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Os invertidos contra a moral sexual “cultural”

Capítulo 1. Moral sexual cultural e doença nervosa moderna

1.3. Os invertidos contra a moral sexual “cultural”

Outro caso exposto por Freud como sendo desviante da sexualidade chamada normal e, por conseguinte, dos propósitos da cultura, concerne aos homossexuais 44 ou invertidos 45 (FREUD, 2002). Como se sabe, esses indivíduos possuem, enquanto objetos

44“Homossexualidade: termo criado em 1869 pelo médico húngaro Karoly Maria Kertbeny (1824-82) para designar

todas as formas de amor carnal entre pessoas do mesmo sexo biológico. Entre 1870 e 1910, o termo se impôs, substituindo assim as antigas denominações (sodomia, inversão, uranismo, pederastia, safismo, lesbianismo). Faz então par com a palavra heterossexualidade, forjada em 1880” (ROUDINESCO, 2008, p. 81, n. 12).

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Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, os invertidos não deixam de entrar no quadro das perversões e, portanto, na categoria dos indivíduos perversos, tratada no texto acima. Todavia, nem sempre a homossexualidade e a perversão foram identificadas uma à outra. Entre os gregos, na Antiguidade, a prática homossexual qualificava-se como pederastia e pautava-se na relação sexual entre dois homens: o mestre e o aprendiz, o primeiro deles sendo um adulto (erastes) e o segundo um efebo (erônemos). A pederastia, além de concernir a uma atividade sexual e amorosa entre dois homens, mantinha uma relação intrínseca com o saber.

sexuais, pessoas do mesmo sexo, que, por vezes, são seu único objeto de prazer. Quando ocorre essa exclusividade no tocante ao objeto de desejo, os homossexuais são chamados por Freud de invertidos absolutos. No entanto, existem ainda outros indivíduos que não possuem uma aversão incapacitante no que diz respeito ao ato sexual com pessoas do sexo oposto. Alguns desses invertidos suportam bem a mudança de objeto e, nesse sentido, não demandam exclusividade no tocante ao sexo, como é o caso dos invertidos anfígenos. O terceiro e último grupo de categorização que aparece no texto de 1905 concerne aos invertidos ocasionais, ou seja, aqueles indivíduos que, em determinadas situações da vida, em razão da inacessibilidade do objeto sexual normal, tomam pessoas do mesmo sexo para a atividade sexual.

Apesar de os invertidos serem tratados no primeiro capítulo do livro, dedicado à exposição das aberrações sexuais, o posicionamento da psicanálise em relação à peculiar escolha objetal dessas pessoas é clara: “A investigação psicanalítica opõe-se com toda a firmeza à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular” (FREUD, 2002, p. 24). Qualquer um em determinado momento da vida é capaz de fazer uma escolha homossexual, aliás, até mesmo os heterossexuais mais convictos já realizaram-na no inconsciente. Nesse sentido, o que Freud deseja destacar nos invertidos é apenas a sua variação pulsional no tocante à escolha de objeto – e ao alvo46, caso se compare à norma heterossexual –, mas essa variação, de nenhum modo, pode ser entendida como uma espécie de degeneração, pois, concomitante à escolha homossexual, não há, necessariamente, nenhum comprometimento de outras funções vitais (FREUD, 2002). Além disso, a escolha heterossexual também não escapa aos questionamentos freudianos:

Isso posto, considerava-se a pederastia, não um desvio referente à sexualidade normal e, por decorrência disto, um fator de perturbação da moral comunitária, mas antes “integrada à polis como uma cultura necessária ao funcionamento da norma” (ROUDINESCO, 2008, p. 50). Somente se configuravam como perversos aqueles que se utilizavam dessa inclinação à sodomia para recusar de vez a relação sexual com as mulheres e sua requerida participação na ordem reprodutiva. Foi a partir da época cristã, segundo Roudinesco, que o homossexual foi tomado por paradigma dos perversos, pois se julgava que sua escolha de objeto sexual recusava a diferença natural entre os sexos, além de impedir o ato de união genital responsável pela reprodução. Foi, portanto, apenas no século XIX, à luz da compulsiva categorização das práticas sexuais pela medicina psiquiátrica e da consequente mudança no entendimento da perversão (ou melhor, das perversões), que ocorreu aos médicos fazer a distinção entre “bons perversos” e “maus perversos”, de acordo com a possibilidade de recuperação e tratamento de seu estado. Desse modo, “o homossexual foi catalogado segundo sua preferência [...] e se torna perverso porque escolhe seu semelhante enquanto objeto de prazer” (ROUDINESCO, 2008, p. 81-82). Porém, apesar dessa última referência à homossexualidade e à perversão se assemelhar bastante àquela feita pela psicanálise, especialmente nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, “Freud não será herdeiro dessa ciência da norma senão para contestar todos os seus fundamentos” (ROUDINESCO, 2008, p. 83).

46“Considera-se como alvo sexual normal a união dos genitais no ato designado como coito, que leva à descarga da tensão sexual e à extinção temporária da pulsão sexual (uma satisfação análoga à saciação da fome” (FREUD, 2002, p. 28).

No sentido psicanalítico [...] o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química (FREUD, 2002, p. 24).

Não obstante a pesquisa médica do século XIX ainda incorrer na condenação das práticas homossexuais, tentando enquadrar esses indivíduos no quadro das degenerescências 47

, Freud (2002) mantém o posicionamento contrário a esse discurso científico de seu tempo. Em 1905, ao invés de atribuir aos invertidos qualquer sinal de deficiência funcional ou destacar desvios graves em relação à norma, ressalta neles um alto

“[...] desenvolvimento intelectual e uma cultura ética particularmente elevados”, portanto, uma especial contribuição ao fenômeno cultural; isso também ocorre no texto de 1908, nos termos de uma “frequente aptidão especial do impulso sexual [dos invertidos] para a sublimação cultural” (FREUD, 2011a, p. 17). É interessante notar que mesmo a posse de tais qualidades não faz com que esses indivíduos deixem de se situar à margem da moral sexual da época. Por maior que seja o elogio freudiano às contribuições culturais desse grupo, elas não são suficientes para torná-lo desejável à sociedade, em razão da moral sexual em voga. Esta última mantém os homossexuais excluídos, com a justificativa de que eles não auxiliariam no progresso das realizações humanas, que, segundo essa mesma lógica, consistiriam, fundamentalmente, na coadunação da sexualidade em vistas da reprodução no interior do matrimônio.

Apesar de Freud se isentar de fazer inapropriados julgamentos morais sobre o grupo dos invertidos, ele acusa que as formas mais acentuadas tanto da homossexualidade quanto das perversões tornam os homens “socialmente inúteis e infelizes” (FREUD, 2011a, p. 18). Isso acontece, segundo ele, porque esses indivíduos são impedidos de realizar seus anseios sexuais mais genuínos e, assim, adoecem por conta da imposição de um modelo de funcionamento ao qual não podem aderir em razão da intensidade pulsional que mantêm direcionada a objetos não privilegiados pela moral sexual. Aliás, é a partir da constatação da existência de uma diferenciação no tocante à intensidade pulsional dos indivíduos que reside

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Aqui vale lembrar o elogio de Foucault à psicanálise que implica o problema da degenerescência. . Cito: “[...] a posição singular da psicanálise no fim do século XIX não seria bem compreendida se desconhecêssemos a ruptura que operou relativamente ao grande sistema das degenerescências: ela retomou o projeto de uma tecnologia médica própria do instinto sexual, mas procurou liberá-la de suas correlações com a hereditariedade e, portanto, com todos os racismos e eugenismos. [...] na grande família das tecnologias do sexo que recua tanto na história do Ocidente cristão e dentre as que empreenderam, no século XIX, a medicação do sexo, ela foi, até os anos 1940, a única que se opôs, rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais do sistema perversão- hereditariedade-degenerescência” (FOUCAULT, 2011, p. 130).

uma das “injustiças sociais mais evidentes”, segundo Freud (2011a, p. 19, grifo nosso) : “o fato de o padrão cultural exigir de todas as pessoas a mesma conduta na vida sexual”. Como se pode entrever, essa exigência da moral sexual possui consequências gravíssimas do ponto de vista social. Admitir a diferença quanto à força pulsional dos indivíduos é também assumir que, para haver um bom funcionamento da sociedade, deve-se conseguir promover diferentes níveis de sacrifícios individuais em vistas da coadunação aos padrões morais. Para Freud, esse é um problema cultural importante, e a tentativa de homogeneização da conduta sexual humana reforça, assim, o engendramento da injustiça no âmbito afetivo individual, a qual necessariamente transborda para as demais dimensões da vida coletiva. Uma das maneiras mais fáceis de se escapar a esse tipo de demanda injusta é por meio do seu descumprimento, mas, ao fugirem dessa forma às obrigações morais, os indivíduos sofrem duras consequências punitivas (FREUD, 2011a, p. 19). Os comportamentos sexuais que praticam, concretizados à revelia da moral comunitária, podem levá-los, por exemplo, a todo tipo de marginalização social ou a dificultosas situações no matrimônio (quando este pode existir apesar dos desvios), o que é extremamente penoso numa sociedade que reverencia este último como sendo o locus ideal da realização sexual humana.

Quando a história da evolução do impulso sexual chega ao ápice da restrição, com o terceiro estágio cultural em curso, as situações desviantes se ampliam, e as já existentes se tornam ainda mais distantes do ideal moral (FREUD, 2011a). Pensando nesse momento e na insatisfação generalizada que se constata a partir dos abundantes casos de doença nervosa de sua época, Freud (2011a, p. 19-20) se questiona: “[...] 1) que dever a exigência cultural do terceiro estágio impõe ao indivíduo? 2) a satisfação sexual legítima permitida é capaz de oferecer uma indenização aceitável à renúncia? e 3) qual a relação entre os possíveis prejuízos causados por essa renúncia?”.

A resposta dada à primeira das questões diz respeito a abstinência sexual. De fato, é isso que se requer do comportamento sexual de homens e mulheres, ao menos antes da tão esperada ocasião do casamento. Os infelizes que não alcançam o matrimônio, estão, do ponto de vista da moral sexual cultural, condenados à perpétua renúncia aos prazeres sexuais da vida. Sua abstinência, portanto, ultrapassa a de todos os outros que, mesmo tardiamente, conseguem obter um par para o cumprimento das obrigações estabelecidas por essa moral. No entanto, os resultados desse estado de coisas vão além disso. A abstinência, como já vimos acima, pode causar transtornos, consequências psíquicas graves no indivíduo e também os mais detestáveis reflexos sociais ligados a isso. Portanto, em nenhum sentido se pode dizer que os seres humanos passam tranquilos por tal ampla experiência de renúncia, como queriam

afirmar as autoridades médicas do tempo de Freud. Essa abstinência, ao contrário, se mostra prejudicial e extremamente exaustiva para as pessoas que são coagidas a encará-la. “Podemos dizer que a tarefa de domar um impulso tão poderoso quanto o impulso sexual que não pelo caminho da satisfação pode exigir todas as energias de um ser humano”, escreve Freud (2011a, p. 20). Esses energias, aliás, do ponto de vista cultural, deveriam ser despendidas em prol da manutenção da ordem social e da elevação das atividades psíquicas do homem, tais como as expressões religiosas, artísticas e científicas. O que fornece a própria possibilidade de efetivar estas últimas, como visto, é o processo sublimatório. O único problema está em que a imensa maioria de pessoas não é afeita à dominação da pulsão sexual pelo mecanismo psíquico da sublimação48, pois, para que isso ocorra, é preciso ao menos poder suportar o adiamento da pulsão sexual, o que supõe nos indivíduos “talentos e disposições especiais” (FREUD, 2014, p. 24) para a recondução dessa energia para os novos meios de satisfação.

A resposta de Freud à terceira questão colocada por ele – se haveria compensações sexuais oferecidas no casamento legítimo pelo cumprimento da abstinência que se praticou até sua concretização – é negativa. Um dos motivos para essa resposta é a impossibilidade de o estado matrimonial suprir as demandas do impulso sexual. Além disso, a espera excessiva para a realização das atividades sexuais requerida pela educação e pela cultura aos jovens pode causar danos irreparáveis para a sua saúde. Essa demora no desenvolvimento sexual, que, por algum tempo, pode até mesmo ser desejável, se mantida ao longo da vida adulta fatalmente resulta em prejuízos capazes de levar os jovens às doenças nervosas. É verdade que a constante luta entre as pulsões sexuais e os deveres morais pode, por um lado, forjar um bom caráter individual, capaz de oferecer resistência em favor de atitudes éticas; porém, a energia utilizada para sustentar isso pode ser tão elevada a ponto de consumir conjuntamente toda a disposição desse indivíduo para a conquista de seu espaço na sociedade. Esse tipo de lógica dos mecanismos pulsionais deflagra a ambiguidade dos esforços morais e, de forma geral, das atividades sublimatórias, que disputam suas forças com aquela oriunda das pulsões sexuais. No entanto, Freud (2011a, p. 22) possui um posicionamento intrigante, que o situa a favor destas últimas e, de certo modo, contra o movimento abrangente de aceitação das prescrições culturais:

48“Somente uma minoria consegue domar o impulso pela sublimação, pelo deslocamento das forças sexuais do objeto sexual para objetos culturais mais elevados, e provavelmente só o consegue temporariamente, sendo isso menos fácil na juventude fogosa. Os demais se tornam em sua maioria neuróticos ou sofrem prejuízos de outra natureza” (FREUD, 2011, p. 20).

De maneira geral, não tive a impressão de que a abstinência sexual contribui para formar homens de ação, enérgicos e independentes, ou pensadores originais, libertadores audaciosos ou reformadores, e sim com maior frequência pessoas fracas bem-comportadas, que depois afundam na grande massa, e que costumam seguir de modo recalcitrante os impulsos dos indivíduos fortes.

É fato que a repressão das pulsões sexuais pode ir longe demais, provocando, assim, danos insuperáveis. Até mesmo o prazer proveniente das atividades sexuais dentro do matrimônio pode se comprometer, uma vez que as restrições não cessam de existir, até mesmo quando essa exigência cultural é finalmente cumprida. Quando isso ocorre, ao invés do prometido prazer do usufruto dos corpos, os noivos têm ainda que arcar com o controle sexual via métodos contraceptivos, que prejudicam o sexo e chegam a causar o medo do próprio ato, com a decepção física e outros desencantos oriundos da constante convivência entre quatro paredes, e com a “dupla” moral que vigora a partir dessas falhas e desilusões incontornáveis, às quais todo casamento é susceptível (FREUD, 2011a).

O fundamental a se notar nessas dinâmicas entre pulsão e exigências culturais, além do consequente tolhimento das atividades sexuais, é que, claramente, o oposto também ocorre. Ou seja, a maneira pela qual uma pessoa age sexualmente é também capaz de determinar o seu comportamento na cultura e o modo como ela estabelecerá laços com os demais indivíduos da sociedade. Em outras palavras, não são apenas as exigências ideais no tocante à moral que detêm o poder de influenciar o comportamento sexual, mas este possui igualmente uma força capaz de engendrar novos arranjos interpessoais no seio da sociedade, em virtude das variadas formas de investimento libidinal que é capaz de produzir. Segundo Freud (2011a, p. 23-24) :

O comportamento sexual de uma pessoa muitas vezes é exemplar para o seu modo de reagir nas demais situações da vida. Quem, na condição de homem, conquistar energicamente o seu objeto sexual, provavelmente usará energia semelhante ao perseguir outros objetivos. Quem, no entanto, renunciar à satisfação de seus fortes impulsos sexuais por motivos variados, se comportará de modo mais conciliador e resignado do que energético nas demais situações da vida.

Em suma, é inegável que o comportamento individual sexual influencia diretamente na tessitura e nos desdobramentos sociais. Freud pretende exemplificar isso a partir da vida intelectual das mulheres, a qual depende de todos esses fatores. O problema da capacidade intelectual delas, então, acaba sendo um problema mais amplo, acerca da condição do conhecimento e de sua relação com as restrições da cultura e a pulsão. As mulheres, para Freud,

possuem a curiosidade sexual desincentivada pela cultura, o que repercute no pouco valor que dariam ao conhecimento e à busca por ele. Nesse sentido, a explicação para a “inferioridade” intelectual delas provém do impacto de fatores sociais em suas vidas sexuais, mais precisamente, da intensa repressão sexual sofrida por elas ao longo do tempo. Freud (2011a, p. 24), portanto, desconsiderava a hipótese de seus contemporâneos que atribuía a inferioridade do intelecto a motivos de incapacidade física e mental49 das mulheres. Isso porque, segundo a psicanálise, a “pulsão de saber”, presente no desenvolvimento individual, seria em grande medida despertada pela investigação da própria criança acerca dos problemas sexuais infantis.

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De acordo com Freud (2002, p. 72), a questão inicial formulada pelos seres humanos geralmente diz respeito ao seguinte “enigma”: “de onde vem os bebês?”, primeira curiosidade marcante da vida sexual. Contudo, é importante ressaltar que é a partir desses questionamentos sexuais originários que se determina a abertura do espaço para as demais perguntas sobre a existência, de onde a importância dessa mesma abertura para homens e mulheres. Também se percebe que mesmo essas rápidas considerações do texto acerca da inferioridade intelectual feminina – que a princípio parecem deslocadas do problema da “moral sexual” – possuem grandes consequências para uma teoria psicanalítica da cultura. Como nos demonstra Freud, até mesmo a questão do conhecimento, considerada tão nobre e essencial a qualquer movimento civilizatório, encontra-se intrinsecamente conectada à vida sexual humana, portanto, à faceta animalesca dos indivíduos – a ponto de qualquer modificação feita na esfera pulsional causar impactos de extrema relevância no âmbito da cultura.

Freud retoma a questão da abstinência no final do texto, dessa vez para dar mais ênfase aos caminhos marginais tomados pelo indivíduo em sua incessante busca por satisfação sexual. Como se viu, a moral sexual cultural não demanda uma completa isenção sexual por parte dos indivíduos, mas antes uma renúncia bem específica, quanto à união genital com o sexo oposto. Portanto, desde que os indivíduos consigam manter certa fachada virtuosa, ou mesmo se casem após já terem praticado o ato proibido do coito, o sexo pré-marital não necessariamente se torna uma ameaça ao lugar deles na cultura. O mais importante para se manter a aprovação social é que essas transgressões não sejam expostas à

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Sobre isso, destaque-se nota do tradutor da edição brasileira comemorativa dos 100 anos de “Moral sexual ‘cultural’ enervosismo moderno” (FREUD, 2011, p. 24, n. 6) : “Professor de neurologia de Leipzig, Paul Julius Moebius (1853-1907) publicou, em 1901, Tratado da debilidade intelectual fisiológica da mulher, que considerava um ser inferior, sujeito a manifestações essencialmente instintivas, situado a meio caminho entre a criança e o homem na escala das capacidades físicas e mentais”.

50“Suas relações [da pulsão de saber] com a vida sexual, entretanto são particularmente significativas, já que constatamos pela psicanálise que, na criança, a pulsão de saber é atraída de maneira insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e talvez seja até despertada por eles. ”

comunidade, a não ser no caso dos homens, que possuem também nesse sentido uma enorme vantagem em relação às mulheres, ao serem poupados do juízo da sociedade ao admitirem suas relações sexuais antes do tempo permitido.51

O grande problema cultural está em que a restrição específica ao encontro genital traz a permissão tácita de todas as outras práticas sexuais antes do casamento, que ficam de fora do escrutínio da moral sexual, favorecendo paradoxalmente as inclinações humanas aos comportamentos sexuais perversos que outrora se desejava evitar. Assim sendo, parte dos indivíduos sente-se livre para se lançar a toda sorte de práticas autoeróticas e prazeres preliminares, como é o caso da masturbação52 e mesmo da homossexualidade, sem, com isso, se verem em oposição à norma sexual. Todavia, pensando no conjunto desses atos sexuais desviantes, Freud (2008, p. 25) observa que eles “[...] estragam de maneira completa a preparação para o matrimônio, que, segundo a intenção da moral cultural, deveria ser o herdeiro único dos anseios sexuais [sexuelle Strebung]”. Sua opinião não pretende proferir juízo de valor, mas antes se baseia na observação clinica que faz dos doentes nervosos, a qual revela que essas formas de relação perversas juvenis, tanto quanto o longo tempo de represamento libidinal exigido pela cultura, causam danos insuperáveis ao exercício da sexualidade.

Como visto, há todo um trabalho moral no tocante à sexualidade humana que visa, sobretudo por meio da renúncia pulsional, promover e manter a cultura. No entanto, essa intenção de favorecer os processos culturais implica, como efeito colateral, certa homogeneização dos indivíduos, que concerne à adequação de toda a diversidade de arranjos pulsionais existentes a uma única forma de expressão: aquela relativa à moral sexual cultural. É desse modo que esta última se torna o modelo privilegiado da cultura, o mandamento a que