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A Diferenciação amigo/inimigo como o critério do Político

CAPÍTULO 1 – CARL SCHMITT

1.3 O ESTADO E O POLÍTICO

1.3.6 A Diferenciação amigo/inimigo como o critério do Político

Publicado inicialmente em 1927, com sua segunda edição em 1932, O conceito do político (Der Begriff des Politischen) busca definir a essência do político. O livro começa com uma forte afirmação de que “o conceito de Estado pressupõe o conceito do Político” (SCHMITT, 2009, p. 19). Tal assertiva se coloca plenamente justificável, a partir do conceito positivo de constituição defendido por Schmitt (ver item “1.4.1.3” do capítulo 1)118.

Porém, o fato de o político ser pressuposto imprescindível do estatal não significa que este se identifique com aquele. Se assim o fosse, o Estado surgiria como algo político, enquanto o político surgiria como algo estatal, caindo assim em um círculo vicioso insatisfatório (SCHMITT, 2009, p. 20-21). Logo, segundo Schmitt, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, o Estado teve sua noção expandida e a diferenciação entre o que é político e o que é não-político torna-se retrógrada119. Existiam esferas da vida que não se identificavam com o Estado e, por conseqüência, com o político (ver item “1.3.2” do capítulo 1). Todavia, nesse mesmo período, ao contrário do desejado pelo Rechtsstaat liberal, houve uma nova interpenetração da relação entre o Estado e a sociedade, culminando na politização de todas as esferas da vida social.

Áreas como a religião, a cultura e a economia, entre outras, deixaram de ser neutras no sentido de não-estatal e não-político. Com essa politização de todas as esferas da vida, emerge o Estado Total “da identidade entre Estado e sociedade, Estado que não se desinteressa por nenhuma área e que abrange, potencialmente, qualquer área” (SCHMITT, 2009, p. 24)120. Como tudo, pelo menos em possibilidade,

passa a ser político, a referência ao Estado perde o condão de “fundamentar uma característica específica de diferenciação do ‘político’” (SCHMITT, 2009, p. 24).

118 Ademais, segundo Schmitt, mesmo na perspectiva do Rechtaatsst

, que repousa na matriz “ideal” da constituição, o próprio elemento rechtaatsstalich depende uma unidade política pré-existente para sua afirmação.

119 Schmitt critica o liberalismo do século XIX, afirmando que ele interpreta a sociedade de maneira

autonomamente oposta ao Estado. Assim: “Se, então, a teoria do Estado, a ciência jurídica, a linguagem dominante insistem no fato de que político = estatal, tem-se como resultado a conclusão (logicamente impossível, mas na prática aparentemente inevitável) de que todo o não-estatal, logo, todo o ‘social’, seria, por conseguinte, apolítico!” (SCHMITT, 2009, p. 22).

120 Sobre o Estado Total ver item

Schmitt aqui repele o Estado Total, uma vez que neste o conceito de sociedade estaria por fundar o conceito do político, o que não é aceito por ele. Esse raciocínio revela a falácia da assertiva tudo é política, a qual incorpora ao político conceitos que lhe são estranhos, levando o Estado a deixar de ser o lugar primordial da política. Como contraponto a essa tentativa de elevar o político à neutralidade, através da incorporação de elementos periféricos, é que Schmitt se dedica a construir um conceito autônomo para o político.

Para Schmitt (2009), o conceito do político necessita de uma definição clara de categorias, que foram formuladas a partir da lógica dualística que caracterizaria seu pensamento. A definição do político não passa por uma avaliação moral, estética ou econômica. Ela assenta em suas próprias distinções, “às quais se pode atribuir toda a ação política em seu sentido específico” (SCHMITT, 2009, p. 27).

A categoria identificada por Schmitt como a essência da política é a diferenciação entre amigo/inimigo. A dicotomia entre amigo (Freund) e inimigo (Feind) “tem o propósito de caracterizar o extremo grau de intensidade de uma união ou separação” (SCHMITT, 2009, p. 28). O inimigo não precisa ser considerado o mal, podendo ser, inclusive, tido como moralmente correto. Ele pode não ser um concorrente econômico, mas um parceiro. Ele se caracteriza por ser

precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essência, basta que ele seja, em sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que em casos extremos, sejam possíveis conflitos com ele, os quais não podem ser decididos nem através de uma normalização geral empreendida antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro ‘não envolvido’ e, destarte, ‘imparcial. (SCHMITT, 2009, p. 28)

Logo, “o político se manifesta, preferencialmente, na autoafirmação organizada de um povo ‘politicamente existente’ contra inimigos externos e internos” (HABERMAS, 2009, p. VIII). Na identificação do inimigo externo (hostis) uma nação deve configurar uma unidade política que deve ser homogênea (ver item “1.4.4” do capítulo 1) e, para tanto, tem de eliminar seus elementos heterogêneos. Logo, o Estado, a fim de manter sua unidade revelada na decisão política, a qual, por sua vez, se baseia na

homogeneidade, deve, quando necessário, eleger e eliminar também seus inimigos internos (inimicus)121.

Em situações críticas, esta necessidade de pacificação intra-estatal leva a que o Estado, como unidade política, enquanto existir, também determine, por si mesmo, o ‘inimigo interno’. Destarte, em todos os Estados, de alguma forma, há o que o Direito Público das repúblicas gregas conhecia por declaração de

polemios e o Direito Público romano por declaração de hostis, ou seja, tipos de

desterro, de ostracismo, de proscrição, de banimento, de colocação hors la loi, em suma, tipos de declaração de inimigos intra-estatais, podendo ser estes tipos mais rigorosos ou mais suaves, supervenientes ipso facto ou com efeito jurídico em virtude de leis especiais, explícitos ou encobertos por meio de circunscrições genéricas. (SCHMITT, 2009, p. 49)

Para Schmitt, a soberania seria a afirmação da ordem e, simultaneamente, a sua negação, pois a lei está à disposição de quem decide, isto é, do soberano. Este está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico, posto que, ao fazer uso de seu poder de suspensão da validade do direito, coloca-se legalmente fora da lei. Assim, conforme diz Kalyvas (2008, p. 134), o soberano não é definido exclusivamente como aquele que decide sobre o caso de exceção, mas também como o responsável pela criação da situação de normalidade. Nesse sentido, Schmitt assevera que o soberano:

produz e garante a situação em sua totalidade. Ele tem o monopólio sobre esta última decisão. Aí reside a essência da soberania do Estado, que deve ser juridicamente definida corretamente, não como o monopólio para coagir ou governar, mas como o monopólio para decidir. A exceção revela muito claramente a essência da autoridade do Estado. A decisão se separa aqui da norma jurídica, e (para o formular paradoxalmente) a autoridade prova que para produzir o direito ela não necessita ter como base o direito. (SCHMITT, 1985, p. 13)122

Ao contrário do entendimento de alguns, Schmitt não vislumbra um Estado de exceção permanente. O autor alemão, de formação conservadora e católica, tem como desejo a segurança e a paz, isto é, a intenção de viver em uma sociedade regulada por

121 Essa noção da distinção amigo/inimigo foi internalizada pela revolução francesa que, além de procurar

e combater seus inimigos externos, também elegeu seu inimigo interno sendo este a vontade particular de cada cidadão individual (KALYVAS, 2008, p. 222).

122 Na tradução inglesa: “The sovereign produces and guarantees the situation in its totality. He has the monopoly over this last decision. Therein resides the essence of the state’s sovereignty, which must be juristically defined correctly, not as the monopoly to coerce or to rule, but as the monopoly to decide. The exception reveals most clearly the essence of the state’s authority. The decision parts from the legal norm, and (to formulate it paradoxically) authority proves that to produce law it need not be based on law”.

normas gerais e abstratas que possa, mesmo prevendo a possibilidade da exceção, garantir a ordem social – afinal, não é a toa que Schmitt trabalha a busca por segurança do Estado hobbesiano. Assim,

enquanto a vitalidade da exceção se destaca como o tema da Teologia Política, é importante ter em mente que Schmitt não estava defendendo a negação total da normalidade. De fato, em outros trabalhos deste período, ele parecia defender a conveniência da normalidade legalmente estabelecida. [...] ele não rejeitou a ideia de uma sociedade compreensivelmente governada por normas legais, sob a condição de que a decisão política que sustenta a ordem jurídica seja feita explícita. (DYZENHAUS, 1997, p. 46)123

De outra ponta, o estado de exceção é justificado pela situação de ameaça à unidade política. Logo, não pode ser limitado, a não ser que esta unidade deixe de existir. A exceção não poderia se manifestar no limite do direito, tendo-se em vista que só ela, a exceção, permite que se chegue à essência do direito.

A exceção, que não é codificada na ordem jurídica existente, na melhor das hipóteses pode ser caracterizada como um caso de perigo extremo, um perigo para a existência do Estado, ou algo semelhante. Mas ela não pode ser circunscrita faticamente e feita para se conformar a uma lei positiva. (SCHMITT, 1985, p. 6)124

O critério de definição do político, todavia, constitui um conceito-limite, o qual representa a extrema demonstração de inimizade e seu pressuposto último (o político), que nos permite conhecer a natureza das formas políticas. Repousa no caso limite a clarividência de todo caráter particular das oposições políticas. Schmitt (2009, p. 35) afirma que a “guerra decorre da inimizade, pois esta é a negação ôntica de um outro ser”, de modo que a perspectiva da guerra é, portanto, a do caso de exceção, que rompe com a normalidade, revelando-se capaz de desvelar o ser do político125.

123

No original: “while the vitality of the exception looms large as the theme of Political Theology, it is

important to keep in mind that Schmitt was not arguing for the total negation of normality. Indeed, in other works of this period, he seemed to argue for the desirability of legally established normality. […]

he did not reject the idea of a society comprehensively governed by legal norms, on condition that the political decision that underpins that legal order is made explicit.

124 Na tradução inglesa

: “The exception, which is not codified in the existing legal order, can at best be

characterized as a case of extreme peril, a danger to the existence of the state, or the like. But it cannot be circumscribed factually and made to conform to a performed law”.

125 Schmitt (2009, p. 36)

esclarece que: “De modo nenhum é a guerra objetivo e finalidade, nem conteúdo da política, sendo, antes o pressuposto sempre existente como real possibilidade, o qual determina de forma singular a ação e o pensamento humanos, provocando, assim, um comportamento especificamente político”.

Na perspectiva schmittiana, contraposições religiosas, econômicas e morais podem acirrar-se até chegar a um “agrupamento decisivo de combate segundo o tipo amigo-inimigo” (SCHMITT, 2009, p. 38). Entretanto, nesse eventual agrupamento de combate, “a contraposição normativa passa a ser não mais puramente religiosa, moral ou econômica, e, sim, política” (SCHMITT, 2009, p. 38). Nesse tipo de conflito, a guerra é tida como a eventualidade extrema, tendo em vista que os meios não-políticos não foram suficientes para resolvê-los. Assim, a guerra se coloca como “a última guerra da humanidade” (SCHMITT, 2009, p. 39), sendo que elas são, necessariamente, conflitos intensos e desumanos, pois “ultrapassando o âmbito do político, simultaneamente rebaixam o inimigo quanto a categorias morais, entre outras, e se vêem forçadas em transformá-lo em um monstro desumano, o qual há de ser não só repelido, como também definitivamente exterminado” (SCHMITT, 2009, p. 39).

A partir de Schmitt, Kervégan (2006, p. 58), demonstra que a guerra, em sua perspectiva de situação-limite, se apresenta como um horizonte de sentido que embasa a essência normal da política. Logo, a política pode ser vista como a arte – ou o poder – de dominar e administrar essa constante possibilidade do conflito. Nesse sentido, a guerra não é objetivo, finalidade e, tampouco, o conteúdo da política, sendo, prioritariamente, “o pressuposto inafastável de uma real possibilidade, o qual determina de forma singular a ação e o pensamento humanos, provocando assim, um comportamento especificamente político” (SCHMITT, 2009, p. 36).

A forma de pensar o político como gradação, ou seja, como grau de intensidade do conflito, desenvolve-se, por um lado, como a grande novidade na teoria política, e, por outro, ela se mostra um perigo. Caso o inimigo, como quer Schmitt, seja despojado de qualquer substância, surge um vazio que necessita ser preenchido. Se o lugar ocupado pelo inimigo é vazio, isso significa que ele pode ser preenchido por qualquer elemento. No entanto, acontece que o soberano, visto como o representante da unidade política, detém a prerrogativa de decidir quem é o inimigo, identificando os grupos a serem combatidos. O soberano é, em última análise, aquele que decide sobre e no estado de exceção (SCHMITT, 1985, p. 5). Logo, a decisão acerca do estado de exceção comporta um sentido existencial superior, pois

a existência do Estado é prova indubitável de sua superioridade sobre a validade da norma jurídica. A decisão liberta-se de qualquer ligação normativa e torna-se, no sentido verdadeiro, absoluta. [...] O Estado suspende o direito, no caso de exceção apoiando-se no seu direito de autopreservação. (SCHMITT, 1985, p. 12)126.

Portanto, o procedimento decisório é colocado de forma decisionista, recaindo neste ponto a periculosidade do pensamento schmittiano: não está claro em Schmitt se a decisão possui algum fundamento, mesmo considerando que ela fosse tomada no quadro de uma ordem concreta, nos termos do chamado giro institucionalista dos anos 30 (SCHMITT, 2011a). A questão que se coloca é que a decisão permanece oculta, em um lugar em que ela não é visível aos olhos humanos. De toda forma, não seria incorreto afirmar o caráter autoritário de tal concepção de Estado (MACHADO; CATTONI DE OLIVEIRA, 2011, p. 5527).

Para Schmitt, o Estado cessa sua existência como formação política autônoma, tornando-se uma mera organização da sociedade civil ou de outro campo da vida, quando perde sua capacidade e sua autoridade de decidir sobre a dicotomia amigo/inimigo. A perda da unidade do Estado leva à dissolução do monopólio do político, inviabilizando a tomada de decisões, bem como o exercício da soberania. É a perda do monopólio do político e a desintegração da soberania do Estado que coloca em crise a Constituição de Weimar.