• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 – CARL SCHMITT

1.4 WEIMAR E A ESCOLHA PARLAMENTARISTA

1.4.1 A Ditadura Comissária

O normativismo típico do liberalismo que defende um government of law, not of men, encontra na ditadura a negação desse postulado. Isso porque, segundo Schmitt (1968, p. 26), a ditadura sempre “contém uma exceção a uma norma”128, ou seja, a

suspensão da ordem jurídica vigente. Schmitt, no início de seu livro A Ditadura, apresenta uma distinção entre ditadura e despotismo, estabelecendo que:

desde o ponto de vista filosóficojurídico, a essência da ditadura está [...] na possibilidade geral de uma separação das normas de direito das normas de realização do direito. Uma ditadura que não se faça dependente de um resultado a alcançar, correspondente a uma representação normativa, mas concreta, e que por isso não tenha por fim fazer-se supérflua a si mesma, não é senão um reles despotismo. (SCHMITT, 1968, p. 26)129

Schmitt percebe a ditadura como um instrumento de direito público, de modo que seu conteúdo, alcance e competência, não são, em última análise, delimitados juridicamente (FERREIRA, 2004, p. 103). Logo, Schmitt não vê a ditadura como uma forma de governo, mas como uma força que se insere no limite da vida política, onde as leis são forjadas (BIGNOTTO, 2008, p. 413).

Schmitt (1968) faz uma diferenciação entre ditaduras comissária e soberana, tendo como ponto chave o normal, ou seja, o que é suspendido pela exceção. Todavia, a suspensão não acarreta, necessariamente, a negação da situação normal, a negação da ordem jurídica.

Tendo em vista que a norma não regula suas próprias condições de aplicação, pode ocorrer que a situação normal exigida para sua incidência não esteja disponível,

128 Na tradução espanhola: “contiene una excepción a una norma”.

129Na tradução espanhola: “Desde el punto de vista filosoficojurídico, la esencia de la dictadura está […] en la posibilidad general de una separación de las normas de derecho y las normas de la realización del derecho. Una dictadura que no se hace dependiente de un resultado a alcanzar, correspondiente a una representación normativa, pero concreta, que según esto no tiene por fin hacerse a sí misma superflua, es un despotismo cualquier”.

necessitando-se, então, de uma força, consubstanciada em uma decisão, que irá restaurar a condição sine qua non da norma. Logo, a norma é suspensa, para que sejam restabelecidas as condições concretas que permitem sua incidência. É aqui que se insere o conceito de ditadura comissária130, sendo essa caracterizada como a

execução de medidas excepcionais cujo objetivo é de recriar a segurança pública (BALAKRISHNAN, 2000, p. 32). Assim, a ditadura se apresenta como um poder transitório que restabelece as condições de aplicação do direito. Tal poder transitório é outorgado pelo soberano a um comissário que, a partir de então, teria legitimidade para suspender a ordem jurídica vigente, impondo medidas que re-instaurem as condições normais sob as quais as normas se aplicam.

O papel desempenhado pelo comissário é desenvolvido por Schmitt, a partir das reflexões de Jean Bodin apresentadas em seu livro Os Seis Livros da República (Les six livres de la république). Bodin (1986), afirma que o ditador não é o soberano, mas um agente delegado da vontade soberana, que recebe instruções para expedir medidas que estão fora do que é previsto pelo direito vigente. Logo, o comissário não goza de um poder discricionário, mas tem sua esfera de atuação limitada pela competência que lhe é dada pelo soberano. É aqui que Schmitt (168, p. 70-72) afirma que o ditador é um comissário131, que tem seus poderes regulados no tempo e no

espaço, atuando

no interesse do fim a se alcançar por meio de sua ação, o ditador recebe uma autorização, cujo significado essencial consiste na abolição de barreiras jurídicas e na faculdade de transgredir direitos de terceiros, quando se fizer necessário pela situação das coisas. Não é que as leis nas quais se apóiam esses direitos de terceiros sejam derrogadas, mas somente que no caso concreto se pode atuar sem tomar em consideração os direitos, sempre que seja necessário para a execução da ação [...]. Tampouco se promulgará positivamente uma lei que delimite em termos gerais aquela transgressão como competência do ditador em conformidade com o estado de coisas; ao contrário, admitem-se ‘exceções segundo a situação das coisas’, conceito que contradiz logicamente uma regulação geral por uma lei. (SCHMITT, 1968, p. 71)132

130 Sua primeira aparição remonta ao Império Romano, onde, nos casos de emergência, o Senado

designava um ditador que, após solucionar a situação extraordinária, devolvia o poder novamente ao Senado.

131

Segundo Schmitt (1968, p. 71): “O ditador seria um comissário de ação absoluta.”. Na tradução espanhola: “El dictador sería un comisario de acción absoluto”.

132

Na tradução espanhola: “En interés del fin a alcanzar por la acción del dictador, el dictador recibe un

apoderamiento, cuya significación esencial consiste en la abolición de barreras jurídicas y en facultad para transgredir derechos de terceros, cuando lo haga necesario la situación de las cosas. No es que

No mesmo sentido se coloca Maquiavel, ao afirmar que a ditadura era essencial à defesa das liberdades republicanas:

O ditador era para ser temporário e não permanente e somente para sanar o motivo de sua criação; e sua autoridade incluía o Poder de decidir por si mesmo remédios para esse perigo premente, de agir sem consulta e punir sem apelo; mas Ele não poderia fazer alguma coisa com a qual Ele reduziria a autoridade do Senado ou do Povo, para desfazer as ordens antigas da cidade e fazer novas. (MACHIAVELLI, 1962, p. 202)133

Em suma, a ditadura comissária é tida como a suspensão de uma ordem jurídica, através da imposição de medidas pelo ditador-comissário, em prol do restabelecimento efetivo daquela própria ordem: “Apesar de seus poderes discricionários, de todo modo, ditadura comissarial permanece uma forma de política constituída, designada para proteger a ordem constitucional estabelecida nos casos de crise excepcional e alto perigo” (KALYVAS, 2008, p. 89)134. Portanto, a ditadura, instaurando a exceção, “ignora

o direito, é tão só para realizá-lo” (SCHMITT, 1968, p. 27)135. Portanto, a divisão entre

norma de direito e norma de realização do direito (SCHMITT, 1968, p. 26) se apresenta como fundamental ao conceito de ditadura, já que esta, para a realização da norma de direito, deve suspender a norma de realização daquele direito que, aos olhos do ditador, se mostre como um obstáculo.

se deroguen las leyes en que se apoyan esos derechos de terceros, sino solamente que en el caso concreto pude actuarse sin tomar en consideración los derechos, siempre que sea necesario para la ejecución de la acción […]. Tampoco se promulgará positivamente una ley, que delimite en términos

generales, aquella transgresión como competencia del dictador de conformidad con el estado de cosas; más bien, se admiten ‘excepciones según la situación de las cosas’, concepto que contradice lógicamente una regulación general por una ley”.

133

Na tradução inglesa: “The dictator was to be temporary and not permanent and only in order to remedy

the reason for his creation; and his authority included the Power to decide for himself remedies to that pressing danger, to act without consultation and to punish without appeal; but He could not do anything that He would reduce the authority of the Senate or the People, to unmake the old orders of the city and make new ones”.

134

No original: “Despite its discretionary powers, however, commissarial dictatorship remains a form of constituted politics, designed to protect the established constitutional order in case of exceptional crisis

and high peril.

135