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CAPÍTULO 1: FORMULANDO SOBRE MINHAS EXPERIÊNCIAS, O CAMPO E

1.5 NOVOS CAMINHOS, NOVAS PERSPECTIVAS: O INÍCIO DE UM DEBATE

Foi advinda dessa perspectiva teórica e de recorte de campo que eu adentrei na pós-graduação em antropologia social na universidade de Brasília, ainda sem saber se continuaria com a mesma temática. Entretanto, os processos formativos e de

amadurecimento enquanto pesquisadora e enquanto pessoa e o modo como fui constantemente sendo afetada pelas demandas e pela relação com os terreiros com os quais tive contato durante a graduação, me possibilitaram, mais do que isso, me apresentaram um conjunto de outras questões que passaram a mobilizar meu interesse. Uma dessas possibilidades foi a constituição do campo de estudos afro-religiosos na Amazônia, fator que eu não havia conseguido fazer de maneira qualificada na monografia, na qual meus esforços tinham se detido na discussão a respeito das práticas econômicas e dos sentidos do dinheiro no contexto afro-religiosos em Santarém. Talvez naquele momento, eu mesma não visualizasse a importância dessa discussão, coisa que fazer mestrado em outra região certamente me fez enxergar.

Eu, nascida e criada na região norte do país, percebi, ao chegar a Brasília, a dificuldade de estabelecer algum diálogo com as pessoas a respeito de questões relacionadas ao norte. Percebi que pairava, tanto dentro do espaço da universidade, quanto fora dele, certo imaginário sobre a região, muito calcado numa construção midiática que manipula estereótipos e apresenta dois vieses, que considero igualmente problemáticos. A romantização por um lado, que enaltece as belezas selvagens, as riquezas naturais, o potencial redentor que a floresta pode trazer para os problemas climáticos do mundo, uma Amazônia que precisa ser preservada a qualquer custo, porque dela depende o futuro das gerações vindouras. Uma visão que não é capaz de encarar de maneira séria todos os problemas relacionados a uma divisão desigual entre as regiões e que situa o norte numa condição de subalternidade em termos de distribuição de recursos, por exemplo, e que relega um papel de fornecedor de matéria prima e receptor de grandes projetos que tem por único objetivo satisfazer aos interesses do centro-sul e manter essa hierarquia.

Por outro lado, estava o bom e velho discurso que exotiza a Amazônia, como o lugar das florestas, dos animais, um lugar pouco conhecido, pouco explorado, inóspito e pouco habitado. O mesmo olhar que os primeiros viajantes europeus alimentavam ao pisarem nessas terras. Da ―terra do el dourado‖, do ―inferno verde‖, do período colonial, até ―a região desabitada‖ que precisava de intervenção e ocupação no governo militar, o transcorrer do tempo nos mostra uma conformação também da Amazônia nesse lugar de exótica, um grande vazio de onde não saem reflexões e produções qualificadas, apenas matéria-prima.

―Que imagem da Amazônia nós carregamos dentro do nosso espírito?‖ (p.14). É com essa pergunta que João Pacheco de Oliveira, inicia seu texto, A fronteira e seus cenários: Narrativas e Imagens sobre a Amazônia, no qual faz uma retomada histórica que alcança o século XIX, em que, segundo ele, a maior parte das ideias sobre a Amazônia foram moldadas e perduram até hoje (p.15). Imagens, pinturas, escritos, pesquisas, plasmaram uma representação única e uniforme da região, a partir de visões estereotipadas, que compõem sobre a Amazônia uma totalidade que não se atualiza. Nesse texto, Oliveira trabalha com o conceito de fronteira como processual e em movimento, de modo que podemos perceber a forma como vai se modificando ao longo do tempo a partir de diferentes discursos mobilizados pelo empreendimento colonial. A fronteira como aquilo que está para ser conquistado, segundo ele, produziu sobre a Amazônia, ao mesmo tempo em que uma invisibilidade, formulou discursos que cristalizaram e se reproduziram, de forma a situar ali imagens, por exemplo, sobre determinado vazio geográfico.

Para os fins da reflexão aqui proposta, seu texto apresenta limitações, uma vez que se propõe a pensar mais especificamente o contexto indígena e, além disso, ao se referir à exploração econômica, desconsidera a presença da mão de obra escrava negra na Amazônia, ao que queremos justamente dar centralidade e do qual partirá nossas reflexões no capítulo que segue. O autor dá um salto temporal que vai da exploração da mão de obra indígena no período colonial até o incentivo à migração nordestina com a exploração da borracha. Nessa reconstrução não há menção à chegada de mão de obra negra escravizada ou de sua presença na formação econômica da região. Entretanto, o que me interessa aqui é o modo como problematiza o surgimento e a cristalização de imagens e narrativas sobre a Amazônia. A meu ver, essas imagens não só não correspondem muitas vezes ao que de fato é a região, como também atuam de forma perversa no sentido de produzir uma visão sobre o lugar, os corpos, as práticas existentes aqui.

Meu incômodo com isso talvez tenha sido um dos maiores mobilizadores da necessidade de ampliar o debate e dialogar com o que já vem sendo produzido no norte do país acerca da afro-religiosidade. Ao mesmo tempo em que é um movimento de apontar outras narrativas, processos de ocupação e formas de resistência e o lugar das religiões de matriz africana, é também a reafirmação do meu lugar de pertencimento e de fala, de produção e de diálogo também. Perceber-me enquanto nortista implicou no

entendimento de que era preciso abordar o tema dos saberes articulados no terreiro, de modo que o contexto da Amazônia ficasse em evidência e, fosse parte constituinte da problemática, bem como do campo.

Minha experiência pessoal viajando e morando fora da região me mostrou que como a Amazônia ainda é desconhecida isso me incomodou profundamente. Assim, passei a marcar e construir constantemente que era esse o meu lugar de fala: o norte do país, ou em termos de pesquisa: os estudos sobre afro-religiosidade na Amazônia e essa é uma primeira empreitada que estabeleci como horizonte para essa dissertação. Produzir trabalho na universidade de Brasília, falando a partir da Amazônia e construir o enredo sobre o que se produziu acerca das religiões de matriz africana na região é também ocupar esse espaço.

A experiência vivenciada quando saí de Santarém para cursar mestrado me mostrou de que maneira as pessoas formulavam ideias, concepções, imagens, narrativas sobre a Amazônia. Tal experiência provocou-me no sentido da necessidade de escrever a partir desse lugar de mulher nortista, que hoje cursa pós-graduação em uma das instituições de antropologia mais conceituadas do país, sobre a região de onde eu vim, tratando da temática das religiões de matriz africana.

Nomeei essa seção de ―o início de um debate sobre lugar de fala‖ e chego a esse ponto do texto compreendendo que meu lugar de fala se constitui enquanto lugar de multi-posicionalidades, no qual me vejo atravessada por um conjunto de elementos que me situam em relações e em espaços diversos. Enquanto mulher, enquanto antropóloga, enquanto alguém que pesquisa o norte, que se propôs a trabalhar com religiões de matriz africana, sem, contudo, ser afro-religiosa, socialmente considerada uma mulher branca, mas que também nasceu e viveu toda a sua vida em uma cidade no norte do país e que estuda agora em uma universidade do centro-sul. Acredito que essas multi- posicionalidades que me atravessam e constituem igualmente influenciam o olhar que lanço, neste caso, sobre o campo.

A partir de outros termos, Stuart Hall (1996) fala sobre diversos pertencimentos e posicionalidades ao abordar sua experiência enquanto um intelectual diaspórico. O autor reconstrói sua trajetória e a constituição de sua identidade, atravessada por recortes familiares em contexto colonial na Jamaica, formulando a partir disso uma reflexão em termos do que vai chamar de uma experiência diaspórica. Ao migrar para a

Inglaterra Hall se depara com um sentimento de duplo pertencimento, simultaneamente a um não-pertencimento a lugar nenhum. Em diálogo com Simmel, o autor nomeia esse sentimento de ―um estranho familiar‖, concomitantemente ser de dentro e de fora. A sofisticação da reflexão que Stuart Hall elabora a partir do acúmulo de suas experiências pessoais, familiares, acadêmicas, me inspira de maneira singular a compreender de que modo o que estou chamando de multi-posicionalidades, para me referir à minha própria trajetória, podem ser decisivas na constituição pessoal e intelectual.

Foi um pouco dessa discussão que julguei necessária para iniciar a dissertação. Considerando todos esses elementos, as motivações, as frustrações vividas e canalizadas para a produção da dissertação, os aprendizados que obtive em contato com o a bibliografia e com o campo. Tudo isso foi delineando as escolhas pela questão sobre a qual agora me debruço, a temática e o recorte. Em linhas gerais, este capítulo serviu como uma introdução em que o percurso de mais de quatro anos em campo foi sendo desenhado para a leitora. Assim, tendo conseguido estabelecer os primeiros panoramas e contextos nas linhas deste capítulo, sigamos o enredo que estamos a tecer aqui, que agora nos levará para uma discussão sobre o contexto da Amazônia, no que se refere à presença da população negra e a afro-religiosidade, de modo que possamos compreender sobre qual cenário se estabelece nossa discussão acerca dos saberes mobilizados e articulados no chão do terreiro.

CAPÍTULO 2: OS ESTUDOS SOBRE AFRO-RELIGIOSIDADE NA