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O Presidente como o guardião da Constituição

CAPÍTULO 1 – CARL SCHMITT

1.5 O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO

1.5.2 O Presidente como o guardião da Constituição

Como defensor da constituição, Schmitt idealiza uma instituição que esteja no mesmo nível dos possíveis litigantes, se apresentando como um terceiro neutro escolhido pela via plebiscitária, representando a unidade da comunidade política, além de possuir, no exercício de suas funções, independência para intervenção nos direitos previstos na própria Constituição. A partir disso, percebe-se que a defesa de Schmitt (2007b, p. 193-234) acerca da legitimidade do presidente para a defesa da constituição se fundamenta em três bases: (i) o presidente era visto como ou pouvoir neutre, nos

termos propostos por Constant (ver item “1.5.2” do capítulo 1); (ii) como representante da unidade política, possuindo independência para defendê-la; (iii) era escolhido pelo método plebiscitário (ver item “1.4.4” do capítulo1).

Como visto, a Constituição de Weimar incorporava o princípio da divisão de poderes, de modo que sua defesa não poderia recair sobre nenhum deles, sob o risco de se caracterizar não um guardião da Constituição, mas sim o seu senhor. Como dito por Schmitt (2007b, p. 193), na defesa da constituição deve prevalecer relações de coordenação e não de subordinação entre os poderes da República. Por essa razão é que Schmitt se apropria da teoria do pouvoir neutre et intermédiaire de Constant, a partir da qual espelha a fundamentação da posição privilegiada do Presidente do Reich em suas competências, pensadas como elementos e possibilidades de intervenção desse pouvoir neutre.

Uma importante questão resgatada por Schmitt (2007b, p. 197) na doutrina de Constant, se refere à aplicação da distinção entre auctoritas e potestas, o que, na Alemanha, se manifesta na diferença entre régner e gouverner, já que o monarca, enquanto pouvoir neutre, reina, mas não governa, règne et ne gouverne pas. Assim, é na figura do Presidente que repousa a unidade política, o que se dá, segundo Schmitt, através da reunião entre régner e gouverner. Ele, o chefe de Estado,

representa a continuidade e a permanência da unidade estatal e de seu funcionamento uniforme, transcendendo as competências a ele atribuídas, e que, por motivos da continuidade, da reputação moral e da confiança geral, tem que ter um tipo especial de autoridade, a qual faz parte da vida de cada Estado, assim como o poder e poder de comando que se tornam diariamente ativos. (SCHMITT, 2007b, p. 199)

Aqui, deve-se esclarecer que o poder neutro, consubstanciado no Presidente do Reich, deve atuar somente nos momentos de emergência, pois sua função é de defesa, de preservação a Constituição, ou seja, de um autêntico pouvoir préservateur (SCHMITT, 2007b, p. 200). Nesse sentido, o Presidente deve estar sempre em alerta, sempre disponível, mas só ativo nos casos extremos.

Portanto, é no Presidente que repousa o pouvoir préservateur, representando a continuidade de uma ordem política homogênea. Ele possui “poderes que o tornam independente dos órgãos legislativos” (SCHMITT, 2007b, p. 2001) como, por exemplo, sua prerrogativa de conceder graça e anistia (artigo 49, da Constituição de Weimar), bem como a de submeter a referendum leis votadas pelo Parlamento (artigo 73, da Constituição de Weimar). Essa independência do Presidente do Reich frente ao Reichtag é de suma importância na tentativa de equilibrar os poderes na República de Weimar, bem como de, ao menos, minimizar o hamletismo político que vigorava no Parlamento. Contudo, “a independência do Presidente é em relação aos partidos políticos, mas não em relação à política” (BERCOVICI, 2003, p. 71). Ora, então, o que confere ao presidente substância política, o tornando representante da nação alemã?

A guarda da Constituição pelo Presidente está diretamente relacionada ao elemento democrático da Constituição de Weimar, pois o Presidente é eleito pelo povo. A legitimação do soberano, isto é, do Presidente no caso de exceção, não se dá a partir de seu carisma como sustentaria Webber, mas da sua capacidade de atuar como o representante daquele invisível – aquele que é pressuposto como ausente e, no entanto, é simultaneamente tornado presente na pessoa do representante. Logo, o artigo 41, da Constituição de Weimar, que diz: “O Presidente é eleito por todo o povo alemão” (SCHMITT, 2008a, p. 416)202, não se trata de uma lei constitucional, mas sim

de uma decisão política fundamental, havendo, portanto, uma clara manifestação do político. Portanto, o Presidente “tem autoridade para si ligar diretamente à vontade política do conjunto do povo alemão e pode agir como guardião da unidade constitucional” (BERCOVICI, 2003, p. 72). Assim, “o presidente do Reich encontra-se no centro de todo um sistema de neutralidade e independência político-partidária, construído sobre uma base publicitária” (SCHMITT, 2007b, p. 232).

A independência do Presidente, com sua concreta possibilidade/necessidade de decisão, é alheia à lógica do Rechtsstaat liberal (MAIA, 2007, p. 231). O Presidente goza de independência e neutralidade, a partir do elemento democrático de seu cargo. Isso porque, (i) ele é eleito por todo o povo alemão, representando, portanto, a identidade entre governante e governado (SCHMITT, 2007b, p. 233-4); (ii) ele possui à

202

sua disposição meios plebiscitários para realizar a aclamatio do povo, “e dessa forma fortalecer ainda uma identificação entre quem governa e quem é governado: construir a homogeneidade mediante o estabelecimento da ‘pergunta correta’” (MAIA, 2007, p. 231).

O Presidente do Reich aparece, assim, como aquele que protege o elemento político da Constituição de Weimar, ou seja, a decisão pela democracia. Logo,

O fato de o presidente do Reich ser o guardião da Constituição corresponde, porém, apenas também ao princípio democrático, sobre o qual se baseia a Constituição de Weimar. O presidente do Reich é eleito pela totalidade do povo alemão e seus poderes políticos perante as instancias legislativas (especialmente dissolução do parlamento do Reich e instituição de plebiscito) são, pela natureza dos fatos, apenas um ‘apelo ao povo’. Por tornar o presidente do Reich o centro de um sistema de instituições e poderes plebiscitários, assim como político-partidariamente neutro, a vigente Constituição do Reich procura formar, justamente a partir dos princípios democráticos, um contrapelo para o pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a unidade do povo como uma totalidade política. [...]. Em todo caso, a Constituição de Weimar empreende a tentativa de maneira muito consciente, mais precisamente com meios especificamente democráticos. Ela pressupõe todo o povo alemão como uma unidade capaz de ação direta, não mediada só por organizações sociais em grupos, que pode expressar sua vontade e que, no momento da decisão, despreza as divisões pluralistas, possa se exprimir e se fazer respeitar. A Constituição busca, em especial, dar à autoridade do presidente do Reich a possibilidade de se unir diretamente a essa vontade política da totalidade do povo alemão e agir, por meio disso, como guardião e defensor da unidade e totalidade constitucionais do povo alemão. A esperança de sucesso de tal tentativa é a base sobre a qual se fundam a existência e a continuidade do atual Estado alemão. (SCHMITT, 2007b, p. 233-234)

A exposição até aqui realizada, demonstra a concatenação das ideias schmittianas, em especial, até o ano de 1933, ano este em que ele se filiou ao Partido Nacional-Socialista, o que influenciou algumas mudanças de posicionamento frente a determinadas questões jurídicas e políticas.

Até o final da República de Weimar (1933), o pensamento de Schmitt, a partir de sua matriz decisionista-institucionalista, culminou no reconhecimento da crise do Reichstaatst liberal em Weimar, principalmente em razão de ele retirar o político do Estado, diluindo-o na sociedade, fato que propiciou a perda da unidade política. Ao contrário do esperado pelo liberalismo, essa neutralização do Estado culminou na expansão de sua atuação, chegando-se ao Estado Total. Nesse, em que o Estado está presente em todas as esferas da sociedade, deve-se eleger aquele que se imponha

como o guardião da Constituição de Weimar, já que esta guarda o elemento da unidade política da nação alemã. Assim, rejeitando-se o liberalismo, por ser incapaz de gerar unidade, e o judiciário, por ser incapaz de tomar decisões políticas, Schmitt erige o Presidente do Reich como o guardião da Constituição, sendo ele quem representaria a unidade do povo alemão, podendo, em seu nome, suspender as leis constitucionais para a própria preservação da Constituição, nos termos de uma ditadura comissária. Apesar de outros pontos específicos de seu pensamento, aqui não tratados, percebe-se que as teorias de Schmitt, até 1933, se vinculam até culminarem na guarda da Constituição. Seus textos posteriores, compreendidos entre 1933 e 1936, são de cunho antissemita, dos quais, para os fins da presente pesquisa se destacam “O Führer protege o direito” e “A constituição da liberdade”.