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A DIMENSÃO CÍVICA – “MULHER MILITANTE DA VIDA”

No documento Gisela Maria Coelho de Sá (páginas 129-136)

4.OS MUNDOS POSSÍVEIS

“SÓ PODE HAVER ESCOLHA COM CONHECIMENTO”

2.3. A DIMENSÃO CÍVICA – “MULHER MILITANTE DA VIDA”

“A socialização é, enfim, um processo de identificação, de construção de identidade, ou seja, de pertença e de relação. Socializar-se é assumir o sentimento de pertença a grupos (de pertença ou de referência), ou seja, “assumir pessoalmente as atitudes do grupo que, sem nos apercebermos, guiam as nossas condutas” (Percheron, A. 1974, p.32 apud Dubar, C. 1995. Pag.31)

Como vimos, esta dimensão de acção, revela-se quando o professor transfere para o colectivo as suas capacidades individuais. Aqui, há como que uma secundarização do “eu” para evidenciar “o outro” e, sobretudo, os colectivos sociais. É o espaço da partilha do grupo e da consciencialização do grupo, da classe e do seu reconhecimento aos olhos dos demais. Mas também pode ser um reconhecimento público do sujeito individual na sua actividade pelo todo. Quando Domingas Valente assume uma postura de defesa dos desfavorecidos está a pôr em prática os seus princípios mais profundos, em prol dos outros.

«… é que nestas pessoas, que se encontram todos os dias, que sabem tudo acerca uns dos outros, a dor e a alegria, a esperança ou a desilusão de um tornam-se património de todos. E eu compreendi-os, emocionada, e como desejei a “varinha mágica” que de um momento para o outro tudo solucionasse…» (Valente, D. 2006. p.44)

Muitas vezes, o reconhecimento que os outros fazem de si, representa uma transferência da própria identidade desse grupo para ela, já que ela está como que mandatada para assumir a defesa dos interesses também daquele grupo.

Reduzir a actuação da Professora Domingas Valente à dimensão cívica, seria, a nosso ver, circunscrever a sua actividade a um modelo que teria de abranger as dimensões atrás referidas, já que entendemos que a sua postura (como filha, esposa, mãe, professora, militante…) sempre se pautou pela preocupação com o outro e como tal, pela luta por uma sociedade em que todos fossem iguais em direitos e em oportunidades, por isso os filhos sempre a apelidaram de «mulher militante da vida».

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Fig. 28 - Domingas Valente na Rua do Comércio em Portalegre no 1º de Maio de 1978

Não obstante o que já ficou dito, autonomizamos aqui, uma referência ao seu trabalho de luta pela classe do professorado, enquanto sindicalista.

«(…) o regime politico instaurado em Maio de 1926, e consolidado em 1933, não consagrava os elementares direitos cívicos consagrados, e em vigor, nas mais antigas democracias do mundo. Em virtude dos entraves políticos que impediam a participação livre dos cidadãos, os professores do ensino secundário público trabalharam, ao longo de todo o Estado Novo, pelo engrandecimento público da sua profissão. Na impossibilidade de se constituírem associações profissionais ou sindicais destinadas a representarem o corpo dos docentes do ensino público, os porta-vozes dos professores construíram uma pluralidade de regimes de acção visando a projecção pública dos seus diferentes mundos, com vista a consolidar simbolicamente o seu estatuto profissional.» (Resende, J.2003. pp.47-48)

«A construção dos mundos plurais possíveis – as cidades (Boltanski, Thévenot, 1991) – é um exercício operacional que visa determinar os modelos de grandeza dos indivíduos que interagem entre si. Cada uma das cidades criadas é um espaço público onde os actores intentam chegar a compromissos realizáveis, os denominados acordos, através do seu trabalho permanente de justificação fundamentada». (idem p.1012)

A construção dos mundos possíveis e a identificação das formas do regime de acção justificativo que radicam no comprometimento de Domingas Valente na efectiva criação e recriação do espaço público, assumem um especial relevo na sua luta pela criação do Sindicato dos Professores da Zona Sul, em Portalegre.

«A capacidade de transformar uma questão singular numa questão de âmbito geral ou a capacidade de transformar uma questão de carácter individual numa questão de carácter colectivo são competências que os actores revelam no seu

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quotidiano, por intermédio da mobilização dos recursos usados nas situações e nos encontros quotidianos.» (ibidem p.1012)

Domingas Valente tinha a convicção de que os professores eram o suporte educacional, a ponte para uma sociedade nova, pois espera-se do professor um dever de inconformismo e de procura constante na investigação pedagógica.

As insuficientes condições do espaço escolar, os parcos vencimentos auferidos pelos professores, a desigualdade entre professores do género masculino e feminino, e a forma como eram estipulados os diferentes vencimentos, eram motivos bastantes para que a profissão não fosse apelativa e permitisse o acesso à profissão de professores com menores qualificações para colmatar a falta que se verificava em todo o país. Em última instância, o professorado começava a ser encarado como uma profissão socialmente pouco prestigiada e isso transformou-se num problema com grande impacto. A partir da década de setenta, foram inúmeras as vicissitudes como sabemos, mas a questão da qualidade do ensino do “novo aluno” complexo, oriundo de uma sociedade em mutação, face a um professor que tem de ser cada vez mais qualificado e que, por isso terá de ser bem remunerado, nunca mais deixaram de constar na agenda politica.

Para Domingas Valente, o sucesso do trabalho desenvolvido ao longo dos anos, pelos professores, só teria projecção se desenvolvessem entre si, a consciência de corpo colectivo e acreditassem na importância da sua acção não só educacional mas também política. Deste ponto de vista, a professora filiava-se, de facto, numa concepção cívica da docência, fazendo uso das possibilidades abertas no seu espaço profissional, de um modo que nos leva a recordar a análise que Bourdieu enceta do trabalho dos profissionais em torno da definição dos domínios das diferentes profissões.

«A definição destes postos mal definidos, mal delimitados, mal garantidos, reside, paradoxalmente, na liberdade que consentem aos seus ocupantes de os definir e de os delimitar introduzindo-lhes os seus limites, a sua definição, toda a necessidade incorporada que é constitutiva do seu habitus. Estes postos serão o que são os seus ocupantes ou, pelo menos, aqueles que, nas lutas internas da «profissão» e nas confrontações com as profissões afins e concorrentes, consigam impôr a definição a definição da profissão mais favorável àquilo que eles são. Isto não depende somente deles ou dos seus concorrentes, quer dizer, da relação de forças no interior do campo em que se situam, mas também do estado da relação de forças entre as classes que, fora de qualquer estratégia consciente de «recuperação», decidirá acerca do sucesso social partilhado pelos diferentes bens ou serviços produzidos na luta e pela luta com os concorrentes imediatos e da investidura institucional concedida àqueles que os produzem.» (Bourdieu, P. 1989b, p.91)

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A adopção de um sentido cívico assumido nas suas formas de representação da profissão conduziram-na à assumpção de um papel, a nosso ver, relevante, consciente e realizado em nome de valores gerais, que ultrapassavam os quadros ideológicos dominantes à sua época, de forma algo análoga à que Bourdieu identifica em certas “lutas

simbólicas” em nome da promoção do universal, nomeadamente na construção do Estado moderno em países como a França:

«(…) para se impor nas lutas que a opõem às outras fracções dominantes, nobres de espada e também burgueses de indústria e negócios, a nova classe, cujo poder e cuja autoridade assentam no novo capital, o capital cultural, tem de levar os seus interesses particulares a um grau de universalidade superior e inventar uma versão a que podemos chamar “progressista” (…) da ideologia do serviço público e da meritocracia: reivindicando o poder em nome do universal, nobres e burgueses de toga fazem avançar a objectivação e, através dela, a eficiência histórica do universal e não podem servir-se do Estado que pretendem servir sem servirem numa medida ou noutra os valores universais com que o identificam.» (Bourdieu, P. 1997, p.25)

O trabalho mobilizador levado a cabo pela Professora Domingas no seio da sua classe, foi-o tanto ao nível das novas práticas em sala de aula, como também na sua relação com os seus pares, transformando-se numa porta-voz na luta por uma sociedade livre e justa, num tempo em que a falta de liberdade política cerceava a denúncia e expressão pública das injustiças.

Fig. 29 - «Esta fotografia é magnifica… é amizade, é ternura é tudo… o professor Simão, que tinha sido meu aluno no Magistério – aqui no 1º ano em que deu aulas na Escola da Serra» Valente, D. Entrevista

Ainda assim, Domingas Valente, nunca se coibiu de defender os seus ideais e apontar o que considerava errado. Mesmo que, por vezes, não tivesse o apoio do colectivo, que acabava por representar com as suas acções, e para quem trazia benefícios plurais com a sua actuação singular.

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«Um dia com as lágrimas nos olhos tive de dizer que elas estavam a confundir tudo...um sindicalista pode dizer-se anticristão mas eu posso dizer que sou sindicalista e cristã porque eu trabalho para vocês todas porque quando vêm os aumentos e as benesses são para todas mas só uma é que lutou que está sobrecarregada com três filhos!

E as lágrimas chegaram-me aos olhos porque isto para mim defender ali a minha parte católica com a minha parte revolucionária era difícil» (Valente, D. Entrevista) A associação dos professores poderia contribuir não só para mobilizar e defender os interesses legítimos dos seus membros, como também para a discussão de novas abordagens de política escolar.

«A mobilização do corpo de professores destinada a lutar com afinco por uma revalorização social da sua profissão requeria agora a combinação equilibrada do reforço da identidade pessoal e da identidade colectiva. A pessoa do professor devia também ser valorizada do ponto de vista institucional.» (Resende 2003 p. 869)

«Só essa luta de resistência activa tornava possível a concretização do projecto de formação pedagógica baseado na defesa da iniciativa cientifica dos docentes, isto é, numa iniciativa que deixasse de estar sujeita aos caprichos do poder instituído e passasse a estar sujeita às regras e aos métodos impostos pela ciência. Nesta forma de luta permanente, e sem concessões, residia a força e o poder dos professores enquanto classe profissional.» (idem, p.871)

«Não se trata de mobilizar a experiência apenas numa dimensão pedagógica, mas também num quadro conceptual de produção de saberes. Por isso, é importante a criação de redes de (auto)formação participada, que permitam compreender a globalidade do sujeito, assumindo a formação como um processo interactivo e dinâmico. A troca de experiências e a partilha de saberes consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e de formando.

O diálogo entre os professores é fundamental para consolidar saberes emergentes da prática profissional. Mas a criação de redes colectivas de trabalho constitui, também, um factor decisivo de socialização profissional e de afirmação de valores próprios da profissão docente. O desenvolvimento de uma nova cultura profissional dos professores passa pela produção de saberes e de valores que dêm corpo a um exercício autónomo da profissão docente.» (Novoa, A. p. 14)

O desinteresse de alguns e a apatia de muitos, mantiveram-se, o que de alguma forma permitiu que durante longos anos, a escola reproduzisse ainda as assimetrias sociais existentes, pelo que só a partir de Abril de 1974, assistimos ao aparecimento de uma nova perspectiva de escola e da profissão de professor.

A experiencia política de Domingas Valente, ainda que de certa forma velada, proporcionou-lhe a aprendizagem indispensável quer para a tomada de consciência de que urgia a criação de “grupos de reflexão” 6, quer para a definição de objectivos e formas de luta sobre o estado da profissão (e sua reivindicação). Esta “socialização política”, capaz de

6 Assim denominados em virtude de o Estado não autorizar a existência de associações ou

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transformar o mal-estar de um grupo profissional, num movimento social extensível a outras categorias profissionais, assume uma superior importância na acção de Domingas Valente.

«A justificação cívica da luta fundamentava-se na tese da unidade do corpo dos professores (…) e aliava-se à justificação industrial, uma vez que qualquer movimento de natureza política necessitava de demonstrar a sua eficácia através dos resultados que conseguia obter durante a sua acção. A articulação entre a

fundamentação cívica e a fundamentação industrial objectivava-se na própria organização e socialização politica.» (Resende, 2003, p. 924)

«Estava também nas suas mãos, através do ensino que exerciam, a condução do processo de transformação da mentalidade e, como resultado dessa operação, a criação do «homem novo». (idem, p. 939)

O saber pedagógico da Professora Domingas foi mobilizador dos seus pares mas foi também o suporte para expressar aos governantes locais as matérias sobre as quais não concordava e queria ver alteradas. O saber pedagógico foi utilizado como um recurso prático com grande alcance em matéria de mobilização do corpo de professores para a formação do mundo cívico.

«Na verdade, o modelo de justificação cívico, como modelo justificativo para a afirmação do professorado como profissão, não podia aparecer desligado do modelo de justificação inspirado. A autonomia do corpo dos professores das teias montadas pela burocracia estatal requeria a saída do professorado das profissões assalariadas integradas na função pública.

O êxito desta operação exigia o desenvolvimento de um corpo de saberes particulares, detidos exclusivamente por estes profissionais, e objecto de contínuo de aperfeiçoamento e melhoramento através da adopção de práticas de trabalho reflexivo que assentassem em projectos de investigação pedagógica. No entanto, a referida operação só encontraria uma absoluta garantia de êxito se os professores se transformassem num corpo profissional politicamente interventor.» (ibidem p. 815)

Neste seguimento, Domingas lutou pelo direito a uma educação para todos, com melhores condições físicas e materiais do espaço escolar, e pela maior qualificação dos professores. No início dos anos 70

«a consagração do direito de todos à educação não assumia ainda um colorido politico, na voz destes actores, tal como acontecia nos países democráticos. A sua declaração resumia-se a uma necessidade de o Estado responder à crescente procura escolar, por um lado, e de corresponder às expectativas positivas depositadas nos efeitos positivos da escolarização no desenvolvimento económico, por outro lado.» (ibidem, p. 854)

«o modelo de justificação cívico, em que assentava a contestação politica, baseava-se numa lógica muito similar à lógica que fundamentava a contestação profissional. Mas o conceito de unidade e de classe extravasava o próprio conceito profissional. Na prática, a justificação cívica que sustentava a lógica das reivindicações políticas no domínio global da educação podia não encontrar muito apoio entre os professores, mas estes professores depositavam toda a confiança na sua aceitação pelas «massas populares.

E esta sua crença na necessidade de alargar a luta para terrenos políticos a fim de terem o apoio das massas revolucionárias levava-os a alimentar a convicção que a representação do professorado tinha de ser produzida (…) numa sociedade que

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precisava de ser libertada do domínio e controlo social, realizados pelo regime» (ibidem, p.939)

Os professores surgiam como o “veículo” ideal para esclarecerem as massas populares e tomarem consciência do seu papel na

«transformação das estruturas mentais e das estruturas económicas e sociais de uma sociedade «fascista», assente no domínio da classe dominante e exploradora, para uma sociedade «socialista» assente no domínio das classes trabalhadoras e libertadoras» (Resende, 2003, p.939)

O trabalho de mobilização e de informação sempre presente na actividade de Domingas Valente era fruto de uma consciência cívica que, como modelo de inspiração, era o mote para esta actividade sindical que agora nascia. Para tal, era necessário não só o apoio da classe como também da opinião pública.

«somente unidos, organizados e representados por uma associação de cariz sindical, os professores estavam em condições de conseguir resultados políticos convergentes aos seus interesses de classe - a melhoria do seu estatuto e a transformação global do sistemas escolar-, que mais não eram do que a tradução dos próprios interesses das classes trabalhadoras.» (idem, p.939)

Quanto mais informação fosse fornecida, acerca da realidade económica, politica e social do país, maior era a possibilidade de sucesso desta causa. Os ideais marxistas de uma sociedade justa, sem a exploração realizada pelos “opressores” contra os “oprimidos” e de reprodução das assimetrias, eram fundamento bastante para que a oposição ao regime vigente fosse despoletada e se instalasse a crença de que o seu aniquilamento seria possível através justamente da criação de sindicatos, instrumento bastante para o desenvolvimento da “luta de classes”. Com a

«transformação da representação produzida sobre os alunos, o trabalho e as relações pedagógicas, estes representantes dos docentes exigiam igualmente do Estado a necessidade de reconhecer a importância da existência de organizações profissionais. O reconhecimento político e jurídico da questão das organizações destinadas a defender profissionalmente a classe contribuía para consolidar a grandeza dos professores». (ibidem, p. 961)

Face a uma escola tradicionalista e desigualitária, Domingas Valente procurava evidenciar os compromissos que esse Estado deveria ter com os seus cidadãos, procurando defender e prosseguir na criação de uma escola universal, mais envolvida e envolvente, e mais justa, tendo sempre presente os valores basilares de igualdade e de liberdade.

«Quando eu disse que tinha sindicalizado (eu mostrei sempre como era) 61 pessoas em Ponte de Sor, numa reunião de sindicato, 61 pessoas, eram alunas minhas do magistério que já estavam ao serviço, sabiam da minha integridade, sabiam… que é para cumprir, é para trabalhar, sabiam que o ensino se valoriza… quando eu disse que era um acto cristão, que eu trabalhava para todas e depois as benesses eram para todas, só uma se sacrificava, mas eu fazia isto de boa vontade, mas cansava-me tanto…» (Valente, D. Entrevista)

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«poder-se-ia dizer que passámos de um pensamento sistemático, em que ao Estado se via confiar uma missão de igualdade de oportunidades pela padronização das condições de ensino, a uma concepção pragmática, que espera dos docentes e das colectividades territoriais que reajustem ponto por ponto os defeitos mais gritantes do sistema, sabendo ao mesmo tempo que a perfeição não é deste mundo» (Derouet, 1992. p.275 apud Resende, J. 2003. p. 130)

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