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A desobediência civil: Fundamentações solidárias

No documento brunamilheirosilva (páginas 168-172)

Parte II: Perspectivas ético-religiosas em Mohandas Karanchand Gandhi e Martin Luther

Capítulo 5: A tomada de consciência: Construindo uma nova ética com base em

5.1 A desobediência civil: Fundamentações solidárias

Um primeiro aspecto de extrema importância para compreensão da história de vida e atuação política dos personagens implica numa leitura atenta da prática de desobediência civil. Ela acabou tornando-se aos poucos, no desenrolar da história de vida deles algo tão significativo que, aos poucos, acabou contagiando outros indivíduos,

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transmutando-se num emblema e uma marca definitiva em suas respectivas biografias. De uma forma geral, pode-se dizer que ambos se utilizaram desse recurso em algum momento de suas trajetórias como lideranças políticas, mas principalmente como lideranças religiosas, devendo ser consideradas obviamente as particularidades de cada um. Para a presente análise essa configuração torna-se fundamental, pois a ideia de desobediência civil embasa grande parte das ações de Gandhi e King e sem essa consideração a leitura poderia tornar-se incompleta ou até mesmo insuficiente. A proposta de considerar esse aspecto como um exemplo de fundamentação solidária baseia-se no pressuposto de que a solidariedade está relacionada a uma vivência comum e ao compartilhamento de princípios para a interação social, tornando-se uma base de sentido para os personagens e seus seguidores.

Para compreender a noção de desobediência civil é necessário pensá-la como um contraponto ao descumprimento dos direitos civis, já que estes não estavam presentes na legislação equitativamente nos contextos vivenciados pelos personagens. Dessa forma, acredita-se que a necessidade de criar vínculos de solidariedade está relacionada à ineficácia dos direitos civis e do direito de forma geral, em abarcar de forma minimamente equilibrada os diversos segmentos sociais. A percepção da desobediência civil adotada em conjunto está aqui relacionada ao surgimento de um sentimento de solidariedade em relação às outras pessoas, a constituição de uma comunidade de interesses. Esse ambiente favorável à existência de relações amistosas frente a um sistema desigual é um dos principais aspectos solicitados pela desobediência civil.

Os dois personagens exerceram um papel de força motriz do movimento e nele mantiveram-se durante todo o processo, ao menos até a morte de ambos, ainda que muitas vezes não diretamente. O mais importante nesse momento é compreender que suas atuações, ou dito de forma mais objetiva, suas lideranças proporcionaram com maestria a coesão necessária para o alcance das metas propostas, ou seja, a desobediência às leis consideradas injustas. É significativo ressaltar ainda que ambos os personagens mantinham uma posição relativamente confortável diante da situação de marginalização, como já foi dito no capítulo 3. Gandhi era originário de uma família com posses e pertencente a uma casta entre as consideradas de melhor respaldo social, enquanto que King era oriundo de uma família de pastores protestantes e, portanto, tão pouco enfrentou dificuldades econômicas ao longo de sua vida. Ambos decidiram que adotar os ideais de desobediência civil atenderia a um anseio que ultrapassava uma

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necessidade básica de sobrevivência, correspondendo dessa forma a uma demanda social da época, mas principalmente como resposta a um vínculo transcendental.

No caso de Martin Luther King, os direitos civis beneficiavam uma parcela única da população: Os brancos. Essa persistência de uma desigualdade pautada na lei é o alvo principal da crítica do pastor que, como afirmado em momentos anteriores da tese, se preocupava em trazer o aprendido no Evangelho para a sua realidade de vida. Para ele, essa presença da desigualdade feria diretamente o que deveria persistir na sociedade, segundo sua interpretação de seu principal interlocutor: Jesus Cristo. Como afirma em sua autobiografia: “Sou um defensor convicto do evangelho social.”226 Com essa fala ele procura levantar uma bandeira com os principais questionamentos deixados em forma de legado por Cristo, como por exemplo, o princípio do amor como dom maior, elemento completamente incompatível, segundo ele, com seu contexto de vida. Não só esse, mas também outros princípios retirados do evangelho pautavam suas crenças e consequentemente as ações.

Mohandas Gandhi, apesar de pertencer a uma outra tradição cultural, filosófica e religiosa, também encontrava-se numa sociedade em que não havia igualdade de direitos, nem no aspecto horizontal (entre os próprios nativos) e muito menos no aspecto vertical, uma vez que tanto a Índia quanto a África do Sul eram domínios ingleses. Como já foi dito no capítulo 3, Gandhi possuía uma vivência de interação mais ampla com as religiões, uma vez que durante sua vida esteve em contato com várias delas em diversos momentos. De todas, ele extraiu ensinamentos relativos aos direitos básicos dos indivíduos e como promover a interação sem ferir as crenças e a cultura a que cada uma delas dizia respeito. Porém, essa questão dos direitos de cada um sempre esbarrou diretamente no sistema de castas, do qual ele era fruto e essa tensão fez todo o tempo, parte de sua trajetória. Em resumo, a desigualdade civil era, de fato, uma realidade latente no contexto em que os dois estavam inseridos e somente tendo essa informação como suporte, torna-se realmente possível analisar a proposta de desobediência civil que será apresentada em seguida.

Nesse aspecto, cabe ressaltar que essa colocação da desigualdade, no caso aqui considerado, a desigualdade civil, perpassa o contexto de atuação dos personagens e está diretamente relacionada à sua experiência de vida. Como indivíduos participantes naquela dada sociedade eles se relacionam com a inequidade social a todo momento e

226 CARSON, Clayborne. A Autobiografia de Martin Luther King (1929-1968). Tradução Carlos Alberto

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por outro ao confronto político gerado por essa questão. No cerne de toda essa discussão, encontra-se diluída a experiência religiosa de ambos exercendo uma influência significativa, ainda que não de maneira totalmente clara num primeiro momento. Tanto o ideal de igualdade, quanto o de justiça são necessários para a compreensão do movimento de desobediência civil realizado por eles e também não podem ser desvinculados das concepções religiosas experienciadas em suas trajetórias. É preciso buscar no ideal de vivências ético-religiosas o núcleo conceitual para o movimento de desobediência civil levado a cabo por ambos.

Lançando um olhar para essa concepção de igualdade e de justiça, a ideia de desobediência pode colocá-las numa situação de aquém da moral, uma vez que a obediência é um dos princípios básicos da organização das sociedades, isso desde os tempos mais antigos e entre os mais diversos povos. Obedecer aos designíos dos deuses, ou aos ancestrais, aos mais velhos e mais experientes da comunidade, e em outros casos às leis, sempre foram as engrenagens sociais mais eficazes conhecidas pela humanidade. As sociedades conseguem alcançar um determinado grau de coesão através da submissão da maioria dos seus habitantes a determinados padrões de comportamento. A gestação de códigos respeitados por uma grande maioria é o que proporciona a organização das sociedades e o que define as atitudes corretas e aquelas consideradas incorretas. Desde tenra idade, as pessoas são ensinadas, nos mais diversos convívios, que obedecer é a atitude correta, além do que, em geral, a desobediência gera alguma punição e por isso acaba sendo evitada. Dessa forma, acredita-se que a obediência sempre esteve presente e tornou-se uma necessidade para manutenção da organização das mais diversas populações. Dessa forma, a desobediência é, em tese, a contramão da ordem, uma espécie de infração na “cosmologia social”, algo que não deve ser realizado porque é considerado errado.

É relevante destacar que ambos os personagens possuíam total consciência de seus papeis sociais, do seu perfil enquanto líderes religiosos e claramente reconheciam que a desobediência podia significar um conflito em relação à definição de uma sociedade organizada. Porém, o surgimento de um sentimento que apontava a necessidade de mudança é o que justifica a adoção da desobediência de maneira bastante consciente por ambos. Para eles, a ordem social vigente não estava de acordo com os ideais de sociedade creditados por ambos uma vez que a obediência não poderia estar num patamar acima do bem estar das pessoas. Enquanto algumas estivessem sendo

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tratadas de maneira desumana, não era possível a manutenção das estruturas sociais em vigor. Sendo assim, tornou-se crucial analisar a opção dos personagens pela desobediência às leis dos dominadores, pretendendo com isso alcançar ganhos no sentido da humanização social.

Uma influência significativa na trajetória de Gandhi e King nesse sentido foi, sem dúvida, a do também norte-americano Henry David Thoreau em seu ensaio sobre a desobediência civil publicado no século XIX. Ambos os personagens tiveram contato com a obra de Thoreau e dela tiraram vários dos pontos utilizados por eles em suas respectivas buscas. É importante ter em mente que a obra supracitada serviu como uma inspiração, mas não que foi necessariamente seguida à risca, como um manual de instruções. Gandhi e King apoiaram-se nas principais ideias de H.D Thoreau, mas obviamente tiveram que promover determinadas adaptações a sua realidade de vida. É bom esclarecer que cada lugar e cada época possuem suas próprias demandas e um líder competente é aquele capaz de dosar na medida certa a teoria e a prática. Dessa forma, uma análise das ideias desse autor pode ser realizada em contrapartida ao balanço das trajetórias dos personagens conforme vem sendo elaborado desde os capítulos prévios.

5.2 Uma compreensão prática da desobediência civil

A obra de Henry David Thoreau, escrita no século XIX nos Estados Unidos, configura-se como um pequeno manifesto exortando à desobediência civil. Apesar do texto claramente se remeter a um contexto diferenciado, as propostas apresentadas por ele guardam muitas semelhanças com as de Gandhi e King conforme será apresentado mais adiante. Nesse ensaio, o mesmo Thoreau afirma que adotou o princípio da desobediência civil como forma de desestabilizar práticas governamentais com as quais ele não estava de acordo, ponto de convergência com os personagens analisados na presente tese. O contexto histórico em que o mesmo foi escrito permite uma leitura mais direcionada do texto, uma vez que os Estados Unidos passavam por um momento crucial de construção de uma identidade nacional e de criação de uma política interna e externa bastante peculiar. Tendo essas informações como pano de fundo torna-se mais acessível à compreensão e a inserção das ideias de Thoreau nesse cenário.227

227 Cf: PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos. Porto Alegre, Editora da

UFRGS, 2003; KARNAL, Leandro e outros. História dos Estados Unidos: Das origens ao século XXI. Editora Contexto, São Paulo, 2007.

No documento brunamilheirosilva (páginas 168-172)