• Nenhum resultado encontrado

1.2. Noudar e Encinasola Um território, dois reinos.

1.2.1. Identidades e território num espaço raiano

1.2.1.3. O peso da fronteira em três processos

1.2.1.3.3. A destruição de Barrancos

Por último resta debruçar-nos não sobre um documento, mas sobre um acontecimento narrado em dois documentos distintos. Este evento, pelo seu significado, merecia um aprofundamento que as escassas fontes não permitem. O acontecimento a que nos reportamos é a destruição da aldeia de Barrancos, que aconteceu entre 29 de Junho de 1641 e os primeiros dias de agosto317. As fontes utilizadas são: a História de Portugal Restaurado318 e a Relação do que sucedeu na

vila de Moura e seu termo no ano de 1641319. A 29 de junho de 1641 o exército português chegou a Barrancos tratando em seguida de despejar o lugar e de o incendiar, deixando de pé apenas a igreja paroquial e parte do paço do conde de Linhares, comendador da comenda de Noudar. A destruição da aldeia foi efetuada

312 Demarcações de fronteira: de Castro Marim a Montalvão…, cit., p. 66. 313 Demarcações de fronteira: de Castro Marim a Montalvão…, cit., p. 66. 314

ANTT, Corpo Cronológico, Parte II, mç 8, nº 116.

315 Marta Páscoa, “Levantamento…”, cit., p. 12. 316

ANTT, MCO, Tombo das Comendas, Lv 373, fl 8v.

317

João Cosme, Elementos…, p. 32. A 4 de Agosto chegou de regresso a Moura D. Francisco de

Sousa, chefe militar daquela expedição.

318

D. Luís de Menezes (conde da Ericeira), História de Portugal Restaurado, Tomo I, Lisboa, Oficina de João Galvão, 1679.

319

Biblioteca Nacional de Portugal, Reservados, cod. 6687. Publicado em João Cosme,

73

por ordem do rei, mas o que importa aqui analisar são as circunstâncias que estiveram por detrás dessa ordem. Do que até aqui vimos, no princípio do século XVII existiria alguma pacificação em torno do traçado de fronteira. A autonomização do reino de Portugal, face ao soberano comum, potenciou a procura dos traços diferenciadores das comunidades de um e de outro reino. Terá sido a diferenciação pouco clara desses traços que levou a que houvesse bastantes dúvidas quanto aos habitantes daquela aldeia e logo o que determinou a sua destruição. E foram dois os factos que levaram à construção da ideia de um aglomerado de fidelidade pouco clara face a Portugal: a língua; e a naturalidade castelhana dos seus moradores, cujos casamentos realizavam também em Castela.

O facto de os habitantes de Barrancos falarem, não a língua castelhana, mas um dialeto que a misturava com o Português, adulterando assim ambas as línguas, foi argumento bastante forte para a suspeita. Era esta uma das razões por que lhe “chamavam Genizaros os de Alentejo, por haverem partido até o idioma Portuguez com a lingua castelhana”320

.

O outro facto que levava à desconfiança da fidelidade daquela comunidade era a situação de a maior parte dos seus habitantes serem “castellanos e casados em Castella aonde tinha seus parentes.”321

Não é simplesmente o facto de serem castelhanos a residirem numa aldeia portuguesa. O que parece ter mais peso nesta situação é o facto de terem matrimónios em Castela e manterem um forte laço com a sua origem.

Os moradores de Santo Aleixo ainda desconfiavam, em 1644, dos barranquenhos que ali se tinham acolhido após a destruição da sua aldeia: “Teve-se por certo que o marquês [de Torreclusa] foi provocado para esta empresa por alguns moradores do lugar de Barrancos, que Sua Magestade mandou despovoar por estar em parte que se não podia conservar, e havia indícios que dele se davam secretos avisos aos Castelhanos. Comprovou-se isto, porque alguns destes homens, que viviam em Santo Aleixo, se foram depois com os castelhanos em som de amigos, com muito bom tratamento, e porque os Castelhanos vieram em ocasião, que boa parte da gente do lugar era ida à feira de Beja”322

.

320

D. Luís de Meneses, História..., cit., p. 216.

321

João Cosme, Elementos…, cit., p. 332.

322

Bento Caldeira, Aldeia heroica (Santo Aleixo da Restauração), Lisboa, Edições Colibri, 1997, p. 29. Transcrição da “Relação dos Sucessos, que nas fronteiras deste reino tiverão as armas Del Rey

74

Esta manutenção da relação com Castela foi já um dos problemas levantados aquando da inquirição de 1493. Estas duas especificidades da comunidade barranquenha levaram os portugueses a acreditar que “os moradores de Barrancos, não [h]avia de esperar e tarde ou sedo, [h]aviam de fazer as partes de Castella.”323

Numa época em que seria importante autonomizar-se pela diferenciação, tolerar situações dúbias era pouco aceitável e corrigi-las não só era necessário como serviria de exemplo para situações similares. Encontrado o exemplo adequado, foi “para castigo deste e terror dos maes lugares, [mandado pelo rei que se] arrazasse logo Barrancos.”324

Estes foram os argumentos que estiveram na base da decisão real. Até que ponto estas circunstâncias correspondiam efetivamente a falta de fidelidade, não o sabemos. Sabemos sim que em anterior ocasião os barranquenhos tomaram posição por Portugal. Efetivamente, até àquele momento, aquela comunidade não tinha dado provas de infidelidade a Portugal e embora no âmbito da Guerra da Restauração, alguns barranquenhos possam ter passado informações para Encinasola325, os castelhanos não os consideravam fonte privilegiada. Com efeito, a partir de Janeiro de 1641, os vizinhos de Encinasola foram proibidos de receber em suas casas forasteiros, tanto castelhanos como portugueses326. A trinta de junho de 1641, um dia depois da chegada das tropas portuguesas a Barrancos, alguns moradores, entre os quais o juiz ordinário daquele ano, Sebastião Rodriguez Baio, procura proteção em Encinasola, onde se apresenta perante as autoridades locais dizendo que “tenia assentado con don fran.co

Piz infante Del abito de alcantara que el com los demas Vecinos del dixo lugar de barrancos que pud… tener secreto estavam como vasallos que son Del Rey nnsr Don phelipe quarto Pruntos para servir a su mag’ contra los Rebeldes que se anlevantado en el dixo Reyno que enconformidad del lo a dado avisos siempre dello que a yntentado el rebelde Duque de bregancia”. Estes moradores procuram apoio nos domínios da dinastia deposta e durante o governo da qual sempre tiveram estabilidade, para fazer frente a um novo

Dom Joam o quarto N. S. com as de Castella, depois da jornada de Montijo, ate fim do anno de 1644, com a victoria de Elvas”.

323

João Cosme, Elementos…, cit., p. 333.

324

D. Luís de Meneses, História..., cit., p. 216.

325

Félix Sancha Soria, La Guerra de Restauración Portuguesa en la Sierra de Aroche (1640-1645)…, cit., p. 70.

326

Félix Sancha Soria, La Guerra de Restauración Portuguesa en la Sierra de Aroche (1640-1645)…,

75

monarca que assume para consigo uma atitude de agressão. Deste grupo que pede apoio em Castela não se pode inferir a razão lusa para a destruição da aldeia, até porque alguns dos moradores de Barrancos permanecem em Portugal, na aldeia de Santo Aleixo, como vimos atrás e, pelo menos dois moradores de Barrancos

recebem mercês da coroa portuguesa pelo seu desempenho na guerra327.

O processo de destruição da aldeia inicia-se quando o mestre de campo da comarca teve contacto com os boatos de que os de Barrancos não eram fiéis (pelos argumentos já aduzidos) ao reino de Portugal. Chegaram a Beja, onde se encontrava o militar, notícias que em Moura “havia nos ânimos dos moradores algû movimento, com indícios de pouca constância na defensa da Praça:”328

. Vindo imediatamente para “Moura averiguou q os moradores de Barrancos haviam sido os mais culpados naquella alteração.”329

O que sabemos também é que se arrastou pelo tempo o processo de partilha dos recursos do Campo de Gamos, território situado no termo de Noudar mas sobre o qual os residentes do termo de Moura tinham direitos de utilização330. Nada como enfraquecer os competidores por um mesmo recurso para reforçar o direito sobre o mesmo.

Surge, desta vez, a comunidade portuguesa vizinha ligada à destruição da aldeia. Um processo de desconfiança quanto à firmeza da fidelidade dos moradores de Moura acaba por desembocar na destruição da aldeia de Barrancos com a qual os mourenses tinham conflitos na partilha de um espaço comum. Os barranquenhos tinham noção do papel dos seus vizinhos no ataque à sua aldeia uma vez que se queixaram “dos moradores de Moura que bem sabiam que por elles lhes [h]avia vindo tanto mal.”331

Curioso que se tenha utilizado a mesma estratégia de destruição da aldeia pretendida em 1493, perante um mesmo conflito na utilização do território. Desta vez a partir do próprio reino e talvez por isso com maior eficácia do que na anterior tentativa.

Com os argumentos para a destruição da aldeia surgem as reflexões sobre a sua efetiva utilidade e aqui as fontes são antagónicas. O conde da Ericeira diz-nos que “era tam difícil e pouco útil conservalo [ao lugar], q sem a culpa dos moradores

327 Marta Páscoa, “Levantamento…”, cit., p. 18. 328

D. Luís de Meneses, História..., cit., p. 216.

329

D. Luís de Meneses, História..., cit., p. 216.

330 Maria Antónia Carmona Ruiz (“La explotación…”, cit., p. 246) refere o eventual início deste conflito

entre os dois termos portugueses.

331

76

fora justo destruilo.”332

Mas a Notícia refere que foi ordenado que “nenhum dos moradores de Barrancos se passasse a Castella, sob pena de traidores e serem por tais [h]ávidos”333

. A destruição da aldeia parece ter sido apenas um castigo. Parece-nos que este antagonismo não é mais do que a diferenciação do nível a que é observado o problema. O conde, numa obra de abordagem global da situação de guerra, e por ventura mais militarista, não dá muita importância àquele pequeno território, mas a notícia, de abordagem mais local, transmite-nos a ideia inversa. É fundamental manter aquelas pessoas naquele local, não permitindo que vão para Castela, isto apesar das desconfianças quanto à sua fidelidade. Quiçá porque seriam úteis ali para desempenhar o mesmo papel de marco fronteiriço que tanto jeito deu a Portugal e incómodos causou a Encinasola, em 1493.