de sê-lo, dado que a “psicologia individual”,

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Freud, desde o início, impõe à psicanálise um ideal de cientificidade a fim de guiá-la em seu desenvolvimento teórico e clínico. Tal fato se expressa sobretudo na polêmica afirmação do autor de que a sua descoberta (a psicanálise) pertence ao campo das ciências da natureza (Naturwissenschaften), i.e., está junto às disciplinas da biologia, da química e da física. Contudo, a pesquisa freudiana, como sabemos, avança além do limite metodológico que elege para si mesma – pertencente ao paradigma físico-matemático de inspiração galileana –, alcançando também os interesses das ciências do espírito (Geisteswissenschaften), a filologia, a etnologia, a história etc., as quais buscam incidir sobre o fato humano (cultural). Nesse complexo movimento de simultânea diferenciação e aproximação da psicanálise em relação às ciências do espírito, insere-se um dos maiores debates filosóficos e metodológicos do século XIX: a querela dos métodos (Methodenstreit). Apesar da importância do debate em voga, Freud não se envolveu muito com o assunto dessa disputa, porém não por desconhecimento. A seu ver, a ciência propriamente dita continuava a ser a Naturwissenschaft, pelo fato de esta poder explicar (erklären) os seus objetos a partir de suposições e formulações hipotéticas confirmadas a partir dos dados observados, mantendo as hipóteses explicativas somente na medida em que elas não se mostrassem superadas por outras melhores, o que estaria de pleno acordo com o caráter rigoroso relativo à busca do conhecimento. Em contraposição a esse método explicativo, há o esforço das ciências do espírito em entender (verstehen) os objetos de seu domínio, em erigir um método capaz de explorar a sua significação. Na concepção de Freud, estranha à nossa opinião contemporânea sobre o tema, as ciências exatas possuem um caráter mais fluido do que as ciências do espírito, justamente por assumirem “o caráter de postulação convencional” de seus conceitos fundamentais (Grundbegriffe), enquanto estas últimas, dominadas que são por suas primeiras convicções, acabam criando, a partir da exigência de clareza sistemática, uma visão de mundo (Weltanschauung) totalizante. De acordo com Assoun, apesar da preferência científica de Freud, a descontinuidade entre uma e outra dessas ciências não possui muito sentido para o psicanalista, visto que ele aposta em um “monismo epistemológico”, quer dizer, em um “espaço de jogo entre natureza e espírito”, sendo este apenas um “pedaço” daquela (ASSOUN, 2012, p. 33- 41) Desse modo, o “espírito”, entendido no sentido de cultura, deve ser investigado com os mesmos métodos que os outros objetos (naturais) sobre os quais a ciência se debruça (ver MEZAN, 2011).

59“São as ciências do homem, portanto, – no caso a etnologia – que fornecem os ‘temas’, ao passo que a psicanálise transmite os ‘pontos de vista’, os seus, aqueles que foram adquiridos no terreno de sua experiência própria (clínica) e elaborados por meio de suas concepções (metapsicológica), transformando por essa via a problemática” (ASSOUN, 2012, p. 83).

como diz Freud , “[...] é, também, desde o início, psicologia social” (FREUD, 2011b, p. 14). A partir daí, entende-se que não há vida humana ou mesmo possibilidade de narrativa individual que não necessite da relação com os outros para existir. A vida mental dos indivíduos reflete essa carência, por estar invariavelmente comprometida com a presença seja dos objetos amorosos, seja dos objetos de rivalidade. A condição humana, por excelência, diz respeito ao fato de que ninguém passa pelo mundo sem constituir vínculos, sem direcionar seus afetos a outras pessoas. Essa complementaridade entre o campo do indivíduo e o do social faz com que “‘numerosos fatos’ da chamada psicologia individual só sejam plenamente compreensíveis pelo viés de uma psicologia coletiva”. Esta última é considerada, portanto, “uma extensão (Ausdehnung) da psicologia individual” (ASSOUN, 2012, p. 87).

Desse modo, não é por acaso que a referência epistemológica inicial de Freud em Totem e tabu seja a Völkerpsychologie (“psicologia dos povos”) de Wilhelm Wundt. Este é um dos principais trabalhos que servem de contraponto às proposições da psicanálise e que lançam a “temática” sobre a qual ela se detém. Outro contraste se dá com as descobertas da escola de psicanálise de Zurique (junguiana) 60, com a qual Freud começava a entrar em um clima desarmônico em razão das dissensões com Carl Jung, especialmente em relação ao recurso deste ao “material coletivo”, que, para Freud, ameaçava “dissolver a referência ao sujeito inconsciente”61. É, no entanto, a maneira como Freud resolve montar o problema da psicologia dos povos em Totem e tabu o que cria a marca original desse escrito e estabelece a posição sui generis da psicanálise sobre o assunto:

Trata-se portanto, [...] de redefinir o momento coletivo através do “ponto de vista” do sujeito inconsciente. Empreendimento de realização e de subversão do próprio projeto de Volkerpsychologie: em lugar de algum “inconsciente dos povos” ou de um “inconsciente coletivo”, trata-se de reaprender o

coletivo por intermédio da lógica do sintoma, descoberta no plano individual (ASSOUN, 2012, p. 84 - 5, grifo nosso).

É a essa estratégia que Freud recorre e que podemos vislumbrar em todos os capítulos de Totem e tabu, qual seja, a remissão da psicologia dos povos primitivos aos mecanismos

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Além dos contrastes com as teorias de Jung e Wundt, Totem e tabu ainda conta com diversas outras contribuições de pesquisas de cientistas renomados do século XIX. Dentre eles, Herbert Spencer, J. G. Frazer (autor mais citado e porta-voz de grande parte das citações freudianas no livro), A. Lang, E. B. Tylor (teoria do animismo), Robertson Smith (refeição totêmica), Evans-Pritchard, James JasperAtkinson, Darwin (horda primeva), Durkheim (nova concepção de projeção), McLennan (quem primeiro reconhece a importância do totemismo), Westermarck (ambivalência dos sentimentos dos selvagens). Sobre isso, ver Augras (1989).

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Ver Assoun (2012, p. 84). O autor observa ainda que Totem e tabu é contemporâneo da ruptura de Freud com Jung.

psíquicos em jogo nos indivíduos neuróticos – tal como compreendidos pela psicanálise. Freud traça as devidas analogias entre os dois casos para daí retirar suas próprias conclusões, pensando enriquecer, assim, tanto o trabalho psicanalítico quanto as pesquisas relativas às ciências do espírito, promessa inicial do prefácio do livro.

O totem e a instituição do totemismo62 são assuntos centrais da primeira parte do escrito de 1912, denominada “O horror ao incesto” (Inzestcheu). Poder-se-ia, de saída, questionar o porquê desse título: qual a relação existente entre o tema do totem e a proibição do incesto? Aos poucos essa questão será respondida, mas antes talvez seja preciso compreender a tarefa que Freud se impõe e a definição dos conceitos principais utilizados para então compreender aquela pergunta.

Segundo o autor, a vida mental dos chamados povos selvagens apresenta um grande interesse psicanalítico, na medida em que se pode ver nela “[...] um retrato bem conservado de um primitivo estágio de nosso próprio desenvolvimento” (FREUD, 2005, p. 12, grifo nosso). É, portanto, em razão desse paralelo que a pesquisa sobre os aborígenes australianos, tal como descrita pelos antropólogos63, passa a ser o ponto de partida de Freud no tocante a sua contribuição para o entendimento da cultura. Ao longo do estudo, a psicologia dos selvagens é aproximada à vida anímica das crianças e à dos neuróticos64; no caso destes

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Para Augras (1989, p. 6), Freud não se opunha à concepção de McLennan (pesquisador das instituições citado em Totem e tabu) que “[...] considerava que todas as civilizações teriam passado necessariamente por uma fase totêmica”. Ao contrário, a hipótese deste acaba por fornecer uma outra dimensão ao problema do totemismo e à sua relação com a origem da cultura. Quer dizer, quando se pensa o sistema totêmico enquanto uma primeira fase das culturas em geral, é inevitável que da tentativa de compreensão deste fenômeno se siga também o esclarecimento de muitas das condições para a formação da própria cultura, o que, na presente interpretação, constitui o escopo da pesquisa freudiana.

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Conforme Augras (1989), os antropólogos do século XIX (e parte do século XX), em geral, possuíam muitas afinidades teóricas e ideológicas, dentre elas a ideia de progresso, proveniente do iluminismo, a qual colocava como centro de todos os valores sociais aqueles condizentes à cientificidade e à racionalidade e, por consequência, a afirmação da “superioridade” da civilização ocidental, posta enquanto sustentáculo desses valores. Nessa perspectiva, os povos “exóticos” são classificados a partir do parâmetro da cultura do Ocidente. O pressuposto encontrado em meio a essa ideologia é que “a história da humanidade caminha numa direção única, clara e linear, que vem desabrochar na Europa do século XIX. As civilizações do passado são vistas como etapas sucessivas de um grande processo civilizatório, que tornou possível a evolução da raça humana, no sentido de seu aperfeiçoamento. [...] [Assim, ] povos muito exóticos, com costumes muito estranhos, são então considerados como sobreviventes de épocas remotas do passado comum a toda humanidade. Por isso são chamados de primitivos, pois os cientistas julgam que são povos que ficaram fixados numa etapa ultrapassada do processo de civilização” (AUGRAS, 1989, p. 15-16, grifo nosso) A partir do século XX, essa perspectiva é rechaçada pela antropologia moderna, que não se compromete a sustentar uma narrativa histórica linear, tampouco a supremacia da cultura ocidental.

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A premissa que subjaz a esse pensamento diz respeito à “[...] crença na analogia entre primitivo e neurótico. Essa equação, selvagem=primitivo=neurótico, constitui a base de toda a demonstração de Freud” (AUGRAS, 1982, p. 5).

últimos, entre outros motivos, devido ao caráter primitivo que reside neles concernente à regressão aos estados infantis do desenvolvimento, própria a essa condição de adoecimento.65

Freud pensa que a comparação estabelecida entre os mecanismos psíquicos dos povos primitivos e os dos indivíduos civilizados tem maior poder explicativo quando posta em termos evolucionistas, ou, mais especificamente, em termos ontogenéticos e filogenéticos, a partir das ideias de naturalistas como Ernst Haeckel. Discípulo de Darwin, Haeckel estabeleceu a chamada “Lei de Recapitulação”, de que a reflexão psicanalítica se apropria como suporte, e segundo a qual “a história da evolução individual ou ontogenia é uma repetição breve, rápida, uma recapitulação da história evolutiva paleontológica ou da filogenia, conforme as leis da hereditariedade e da adaptação ao meio” (HAECKEL apud ASSOUN, 2012, p. 64). Vale a pena tentar perceber nesse passo de Freud quais são os efeitos da transposição da tese biogenética para o âmbito do psiquismo humano, e, sobretudo, o que a psicanálise pode ganhar com tal assimilação. De acordo com Assoun, essa lei se mostra de grande valor para a psicanálise, ressonância que se apoia,

de um lado, no fato de que ela encontra no desenvolvimento individual revelado pelo processo neurótico os vestígios de elementos pré-históricos concernentes à “espécie”, de outro lado, no fato de que ela mobiliza as aquisições no plano individual para esclarecer os aspectos do plano “específico”. Em suma, ela funda uma “comparação da infância do indivíduo com a pré-história dos povos” e assume, além da dimensão “biogenética”, um alcance sociocultural (ASSOUN, 2012, p. 64).

As consequências desse método comparativo serão extraídas ao longo de toda a elaboração teórica de Totem e tabu, porém, no momento, é necessário explicitar os argumentos estruturantes do primeiro capítulo do livro. Conforme Freud, uma das características mais curiosas dos povos aborígenes contemporâneos é que, apesar do seu modo de vida precário, da simplicidade de suas tarefas diárias e da maneira impulsiva com que lidam com seus objetos sexuais, esses indivíduos “estabelecem para si próprios, com o maior escrúpulo e o mais severo rigor, o propósito de evitarem relações incestuosas”

(FREUD, 2005, p. 13). Mais ainda, parece que todo fator socializador desses seres humanos primitivos está voltado para tal evitação. Entretanto, é preciso assinalar desde já que a noção de incesto na perspectiva desses povos não se emparelha necessariamente com a relação

65“Um neurótico [...] apresenta invariavelmente um certo grau de infantilismo psíquico: ou falhou em libertar-se das condições psicossexuais que predominavam em sua infância ou a elas retornou; duas possibilidades que podem ser resumidas como inibição e regressão no desenvolvimento” (FREUD, 2005, p. 27).

sexual realizada com parentes consanguíneos, i.e., com os chamados familiares na concepção moderna de parentesco. 66 O incesto aborígene consiste em relações sexuais entre pessoas do mesmo clã totêmico, quer dizer, pessoas que compartilham da proteção do mesmo totem. 67

O totem, na maioria dos casos, é um animal, mas também pode ser um vegetal ou fenômeno da natureza, que cumpre a função de ser “o antepassado comum do clã”, capaz de poupá-lo dos males em geral, porém, de modo ambíguo, capaz também de infligir-lhe as piores sanções, até mesmo relativas à morte, caso os membros do clã desobedeçam as “obrigações sagradas” instituídas por ele: “Entre os australianos, o lugar das instituições religiosas e sociais que eles não têm é ocupado pelo sistema do ‘totemismo’” (FREUD, 2005, p. 13).

A exogamia68 é uma dessas principais obrigações, juntamente com a proibição de matar o animal totêmico. A característica do totemismo que, segundo Freud (2005, p. 14), mais “atraiu o interesse dos psicanalistas” foi, a princípio, a relação que o totem estabelece com a exogamia, o que era considerado um “ponto cego” para a própria antropologia (ASSOUN, 2012, p. 93). Saber de que modo esse vínculo se formou é um dos desafios de Freud nesse percurso. 69 O que aparece como fato destacado e esclarece ainda mais a questão da proibição das relações sexuais e do casamento entre pessoas do mesmo clã é que nenhuma violação nesse sentido é punida automaticamente70 pelas partes culpadas, ao contrário do que acontece na maioria dos casos de desobediência das regras do totem. A transgressão da barreira do incesto é “vingada da maneira mais enérgica por todo o clã, como se fosse uma questão de impedir um perigo que ameaça toda a comunidade ou como se se tratasse de alguma culpa que a estivesse pressionando” (FREUD, 2005, p. 15, grifo nosso), não sendo portanto, restrita àqueles indivíduos diretamente envolvidos no “crime” do incesto. Dado o extremismo da medida punitiva que é aplicada nesses casos, tem-se razão para suspeitar que o incesto fosse uma ameaça ainda mais profunda do que aquelas outras a que invariavelmente estão sujeitos os clãs totêmicos. Como provam as citações do antropólogo James Frazer

66“O laço totêmico é mais forte que o de família, em nosso sentido” (FREUD, 2005, p. 111). 67

“[O]s termos de parentesco que dois australianos mutuamente se aplicam não indicam necessariamente qualquer consanguinidade, como os nossos indicariam: representam relacionamentos sociais mais do que físicos” (FREUD, 2005, p. 17).

68“[O] erudito McLennan observa que todos os povos conhecidos seguem uma ou outra das regras exclusivas de casamento; proibição de casar dentro da tribo, que McLennan batiza de exogamia, ou proibição de casar fora da tribo, a endogamia” (AUGRAS, 1982, p. 5).

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Além do capítulo I, ênfase a essa pesquisa é dada no capítulo IV de Totem e tabu, nomeada “O retorno do totemismo na infância”.

70“Punição automática”, segundo Freud (2005), é aquela efetuada pelo próprio sujeito, concomitantemente ao seu ato de transgressão, sem precisar de coação externa pra isso.

(2005) – espraiadas ao longo de Totem e tabu –, a fim de sustentar a moral totêmica, a prescrição da exogamia deve ser obedecida a todo custo pelos homens e mulheres primitivos, sob a penalidade de morte para aqueles que, por alguma razão, ousarem descumpri-la.

Assim, tendo por objetivo fugir ao perigo oriundo das situações incestuosas, os primitivos criam para si os mais variados métodos de evitação. O horror ao incesto – seria mesmo horror? – motiva-os a praticarem as mais esdrúxulas ações com o intuito de manter-se o mais distante possível das pessoas que poderiam de algum modo ameaçá-los no sentido endógamo. O conteúdo dessa ameaça fica-se sabendo por Freud: ela diz respeito ao fatal desejo de satisfação das pulsões sexuais proibidas nesses mesmos objetos temidos pelo clã. O medo que advém à consciência dos selvagens é, portanto, interpretado pela psicanálise como sendo o sinal, a fachada erigida para fornecer proteção contra os desejos inconscientes que esses indivíduos possuem por seus parentes. Alguns dos comportamentos de evitação dos povos primitivos, tais como não entrar na casa dos familiares se o objeto interdito (membro da família) estiver lá, evitar seguir as suas pegadas, esconder-se dele, ou mesmo não pronunciar o seu nome (FREUD, 2005), são todas maneiras de garantir a salvaguarda da moral, ou seja, o cumprimento da proibição do incesto.

Essas medidas deflagram o caráter minucioso e cada vez mais incisivo das restrições em jogo no totemismo – e é por meio da ressignificação desses recortes antropológicos condizentes aos métodos de evitação dos primitivos que a pesquisa psicanalítica apresenta a sua particular contribuição sobre o assunto. Ela denuncia o avesso das proibições, aquilo que subjaz à exacerbada preocupação dos primitivos em seguir à risca as leis totêmicas, em especial a da exogamia. Na concepção freudiana, o medo ligado à transgressão da lei do