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A difícil construção do objecto de estudo

"Andaimes" metodológicos

«O carácter autobiográfico e auto- -referenciai das ciências é hoje plenamente assumido»

(Sousa Santos, 1991)

A reflexão incide nos processos de formação que o projecto dos círculos procura instituir, nos significados que os professores atribuem às suas acções, nas estratégias que utilizam em formação, nas atitudes e comportamentos evidenciados, nas suas leituras e descrições do vivido na multiplicidade de situações e contextos (anteriores e contemporâneos da introdução dos círculos). Prevalece a tarefa de reconstituir o campo alargado, não apenas do facto-em-si, mas da dispersa multiplicidade dos actores e universos não-directamente relatados nas "evidências" recolhidas. Trata-se de integrar o campo de observação no campo social de que faz parte. Por sua vez, a construção das categorias de análise (intensamente dotadas de temporalidade) não foi considerada passível de preceder a investigação. Para a construção das categorias (no decurso do processo de investigação) creio poder partir de informação que proporciou a reconstrução das características dos fenómenos e entre os fenómenos, numa posição metodológica com o sentido de «organização crítica das práticas de investigação»24.

Bourdieu25, partindo de um trabalho empírico, tenta aperceber-se do sistema de

relações do objecto, para que este não venha a ser entendido como algo

2 4 Almeida, J. & Pinto., J. (1982) A Investigação nas Ciências Sociais, Lisboa, Editorial

Presença, p.80.

compartimentado, mas como objecto relacionado, e questiona, entre outras, a noção de "obstáculo epistemológico", o qual tem mais pertinência relativamente ao estatuto que o investigador se dá a si próprio. Este autor situa a intervenção epistemológica à posteriori e não a prefigura em pró-acção.

Na investigação em formação há, por vezes, a tendência para a dicotomia entre objecto e pesquisa. De um lado, a reflexão centra-se nas pessoas e nos contextos. Do outro, a reflexão valoriza os intrumentos e meios de formação. Mas os professores não se formam sozinhos, formam-se em contextos específicos, com os intrumentos e meios de que dispõem. É no conjunto que o objecto ganha inteligibilidade, na formulação de um espaço de relações objectivas. «Hoje a nossa necessidade histórica é encontrar um método que detecte e não oculte as ligações, articulações, solidariedades, implicações, imbricações, interdepências, complexidades»26.

E depois... o direito ao erro e ao investigar o erro

Quando se refere à "objectivação participante", Bourdieu sublinha que «só se pode sair da série indefinida das interpretações que se refutam umas às outras (...), se se construir realmente o espaço das relações objectivas (estrutura) de que são manifestação as permutas comunicacionais directamente observadas». No caso presente, são múltiplos os obstáculos que se colocam à construção de um "espaço de relações objectivas". Não se trata de um "olhar sobre uma célula de formação". Trata-se de uma análise realizada por alguém que está totalmente dentro, no triplo papel de director de centro, de membro de uma comissão

pedagógica e de formador interno-externo numa dezena de quase-círculos de estudos, numa sobreposição de universos comunicacionais.

Os círculos requerem mais um trabalho compreensivo que explicativo, mas que não poderá confundir-se com uma compreensão contemplativa. A intervenção reger-se-á por uma "neutralidade activa" diferente da neutralidade definida por Durkheim. Essa "neutralidade activa" caracteriza-se peia indução de um trabalho de interpretação realizado numa relação que não é de observação, mas de escuta. A posição do investigador não é fora, mas uma posição específica, na qual observa a relação que os fenómenos têm com as suas interrogações, no reconhecimento de que o que produz ciência não é o "transfer, mas o "contra- -transfer", dado a situação de observador ser, simultaneamente a de observado. Trabalhar marginalmente a tendências e rotinas académicas é arriscado, mas é também um prazer irrecusável. Na investigação que pretendo realizar, confirmar- -se-á, certamente, que o que está em jogo não é somente o regresso do sujeito de investigação, mas o regressso da ideia de "acção social", em detrimento da ideia de prática. Não se trata de uma relação ciência-prática, mas entre acção e prática. Trata-se, efectivamente, de um problema de produção social da própria acção investigativa: há um actor que produz acção e que, na acção adquire consciência da dificuldade de gerir, por exemplo, as tensões entre teoricismo e empiricismo. O que define os papéis da investigação é mais da ordem institucional: investigador é aquele a quem se reconhe o direito de emitir enunciados legítimos na investigação. Pontifica a definição social dos saberes legítimos. É delicada a delimitação entre observador e observado. E torna-se ainda mais complexa, quando entre eles existe um instrumento de mediação, se bem que o instrumento nunca seja "de mediação", nem possua estatuto de neutralidade. Ele será sempre um prolongamento do observador ou do observado, do sujeito ou do objecto.

De um ponto de vista radical, eu nunca observo o que tenho pretensão de observar. Por essa razão, Bourdieu tenta, em alguns dos seus trabalhos, uma análise das não-respostas, para chegar à compreensão dos efeitos dos instrumentos no contexto da observação. Há necessidade de reflectir as circunstâncias em que se produzem e obtêm os dados, mais que a contabilidade das transformações operadas e a determinação do nível de impacto da formação nas situações de trabalho.

O "modo de investigar" não pressupõe, inevitavelmente, o engajamento a uma escola, a um método ou a uma técnica. E os instrumentos serão aqueles que o desenvolvimento da investigação vier a determinar. Estarão em causa a permeabilidade a experiências subjectivas que decorrem do agir com as pessoas e nas situações. Mas, ainda assim, fará pouco sentido relevar a oposição da "objectivação participante" à "observação participante", que Bourdieu considera «análise de uma falsa participação num grupo estranho»27. Está-me vedado o

estatuto de observador imparcial, não me é possível sair da situação para a objectivar, sem me «servir da ciência para intervir no objecto». Integro o campo da acção e da investigação, não me transfiro para lá. Por isso, mais do que a apreensão das representações de representações, tratar-se-á do aperceber-me da realidade oculta que se manifesta «nas interacções em que se dissimula a si própria»28.

Os indivíduos jogam-se neste jogo de dissimulações, possuem a sua consciência do acto e dos seus efeitos29. Utilizam um discurso que, apenas na aparência, pode

27Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.51 28Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.54

29Conta-se o caso daquele professor que criticava um colega respondente a um inquérito:

"Então tu faltas tantas vezes e dizes aí que nunca dás uma falta?" Ao que o outro responde: "Então querias que deixasse mal a nossa escola?

ser analisado. «O espaço de interacção funciona como uma situação de mercado linguístico»30 que, apesar dos limites impostos pelo reconhecimento das relações

e das implicações dos actores, possui "características conjunturais" que é possível destacar, para se compreender o dito e, sobretudo, o não-dito. Torna-se, portanto, indispensável o conhecimento das "leis de formação do grupo" de actores em presença. Bourdieu apela ainda à transcendência da apreensão das «estruturas objectivas», que permita explicar «o que a análise de discurso julga que pode compreender a partir unicamente de discursos»31.

A difícil construção do objecto de estudo

Questionei-me sobre qual o objecto que estaria na origem do interesse pelo objecto que já havia definido no pré-projecto de investigação. A primeira verificação foi a do interesse em justificar a minha opção pelos círculos, a par com a necessidade de valorizar esta modalidade de formação. Operada (de algum modo), uma ruptura com parte do objecto oculto, creio ter tomado como objecto a pessoa, as pessoas-processos e contextos de formação que, sintetizados, são um objecto único: o círculo de estudos.

Haverá ainda (e sempre) um risco de uma análise intensiva de uma fracção desse objecto, em detrimento da análise em extensão, o que pode mesmo determinar «no fragmento estudado, mecanismos ou princípios que, de facto, lhe são exteriores». É necessário, como refere este autor, «construir um sistema coerente de relações, que deve ser posto à prova como tal»32.

30Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.55 31 Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.57 32Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.32

Nesta breve reflexão, reencontrei também a crítica de Morin33 aos processos de

generalização e de simplificação, bem como a definição de ideologia como interpretação parcial do mundo, ou um "desvio de atenção". Do pensamento simplificador resulta uma certa patologia do saber, que exprime dificuldade em integrar a unidade na diversidade, a individualidade com a globalidade. Existe o risco efectivo de trabalhar em Ciências Humanas ignorando o Homem. Nas Ciências Humanas, é maior a dificuldade em recolher e tratar a complexidade, pois a realidade humana é de difícil redução aos elementos que a constituem. Daí que, tanto Bourdieu como Morin apelem a uma "metanoia" e a "meta-sistemas lógicos", onde haja lugar para a incerteza e para uma epistemologia aberta e não-judicial. Bordieu não releva mais que a recomendação de Bachelard da "vigilância da vigilância", o sobre-mim intelectual indispensável à efectiva objectivação do objecto. Esta vigilância não actua sobre a ciência feita, mas sobre a ciência-a- -fazer-se e enquanto se faz. Processa-se por rupturas e reconstruções e assenta no reconhecimento de que não existe algo definitivamente demonstrado, e na crítica do senso-comum, ainda que "douto" e eivado de "nominalismo verbalista". A definição prévia do objecto é sempre prévia na acepção de provisória, carente de verificação para além da ilusão da transparência dos fenómenos sociais. O trabalho é sempre efectuado perante um objecto formal, modelo da realidade observável, que não reproduz a realidade. À partida apenas dispõe de alguns elementos de análise do problema destacado. O objecto é construído e reconstruído no próprio processo de investigação. A produção de conhecimento emerge de (e acompanha) a transformação da realidade social.

Metodoiogia(s)