• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3: ―AQUI A GENTE TEM FOLHA‖: TERREIROS DE RELIGIÕES DE

3.3 A CONVERSA COM PAULO: UMA AULA SOBRE MODOS DE ENSINAR

3.3.1 FORMAS DE ENSINAR E APRENDER

Falamos muito, Paulo, Carla, que também acompanhou a entrevista, e eu a respeito da trajetória do Pejigã e especialmente sobre a maneira como está engajado em ensinar as/os iaôs sobre o que precisam saber para o desempenho de suas funções no terreiro e para seu desenvolvimento enquanto filhas/os de santo.

[Paulo] O noviço, quando ele chega no axé, que ele vem a se iniciar, ele tem que ser passado o conhecimento, o conhecimento que já é muito falado,

é na oralidade, é na prática dentro do axé, é no convívio. Então é isso, o iaô iniciou, então bora passar o que um iaô recém iniciado precisa saber, o que o orixá dele precisa dançar, o que precisa saber, então é dado aquele momento. Deu obrigação de ano, aí vai passando mais um conhecimento, que um Iyawo de obrigação de ano pode ter. Quando o Iyawo dá obrigação de três anos... o Iyawo é chamado no ketu, no nosso caso é Vodunsi, mas é uma questão que a gente só fala iaô, até no angola o povo fala Iyawo, e é Muzenza. Então com três anos a gente ensina o que tem que ensinar com três, com sete vai ensinar o que ele tem que aprender com sete, com catorze e assim sucessivamente...

[Beatriz] Então tem como...

[Paulo] É um grau, ne, é um grau, até porque o excesso de conhecimento ele atrapalha.

[Beatriz] Como assim?

[Paulo] Ele atrapalha, porque tu já pensou, tem muita gente imprudente aí, tu já pensou se um iaô de dois, três anos aprende a raspar as pessoas, iniciar, não demora muito ele tá fazendo isso sem tá apto. Então o conhecimento só é passado pra quem está apto a fazer aquilo. Infelizmente tem muita coisa que vaza e acontece as merdas, acontece os Babalorixás charlatões, que se auto intitulam Babalorixás e não são. Isso aconteceu muito no passado, a pessoa não tem as obrigações derrubadas... porque você pode ter cinquenta anos de iniciado, mas se você não tomar as obrigações você não tem título sacerdotal, você não tá apto a fazer tal coisa, entendeu? Então é mais ou menos assim que funciona dentro do axé, porque é proibido você passar conhecimento que não tá no grau hierárquico daquela pessoa, entendeu? (Entrevista com Pejigã Paulo. Setembro de 2016)

Paulo me fez compreender que para dar conta de seu processo de desenvolvimento e de aprendizado dentro da religião a iaô precisa assumi-lo com responsabilidade, conforme fez questão de afirmar. A responsabilidade pesa sobre as lideranças do terreiro, que são encarregadas por proporcionar contextos de aprendizado para as/os filhas/os de santo, de modo que se desenvolvam plenamente, sem, contudo, fornecer conhecimentos que não digam respeito a seu grau de aptidão e hierarquia. Conhecimento que é ensinado sem considerar o tempo de iniciado da/o Iyawo compromete não só o terreiro, mas de um modo geral, a própria estrutura da religião, de acordo com o que evidenciou na sua fala, todo o processo envolve responsabilidade,

paciência e compromisso. E se considerarmos que a dimensão do segredo é extremamente cara ao contexto das religiões de matriz africana, é possível compreender também a cautela com que esses saberes são tratados no que se refere aos processos de ensino e aprendizado pelos quais as/os filhas/os de santo passam ao longo de toda a sua trajetória religiosa.

No seu papel de Pejigã no terreiro Paulo é quem cuida, entre outras coisas, de ensinar aos novos Ogãs a tocar e cantar. Desde 2013 pude acompanhar por um tempo o trabalho que desenvolvia com um menino, que ainda era criança quando começou a ser treinado sob seus cuidados e inserido na vivência prática das cerimônias realizadas no Ilê Asé Oto Sindoyá. Já em 2016, quando fui à cerimônia de obrigação de sete anos de Paulo pude rever o Ogã já crescido participando da cerimônia do Pejigã, assumindo um dos atabaques. Dele eram exigidas disciplina e atenção aos ensinamentos que lhe eram repassados e às técnicas que pouco a pouco ia aprendendo. Paulo, por sua vez, dispensava ao iniciante paciência, rigidez e o entendimento do tempo que era necessário para que o menino pudesse assimilar o que estava sendo repassado. Durante a nossa conversa, interpelado sobre a maneira como conduzia os processos de ensino aos Ogãs que ficavam sob sua responsabilidade, Paulo nos explicou sobre técnica, humildade e reforçou que é preciso dedicação.

[Carla] Como é que você ensina a tocar? Você tem um método? Uma coisa que você gosta de fazer, uma coisa que você gosta de seguir?

[Paulo] Primeiro, é assim, o toque ele tem técnicas, né, é como tocar um violão, um teclado, os atabaques tem técnicas e detalhe, é tanto que você vê muito tocador de violão, muito tocador de guitarra, mas percussionista, é contado aqui em Santarém, sou eu e o César (...) o atabaque ele tem três notas certas, que é o slap, open e gum, que é o grave, é em inglês, apesar que não foram eles, ne, foram os cubanos que inventaram os atabaques. Então quando você vai tocar com a mão tem a técnica, porque tem diferença, porque pra sair aquele som, aquilo é técnica. A dedicação é tudo!

[Carla] Aí você ensina os primeiros movimentos...

[Paulo] Os primeiros toques, as primeiras bases.. tem três atabaques, o menor nós chamamos de lé, ne, pra mim ele tem outro nome, esse negócio de lé é ketu.. o atabaque menor é uma base, o do meio, o contra rum e o rum é

outra, são três bases diferentes, então todo iniciante ele pega no rumpi, que no jeje é rumpi, contra rum e rum, rumpi é o menor, no caso é o lé (...) então tua base é essa, é uma hierarquia, porque o iniciando só toca ali, no rumpi, ele vai fazer uma marcação.

[Carla] Em quanto tempo você prepara uma pessoa pra tocar bem, mina, por exemplo?

[Paulo] É relativo, porque vai depender do desempenho da pessoa, pra gente colocar ela pra tocar. Tem gente que consegue pegar com três meses, tem gente que passa um ano, tem gente que passa dois, isso vai depender do dom da pessoa (...) Detalhe, tem muita gente que não consegue tocar e cantar ao mesmo tempo, ne, que já é um problema. Eu no momento eu consigo, já to num nível mais elevado da situação, porque isso é níveis, sabia? Primeiro tu vai tocar, as vezes sem olhar pra ninguém que tu erra, é a insegurança, já sabe o toque, mas toca inseguro. Quando você passa pro outro você já tá tocando e consegue olhar pra alguém, já consegue até falar. Tem aquele que acompanha e tem aquele que toca já, que canta.

[Beatriz] Cantar e tocar são dois processos diferentes?

[Paulo] Ah, quando o cara já toca e canta já pode até dar aula. Tem muita gente que toca, quando tu pensa que toca alguma coisa vem um que sabe mais do que tu. A nossa religião tu não pode te exaltar, que tu pode ser tombado. (Entrevista com Pejigã Paulo. Setembro de 2016)