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MODELOS DE REPRESENTAÇÃO QUE OS DOCENTES PERFILHAM PARA ENGRANDECER A PROFISSÃO

No documento Gisela Maria Coelho de Sá (páginas 34-38)

Na sua obra A reprodução: Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, evidenciam, para além de outras questões, o carácter reprodutivo da escola. Para estes autores, a escola é concebida como uma instituição que reproduz e legitima a dominação exercida pelas classes dominantes, transmitindo uma cultura socialmente reconhecida como legítima. Não sendo esse o seu principal enfoque, esta obra contribuiu de forma significativa para o entendimento das relações entre os sujeitos (nomeadamente professores, alunos e pais) nos diferentes espaços sociais, e a estrutura social, ajudando a clarificar as lutas internas, as hierarquias, as condutas existentes nas inter-relações entre o indivíduo e a sociedade e os mecanismos de discriminação e diferenciação inerentes ao funcionamento da escola.

Para tal, Bourdieu e Passeron conceberam o conceito de habitus, que funciona como um mediador entre os sujeitos e o campo social. Esse habitus, é o produto da internalização das condições históricas e sociais que o indivíduo realiza ao longo da sua trajectória pessoal, profissional e social e que transporta ao longo da vida e é importante para a análise de atitudes subjetivas que são capazes de estruturar as representações e a formação de novas práticas. Os saberes produzidos, incorporados pelo habitus, ao longo da sua trajectória, são mobilizados pelo professor conforme as necessidades colocadas pelos dilemas da sua vida profissional.

Para Bourdieu e Passeron, toda a acção pedagógica é “violência simbólica” porque impõe e inculca arbítrios culturais, pelo que, não há acção pedagógica livre. Ademais, o exercício da acção pedagógica e da autoridade pedagógica serão mais eficazes sobre a classe que está mais ajustada ao modelo cultural inculcado e não se limitam a uma simples forma de comunicação, pois exigem o reconhecimento da autoridade pedagógica, sem a qual não haverá legitimidade do emissor e não existirá aprendizagem.

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Para estes autores, a autoridade pedagógica obedece, em primeiro lugar, ao modelo da relação entre pais e filhos pelo que, a comunicação pedagógica não se faz em plano de igualdade pois, deste modo, não haveria autoridade pedagógica. O emissor pedagógico detém a autoridade pedagógica que lhe é automaticamente garantida pela tradição e pelas instituições e pela posição que nelas ocupa.

Assim, o trabalho pedagógico pode ser visto como uma incorporação do habitus porque ele se eterniza mesmo depois da acção pedagógica cessar; pelo habitus, perpetuam-se os princípios e a acção pedagógica deverá, forçosamente, ser um trabalho contínuo e diferente do de outros domínios, pelo que, a educação é um instrumento fundamental para haver continuidade histórica, já que reproduz esses arbítrios culturais, intelectuais e morais.

O habitus funciona como uma matriz de percepção, orientação e de apreciação das acções; os elementos definidores da posição social que os individuos ocupam, os símbolos, as crenças, os gostos, as preferências que caracterizam a sua posição social, são incorporadas pelos sujeitos (mesmo que de forma inconsciente), tornando-se parte da sua natureza, constituindo-se num habitus que reflete assim ele próprio, as características da realidade social na qual os sujeitos foram anteriormente socializados.

Bourdieu distingue ainda dois “tipos” de habitus: o habitus primário, transmitido de maneira implícita, inconsciente, pela educação familiar e regras de classe e o habitus secundário explícito, metodicamente organizado, proveniente da educação escolar, da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa. À medida que as condições sociais e históricas são alteradas, o habitus também se modifica e vai incorporando outros esquemas de percepção e acção, no campo social (local de mediação entre o actor e a estrutura) que irão contribuir para a conservação ou transformação das estruturas. Cada campo social possui hierarquias e disputas, entre dominantes e dominados, por determinados bens simbólicos (como o capital cultural, económico e social) e consequentemente por posições sociais.

Neste seguimento, podemos dizer que o professor é visto como um sujeito sociocultural que constrói e reconstrói os seus saberes em função das necessidades e demandas do contexto histórico e social, das suas experiências, e do seu percurso formativo e profissional.

O saber dos professores é um saber social porque por um lado é inerente à sua própria identidade, à sua experiência de vida e história profissional, às suas relações com os

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alunos em sala de aula, mas também porque é partilhado por um grupo (de professores), que possuem uma formação comum, que trabalham no mesmo espaço e em consequência desse “campo”, são submetidos a representações colectivas da profissão.

Também o acto de ensinar, exige ao professor que ele evolua a par das mudanças sociais, e por isso, será um saber incorporado, modificado, adaptado em função dos

diversos momentos de sua carreira, ao longo de sua trajetória profissional. É precisamente neste sentido que cotejamos a mediação entre actor e estrutura e os mecanismos de intervenção na prática social dos sujeitos, proposta por Bourdieu. Os saberes da experiência são saberes práticos e formam um conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam e orientam a sua acção. Na medida em que o professor enfrenta dificuldades e interage com os campos social, profissional e escolar, ele utiliza, amplia e modifica o seu habitus.

Deste ponto de vista teórico, o saber prático, ou a prática pedagógica, não se limitam a um fenómeno da pura atividade individual, em que o professor incorpora, adapta e aplica, mas também às exigências, numa relação dialética mediada pelo habitus, que se impõem em resultado de relações, lutas e hierarquias no interior de campos sociais específicos.

O professor, enquanto sujeito que exerce uma determinada função num quadro de finalidades do sistema escolar, pode fazê-lo através de práticas consensuais ou de práticas de disputa e de operações de justificação.

Para Bourdieu,

«Quando os dominados nas relações de forças simbólicas entram em luta em estado isolado, como é o caso nas interacções da vida quotidiana, não têm outra escolha a não ser a da aceitação (resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da definição dominante da sua identidade ou da busca da sua assimilação a qual supõe um trabalho que faça desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma (no estilo de vida, no vestuário, na pronuncia, etc.) e que tenha em vista propor, por meio de estratégias de dissimulação ou de embuste, a imagem de si o menos afastada possível da identidade legítima.» (1989b, p.124)

«A revolução simbólica contra a dominação simbólica e os efeitos da intimidação que ela exerce tem em jogo não, como se diz, a conquista ou a reconquista de uma identidade, mas a reapropriação colectiva deste poder sobre os princípios de construção e de avaliação da sua própria identidade de que o dominado abdica em proveito do dominante enquanto aceita ser

negado ou negar-se (e negar os que, entre os seus, não querem ou não podem negar-se) para se fazer reconhecer.» (idem, p.125)

Cabe, porém, questionar a perspectiva segundo a qual a actuação do corpo docente resulta de forma determinante da incorporação de estruturas objectivas, através de um

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habitus, sistema de disposições incorporadas, que se actualizam quando as suas estruturas se (re)encontram com as estruturas sociais do mundo que o produz. Com efeito, várias perspectivas mais recentes no âmbito da sociologia e da teoria social vêm dando maior relevo à capacidade reflexiva e crítica dos indivíduos, conferindo-lhes uma maior autonomia do julgamento face às estruturas sociais do que Bourdieu supôs e, por outro lado, centrando

o ênfase das análises nas capacidades e competências demonstradas pelos indivíduos em situações concretas da sua vida quotidiana. Tal perspectiva, convida-nos a perceber a vida social no quadro de uma diversidade bem maior de lógicas de acção do que uma óptica mais “estrutural” poderia fazer pensar.

A aceitação (ainda que) formal, de uma análise de contexto situacional da profissão, pode ser assim equacionada a partir de algo aparentemente tão simples como o relacionamento dos indivíduos com os objectos. Por exemplo, a atribuição de um valor subjectivo às batas, aos manuais escolares, aos programas escolares, à palmatória, entre outros, pode traduzir uma ordem de grandeza e prova de actos de justificação, para utilizar expressões e conceitos oriundos de uma destas perspectivas mais recentes. Aliás, para que o actor possa assumir um desempenho justo nas formas de julgamento que desencadeia num determinado momento, é necessário que seja capaz de reconhecer cabalmente a situação em que se encontra envolvido e esteja devidamente ajustado a essa ocorrência. Mas a competência não é unicamente natural. Será uma “capacidade moral” que irá permitir ao actor o seu desempenho ajustado aos diferentes espaços por onde se movimenta ao longo da vida. É através do seu sentido ético que se verificará a integração ao nível da intervenção pública: a questão da identidade comum, pressupõe o reconhecimento e a identidade comum dos pares com quem o acordo se faz e um outro mais geral de grandeza das reaproximações possíveis, cremos aliás ser este o sentido do entendimento perfilhado por Boltanski e Thévenot (1991). Abordemos, então, esta perspectiva, que nos servirá como um elemento fundamental do nosso roteiro teórico.

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