• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3: ―AQUI A GENTE TEM FOLHA‖: TERREIROS DE RELIGIÕES DE

3.2 TER A FOLHA É TER O CONHECIMENTO

3.2.2 A DIMENSÃO COLETIVA E COMPARTILHADA DOS SABERES

Retomando, então a fala da Iyá Ozanélia durante a aula, outros aspectos me foram chamando atenção.

[Iyá Ozanélia] É que a ancestralidade vem puxando, né (...) uma neta minha filha da Izonara, ela tem 13 anos, ela virou agora, bolou57 no meu candomblé [obrigação de sete anos do Paulo], o orixá dela é um orixá muito difícil, não que eu não tenha a folha, nós temos a folha, só que, ela é tão linda, o cabelo dela é tão lindo como o de vocês que eu não sei se eu vou ter coragem de cortar.

[Carla] A senhora diz que ―tem a folha‖, o que é ―ter a folha‖?

[Yá Ozanélia] A folha é porque nem todo orixá, nem todo mundo sabe dar a folhar de fazer o seu orixá, nem todo mundo tem o conhecimento pra fazer aquele orixá. É o conhecimento. Ela é filha de

57

[Zenildo] Bolar? Falando pra você entender, é um desmaio, porque o teu orixá tá pedindo feitura, ele tá pedindo pra ser iniciado, se eu errar a senhora me corrija, mãe.

[Iyá Ozanélia] É nesse instante assim, meu filho.

[Zenildo] Você tá no candomblé e determinado momento lá você cai de cara no chão, tu não sabe o que tá acontecendo.

[Iyá Ozanélia] Porque o orixá é uma energia. [Zenildo] Essa energia tá pedindo pra ser iniciada.

[Iyá Ozanélia] Nós temos a força do fogo, né. Nós não vivemos sem o fogo. Você vive, como é que nós cozinha, (...), o fogo, a água, nós precisamos, né, o vento. Então, o orixá é uma energia, no momento que a energia lhe toma, você cai. Você bola. Não tenha medo, que você bolou, você não morre não. Morre não porque você tá com a energia do orixá tá entendendo? Você não sabe o que você tá fazendo ali, mas você não se levanta, não tem porquê, quando você se levanta dali (...) porque ninguém recolhe uma pessoa pura, a gente tem que recolher é o orixá. O próprio instante que se roda com o orixá na sala, leva pro roncó lá, a gente faz tudo pra trazer o protetor, né, o erê. Se não vir, porque nem todos vêm, aí se chama a pessoa (...)

Ewá ela só pode ser feita se ela for virgem, sem ser virgem ninguém (Aula faz Ewá. É uma orixá muito, muito perigosa. Raríssima! ministrada pela Yalorixá Ozanélia na Universidade Federal do Oeste do Pará. Setembro de 2016)

Desde os saberes que a Iyalorixá deve dominar para raspar o santo, até o cuidado que a Mãe Criadeira despende à Iyawo enquanto está recolhido, passando pelas funções de ensino desempenhadas pela Mãe Pequena de um terreiro, tudo remonta a um sistema sofisticado em que funções são desempenhadas de acordo com o cargo ou o lugar que cada membro do terreiro ocupa. Cada pessoa cumpre um papel nessa rede de relações interpessoais e entre esses papeis, certamente está o de amparar e ensinar as/os novas/os filhas/os de santo da casa há, pois, um esforço coletivo no sentido de cuidar do processo de aprendizado pelo qual essa/e iaô deve passar a partir do momento em que ―nasce‖. Os saberes em alguma medida são compartilhados no universo afro-religioso, os cantos, as danças, o modo como o corpo deve ser treinado para se portar de determinada maneira. Todo o tempo de amadurecimento pelo qual a/o filha/o de santo passa, requer de si mesmo disciplina e dos mais velhos a criação de contextos em que essa/e Iyawo seja capaz de aprender aquilo que diz respeito a sua vida religiosa.

Em se tratando da iniciação pela qual a pessoa passa para se tornar uma Iyawo, é necessário que as lideranças do terreiro compartilhem desses saberes que a feitura de um/a filho/a de santo exige. O modo de raspar, a orientação em relação aos sonhos, a forma de ensinar como disciplinar o corpo para dançar, para se portar diante dos mais velhos, para saber se apresentar perante a mãe de santo e aos orixás quando se fizerem presentes, para saber reconhecer a chegada de sua divindade, os alimentos adequados a serem servidos como oferenda, a maneira como os sacrifícios são realizados e conduzidos. Tudo isso requer dos membros envolvidos um forte engajamento no processo de feitura, pois, ao mesmo tempo em que cada um/a desempenha uma função, esses conhecimentos são postos da maneira coletiva em favor da iniciação daquela/e novo membro da comunidade religiosa. No período em que estive indo de forma mais frequente ao Ilê Asé Sindoyá, em virtude do trabalho de campo, presenciei esse engajamento de forma ativa, no preparo de alimentos, no cuidado com o espaço do Asé, na busca de ervas e preparo de banhos que o filho recolhido precisava tomar e na

organização de sacrifícios. Ali, puder ter dimensão do que significava ―ter a folha‖, que Iyá Ozanélia havia falado durante sua aula.

Botelho e Flor (2010) também destacam esse aspecto em seu texto ―Educação e Religiosidade Afro-Brasileiras: A Experiência dos Candomblés‖. As autoras afirmam que

Todos os participantes da comunidade são responsáveis pela educação da pessoa que passa pelo processo de iniciação. A educação tem caráter coletivo e social, é responsabilidade do grupo e, em especial, das pessoas mais velhas que são consideradas depositárias da cultura. A educação é uma impregnação permanente; o indivíduo é educado a todo o momento por todas e todos do grupo, servindo a vida cotidiana como pretexto para se educar. A vida e o aprendizado são indissociáveis. (BOTELHO, Denise ; Flor do Nascimento, Wanderson . Educação e religiosidades afro-brasileiras: a experiência dos candomblés. Participação (UnB), v. 17, p. 72-80, 2010. p. 80)

A aprendizagem e o momento do nascimento da/o nova/o filha/o de santo se apresenta de fato como um engajamento comunitário, que envolve tanto os membros do terreiro quanto as divindades. Os orixás participam de forma ativa e direta do processo em que a/o filha/o começa a ser apresentada/o aos conhecimentos e ensinada/o sobre eles e sobre sua realidade religiosa a partir de agora. Principalmente através do jogo de búzios os orixás se comunicam, com a Iyá, que é quem conduz todo o processo, autoridade máxima no Ilê. Por meio da dança vão estabelecendo elo e intimidade com essa/e Iyawo e através do corpo ela/e vai aprendendo a conhecer o orixá, a compreender sua energia, de modo que posso afirmar que a relação com o orixá é parte da relação de saber, um saber que é compartilhado e que afeta múltiplas realidades, dimensões e seres. Quando fala em ―ter a folha‖, a Iyá Ozanélia tece considerações e me ajuda a compreender justamente a respeito desse conjunto rico e variado de conhecimentos que circulam no espaço do terreiro de modo a permitir que as práticas religiosas sejam plenamente desenvolvidas. Na cozinha, nas cerimônias públicas, nas compras realizadas nas lojas e feiras para a aquisição das materialidades necessárias para o dia a dia de um terreiro, os saberes que dizem respeito ao contexto afro-religioso estão sendo postos em

prática e estão sendo socializados com aquelas/es que necessitam ser inseridos a esses contextos de aprendizado. Dominar os conhecimentos necessários para iniciar um/a filho/a de santo demanda relacionar, portanto alguns dos aspectos apresentados pela Iyalorixá, a saber, o tempo, a convivência no terreiro, o engajamento com a religião, a relação com os orixás e o entendimento da dimensão coletiva que esses saberes carregam.