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Tópicos e material de estudo

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Documentos em análise

Considerações

Procedimentos

Heresias

Certamente, nas estratégias da vida o investigador não passa a vida a dizer: Atenção, tenho de guardar estes documentos, de registar tudo o que digo, tudo o que vivo"

(Barbier R.)

Tópicos e material de estudo

A descrição de uma investigação nunca corresponde ao desenvolvimento da investigação, mas, ainda que consciente deste princípio, será necessário clarificar e articular, tanto quanto fôr possível, as condições de emergência dos Círculos e o seu modo de sobreviver. O quadro de referências que o possibilita passará pela elucidação das condições do exercício da profissão no 1o Ciclo, nomeadamente as

decorrentes das transformações sociais operadas nos últimos vinte anos.

Inevitável será também a crítica, tão serena quão possível, de modelos de formação contínua predominantes no desenvolvimento do sub-sistema, que antecedem e acompanham o aparecimento dos círculos. E na identificação do potencial formativo e das fragilidades dos círculos, eventualmente concluir se a formação contínua existe, se é um objecto tangível, ou um mito.

Porque se trata de um estudo que age sobre o próprio formador, sobre a sua vida relacionada com as dos outros, porque se trata de uma «metamorfose militante desligada do empreendimento das grandes organizações, que nos faz compreender o sentido da amizade solidária»58, a selecção de documentos é

natural e relativizante. Natural porque, não tendo sido produzidos com o objectivo de virem a ser analisados, se afirmam como testemunhos imperfeitos.

Relativizante por necessária prudência na análise de documentos datados: é impossível reconstituir contextos de produção, por exemplo, de 1978, como é o caso do "Boletim Projecto".

Documentos em análise:

. Boletim "Projecto"- CDP/S.Tirso . Boletim "Espiral" - Prof/S.Tirso

• Registos de avaliação de acções em CE.

• Monografias, actas de círculo e outros trabalhos dos formandos • Sínteses de alguns inquéritos realizados entre 1991 e 1993 • Notas tomadas no decurso da formação em círculo

Para tornar inteligíveis as decisões técnicas, caracterizarei o processo de recolha de informação.

O "corpus" de análise é constituído por textos não-iníencionalmente produzidos para servir a investigação. A excepção a este estatuto é o conjunto de documentos que resultam do trabalho em círculo efectuado a partir de meados de 1994, sob a forma de registos de observação. Este carácter de contemporaneidade confere-lhes um estatuto diferente, na medida em que, implícita ou explicitamente, estarão imbuídos de um propósito prospectivo que os anteriores não possuíam.

Procurava traços de caracterização da formação em círculo, nos mais de quatrocentos documentos disponíveis.

A primeira análise refere-se a um conjunto diversificado de folhas "trocadas" entre formandos e entre estes e o formador externo do Círculo, no contexto da formação realizada entre 1991 e 1993, com maior incidência no período correspondente ao

desenvolvimento dos planos dos centros de formação contínua que optaram por neles incluir a modalidade círculo de estudos (Fevereiro a Dezembro de 1993). Quase toda a documentação havia servido propósitos de avaliação contínua do trabalho do círculo, a sua regulação. Surgia sob a forma escrita. Não obrigava à identificação do autor. Constituída por cartas, relatórios, anotações, simples folhas soltas dos "diários de formação", ela inclui desde frases isoladas até aos textos com várias páginas. Compõe-se de recomendações, observações, actas de encontros, avisos, recados e sugestões, críticas, reflexões individuais ou de grupo, "não-ditos" no decurso dos encontros, perguntas, pedidos, confissões... Como único destinatário, o formador externo. Os locais de produção são também diversos: sedes dos centros de formação, escolas, residências de professores, locais públicos (jardins e cafés).

O contributo mais significativo provém de Santo Tirso, mas são incluídos nesta análise alguns (poucos) documentos de outros círculos: Lousada, Porto, Famalicão, Paços de Ferreira e Montalegre, locais onde acabei por acompanhar algumas iniciativas de formação em círculo de estudos.

Considerações

Para obstar a enviezamentos interpretativos, ou a idiossincrasias nem sempre passíveis de irradicação, autores como Goetz e Le Compte59 apontam a

necessidade da identificação precisa e de uma descrição exaustiva das estratégias de recolha de dados. Esta descrição não projecta, inevitavelmente, para a definição prévia e estática de um plano de investigação como os que

59Goetz, J. e Le Compte, M. (1988) Etnografia y Diseno Cualitativo en investigation educativa,

caracterizam as metodologias tradicionais. Essa preocupação metodológica desemboca em registos de trajectos frequentemente sinuosos e imprevisíveis, ainda que decorrentes de planos.

Nestes trajectos, é frequente a relativização de dados antes considerados inequívocos, o relançar de evidências no cadinho da reflexão, retomar caminhos suspensos, introduzir interrogações, novas hipóteses que decorrem do processo e, indubitavelmente, seriam imprevisíveis no início da investigação.

A aplicação de uma técnica é, simultaneamente, estruturada pela pesquisa e estruturadora dessa mesa pesquisa. Grawitz60 alerta-nos para o "camuflar" das

ideologias e para o risco de uma técnica poder traduzir pressupostos e de proceder a "recortes" prévios da realidade. Impõe-se a atenção relativamente às condições da produção do discurso e de produção da análise.

A análise de conteúdo clássica considera o material de estudo como um dado, isto é, como um enunciado imobilizado, manipulável, fragmentável. Ora, uma produção de palavra é um processo. Na altura da produção da palavra, é feito um trabalho, é elaborado um sentido e são operadas transformações. O discurso não é transposição transparente de opiniões, de atitudes e de representações que pré- -existam de modo cabal antes da passagem à escrita. O discurso não é um produto acabado, mas um momento num processo de elaboração, com tudo o que isso comporta de contradições, de incoerências e de imperfeições——

A análise de conteúdo é ainda condicionada por determinantes epistemológicos do próprio campo onde as práticas são produzidas. A subjectividade da análise deixa em aberto a possibilidade de diferentes reformulações de significado. Com base no reconhecimento das contradições interpretativas, não busco as regularidades

discursivas. Atribuirei ao discurso um estatuto de singularidade, pois não é o discurso mas a realidade que é produtora de sentido.

O trabalho de análise processa-se sobre aquilo que o texto explicitamente apresenta e que se admite expresse significado, ressalvando que essa significação do conteúdo permite reinterpretar o explicitado no esforço de reestruturação do significado.

A produção de interpretações é mediatizada por informações empíricas e enquadramentos teóricos. Cabe ao analista construir um modelo de análise que lhe permita formular inferências sobre as condições de produção do discurso, no pressuposto de que «o material sujeito à análise de conteúdo é concebido como o resultado de uma rede complexa de condições de produção»61. Metaforicamente e

abstraindo-nos das conotações negativas dos termos, poder-se-ia dizer que o que sucede se aproxima de algo entre a prestigiditação (sucessivos movimentos de cartas numa aproximação àquela que se pretende isolar) e a cartomancia (a manipulação que atribui significação às combinações de cartas) numa busca alquímica de desvendar aquilo que não é meramente um objecto verbal, aquilo que não cabe nas palavras.

As análises são sempre reveladoras dos contextos em que são produzidas, estão condicionadas pelos determinantes epistemológicos do campo onde se produz a prática científica, inserem-se e são inevitavelmente -influenciados pôr um sistema de decisões que lhes subjaz. Na análise, não se procede à reconstituição do sentido de um texto, ou conjunto de textos, mas a imputações de sentido, a um processo de progressiva produção de sentidos. Como já foi referido, quando se analisa o conteúdo de uma produção discursiva é necessário reconhecer que essa

Vala, J.(1986) "A análise de conteúdo", m Metodologia das Ciências Sociais, Porto, Ed. Afrontamento: 104

análise está ligada ao interesse do próprio intérprete. A imputação de sentido que lhe confiro não anula outras eventuais interpretações ainda que antagónicas.

De qualquer modo, aquilo que relevo do discurso é o que o autor me revela, ou pretende revelar. A característica de "mensagem" entre formando e formador confere ao material que constitui parte significativa o "corpus de análise" a possibilidade de me revelar algo relativamente ao objecto. Para compreender o funcionamento de um Círculo de Estudos, o enunciado de dificuldades, anseios, problemas, necessidades, é um material que dota o discurso de realidade, ainda que o discurso, em si, não seja produtor de sentido. Importa discernir entre os discursos quais os que possuem maior densidade informativa, no pressuposto de que os textos traduzem os posicionamentos dos seus autores sobre determinado objecto, mas, por outro lado, o conteúdo semântico do discurso traduz realidades que lhe são extrínsecas e são expressões imperfeitas de realidades que os transcendem.

Tive o cuidado de preservar o anonimato dos outros segmentos seleccionados, na intenção de respeitara «"totalidade solidária" dos grupos, ao estudar, em primeiro lugar, a vida do grupo na sua unidade concreta, evitando, portanto, a prematura dissociação dos seus elementos»62.

Quando se alude à realidade do discurso pretende-se afirmar que este não consiste num exercício rectrospectivo do seu autor sobre um objecto, mas que contém uma intenção prospectiva: a expressão de um desejo comunicado ao receptor. Neste sentido, urge atender, quer ao seu conteúdo manifesto, quer ao conteúdo latente, isto é, ao que é escrito no texto e à admissão do não-dito imprescindível à reconstrução da significação real e profunda que subjaz ao conteúdo manifesto.

A análise do conteúdo é uma análise de globalidades parcelares do discurso com o objectivo, não do isolamento dos seus componentes, mas da reconstrução das instâncias de mediação que confiram pertinência a um conjunto desarticulado e contraditório de enunciados. Tratar-se-á, então, de uma outorga de sentido, por via de atribuições e re-atribuições sucessivas de significado global.

Desta tarefa emergem três problemas: o da segmentação do discurso, o da estruturação das ligações e o da origem da prática discursiva.

Ao isolar fragmentos de um texto subsiste o risco de parcelarização que não viabilize a restituição da globalidade, o que impõe maior atenção na definição das categorias de análise.

As unidades registadas podem assumir diferentes funções no discurso (juízos de valor, explicitação de argumentos, etc.). Por outro lado, a densidade informativa das categorias não depende objectivamente da frequência de ocorrência, nem os segmentos discursivos admitem ligações inócuas entre si.

O estatuto das categorias dependerá da sua re-elaboração progressiva (ressalvada a redundância), à luz de decisões teóricas e técnicas.

A segunda questão remete-nos para dois dilemas: considerar explícita ou implícita no texto a estrutura de ligações que se pretende construir; considerar, ou não, a distância no texto entre unidades, isto é, se deverão, por exemplo, considerar-se somente asxinidades topograficamente próximas do discursos——

Finalmente, o problema que consiste em considerar o discurso como produto individual ou como produto colectivo. Considerado como individual, poder-se-ão interpretar as singularidades como variações em torno de uma mesma estrutura, como variações de intensidade, ou derivadas de uma estrutura englobante. Considerado o discurso como produto colectivo, admitir-se-ão nele interdeterminações e complementaridades que cada indivíduo revela de modo específico.

Considere-se ainda a tensão entre quantificação e legitimação da inferência. Para alguns autores, a análise de conteúdo deverá servir propósitos de quantificação63,

enquanto outros relativizam a sua importância. Krippendorf chega a opor ao conceito de «conteúdo manifesto» o conceito de «inferência» e a considerar a quantificação como condição limitativa da análise. Ao privilegiar a inferência atribui a esta a capacidade de permitir uma transição controlada da descrição para a interpretação que atribua sentido às características das mensagens levantadas, listadas e sistematizadas64. Acrescente-se a preocupação com as condições de

produção dos textos que são objecto de análise e que, no seu conjunto os determinam65.

A análise de conteúdo, como instrumento de conhecimento, permite que se façam inferências sobre quem comunica, sobre os efeitos da comunicação e sobre a situação de contexto da produção do material que é objecto de análise. Nesta última dimensão, o Círculo de Estudos (ou qualquer outra designação que se dê ao contexto de produção em grupo auto-organizado de formação) adquirirá, creio, contornos de características que poderão elucidá-lo.

Foi difícil a vigilância entre a vulgarização das rotinas de apreensão qualitativa e a influência sempre presente de artifícios-quantitativos-exreio ter-me perdido nessa busca de rigor. Mas, se «o rigor não é exclusivo da quantificação»66, se a análise

de conteúdo não exige quantificação, o procedwiuiM oplâdo--ú qualitativo (ainda

63Berelson, B.(1952) Content analysis in communication research, New York University Press

Hongerand (1983) Notes de recherche I, Contenu mentaux et analyse de contenu, Louvain, V.C.L.

64Krippendorf (1980) Content Analysis, an introduction to his TTiethõddlegyrtortdres, Sage 65Henry, P. e Moscovici, S. (1968) «Probèmes de l'analyse de contenu», Langages, Setembro

1968, Il

66Vala, J, (1986) «A análise de conteúdo», in Metodologia das ciências Sociais, Porto, Ed.

que a quantificação possa, porventura, ajudar ao aprofundamento da análise qualitativa). O trabalho indutivo harmoniza-se com alguns momentos de trabalho dedutivo, mas o primeiro predomina. As características são sucessivamente reformuladas, através de novas leituras.

O carácter voluntário e pontual da redacção das folhas recortou, à partida, o corpus de análise, pelo que não procedi a qualquer selecção posteriormente à sua recolha67.

Procedimentos

Admito que entre a grande variedade de questões possíveis trabalhei somente algumas questões particulares. O processo de recolha e tratamento de dados tornou inexorável este desfecho.

Num primeiro momento, procedi a uma leitura sem intenção de isolar qualquer elemento comum, ou de identificar eventuais complementaridades. Mas esse momento introduziu alguma inflexão no sentido do trabalho. O material apresentava-se na precaridade de documentos não produzidos para serem analisados em funçaõ de uma grelha pré-estabelecida. Os primeiros indícios de categorização emergem após um período (longo) de trabalho directo com os círculos.* Os fragmentos anteriormente reunidos—ganhavamnovo siprificaTio"nã^~" introdução de ideias-chave presentes nos "recados", registos de avaliação e actas que, por sua iniciativa, os professores me entregavam nos encontros68.

Era tão grande o universo de questões que estes documentos suscitavam, que elaborei uma primeira lista de temas fortes e algumas unidades centrais de

67Foi diferente o procedimento relativamente a documentos anteriores a 1993, relativamente

aos quais foi necessário seleccionar apenas os textos pertinentes ao estudo.

significado. Com elas me dispus a realizar entrevistas que pudessem, de algum modo, clarificá-las. Porém, a consulta de boletins e do espólio das actividades dos círculos de fianis da década de 70, veio tornar redundantes as recolhas pontuais entretanto efectuadas em observação participante. Da análise do acervo do CDP69

surgem indícios seguros de uma categorização que apenas necessitava de ser enquadrada por um registo das condições do exercício da profissão, sem a qual, os dados perderiam significado.

Isolados os elementos centrais do conjunto de documentos, sem preocupação de quantificar, organizei o material em grandes tópicos. O trabalho seguinte consistiu em sucessivos re-envios de segmentos de uma para a outra categoria, clarificando-as, recusando redações residuais que nada acrescentavam de significativo, agregando sub-categorias.

Contemplada a realidade psicológica mais que a realidade linguística, os blocos de categorias apresentavam uma grande variedade de informação pertinente, mas muitos desiquilibrada entre si, em termos de quantidade de material.

De cada documento foi necessário extrair, por vezes, segmentos para integração em mais que uma categoria.

AI g u ns deles, p o r é m , - e m è o ^ ^ e g ^ g ^ f f ^ g ^ g ^ ^ ã o ^ cwteádof-eTiqtraxlmTn^e-CT°=°"

numa categoria apenas.

Uma das razões porque optei pela análise de conteúdo foi, como já referi, a de esta permitir considerar como objecto de análise material não-estruturado, cujos

produtores desconhecem serem fontes de informação. \ As categorias foram sendo induzidas do conteúdo analisado, em sucessivas

reformulações. Vi-me obrigado a uma reformulação constante, em muitos momentos a abdicar de expectativas, dado que novas e surpreendentes evidências decorriam das sucessivas análises do material recolhido e seleccionado. De tantas vezes o reler quase decorei períodos inteiros, na procura do seu enquadramento, ou das complementaridades discursivas. Os segmentos perdiam sentido, readquiriam-no, escapavam-se na dinâmica da atribuição de significados.

Devo confessá-lo como uma das heresias face a cânones clássicos de investigação. Uma das heresias (sublinhe-se), porque outras terei de apontar. O material de análise foi chegando sem que me apercebesse, à partida, do seu potencial heurístico. As folhas ajudavam-me a introduzir correcções na minha atitude como formador-aprendiz. A recepção do material precedeu e acompanhou um período que poderá chamar-se de investigação formal. Anteriormante, já detectara complementaridades e regularidades indiciadoras de categorização. As folhas que me chegavam de outros círculos confirmavam algumas evidências colhidas no meu círculo de pertença.

Quando esbocei um arremedo de entrevistas com professores deste círculo, no propósito de esclarecer algumas dimensões da análise, foi o insucesso total. Fora do círculo, uns professores recusavam-se. Com outros, a entrevista só acontecia após se desligar o gravador.

Quanto à recolha de segmentos de discurso em pleno encontro de formação, senti a falta de competências no domínio da estenografia... No finai de cada encontro, procurava reconstituir os códigos hieroglíficos que o tempo e a corrente da palavra me permitiam anotar.

Este esclarecimento é mais um acto penitencial a juntar à obrigação em que se transformou este estudo. A obrigação de não omitir a "desimportância"70 das

transgressões metodológicas, quando o que é necessário revelar para ser compreendido se apresenta como produtor e produto de uma investigação efectivamente participada.

CAPITULO II