• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3: ―AQUI A GENTE TEM FOLHA‖: TERREIROS DE RELIGIÕES DE

3.2 TER A FOLHA É TER O CONHECIMENTO

3.2.3 CONHECIMENTOS QUE ATRAVESSAM O CORPO

Ao abrir um novo registro, através da fala da Iyá Ozanélia, em que esses elementos são centrais, pude compreender de que maneira a condução dos processos de aprendizagem no espaço do terreiro se diferencia da organização deste, que estou chamando de espaços legitimados de ensino, como é o caso das universidades. Um ponto em especial me chama a atenção nesse paralelo: o corpo. Cada um desses aspectos que a aula da Iyalorixá apontou como aspectos relevantes no contexto dos conhecimentos que circulam no terreiro, evidenciam a centralidade da dimensão corporal. ―Respeitar a energia do orixá, como fazer aquele fundamento, como dobrar a língua (...)‖, todos esses atravessam o corpo em alguma medida e demandam dele engajamento direto no contato com os saberes que ali circulam e que fazem parte da realidade afro-religiosa, de modo que a prática, ou ação são inerentes ao próprio processo de aprendizado e contato com os conhecimentos articulados.

Uma das primeiras cerimônias que acompanhei no Ilê Asé Oto Sindoyá, em junho de 2012, foi uma saída de Barco com duas filhas de santo. Naquela ocasião cheguei ao terreiro no horário marcado e como a cerimônia não havia ainda começado fiquei do lado de fora do barracão observado, acompanhada das demais colegas. Uma das cenas que mais me marcou no início da minha trajetória com o contexto afro- religioso eu vivenciei nessa cerimônia foi observar como as Iyawos se portavam quando estavam incorporadas pelos seus erês58. Sentadas sobre esteiras no chão, os erês de três Iyawos comiam com as mãos, pediam benção para as mulheres mais velhas que iam servi-las, ao falar com elas, entretanto, não se levantavam, ou as olhavam diretamente nos olhos, em sinal de respeito. Soube posteriormente que essa forma de portar o corpo

58

Segundo a definição fornecida por Bastide (2001), são espíritos infantis que acompanham as divindades e os homens. É um tipo de transe infantil, conforme o autor afirma.

diante das mais velhas no santo e das autoridades especialmente, é um meio através do qual se destaca a diferença de posições na hierarquia religiosa.

Durante a cerimônia todas nós que havíamos ido acompanhar, permanecemos sentadas nas cadeiras da assistência, vez ou outra indo circular do lado de fora do barracão para beber água, para pegar um vento ou para ver o que poderia estar acontecendo ali. Eu me mantive observando a forma de se portar das Iyawos que eu havia visto logo que chegara. Oscilando entre momento de silêncio em que os orixás pareciam se manifestar e momentos em que as risadas e barulhos dos erês enchiam o barracão, juntamente com o som dos atabaques, as Iyawos expressavam através do corpo as formas adequadas de se comportar na cerimônia. Por vezes eram postas sentadas pelas Ekedjis, outras estavam de pé quando os orixás das pessoas mais velhas se manifestaram, fizeram também reverência à Iyalorixá logo no início da cerimônia deitando-se à sua frente e ficavam de cócoras durante alguns momentos. A forma de portar o corpo das Iyawos e das mais pessoas mais velhas era notadamente diferente. Essas últimas não precisavam ficar cócoras, nem incorporavam erês, por exemplo, tendo, mais domínio e autonomia sobre o modo de agir durante toda a noite.

Naquele momento, o que chamou a atenção foi a relação dos comportamentos com os graus hierárquicos da estrutura religiosa. Entretanto, acredito que essas diferenças entre a forma de se portar das Iyawos e das mais velhas, que eu percebi nas primeiras idas ao terreiro e que muito me marcaram, podem nos ajudar a entender como o todo o processo de aprendizado e de socialização a contextos de conhecimento, ou a redes educativas, para usar os termos de Caputo (2015) também atravessa o corpo.

Não é possível pensar inserção no terreiro e menos ainda os processos que mobilizam saberes e suas formas de circulação sem entender que a sensibilidade, a imaginação e o corpo são elementos centrais. Nesse sentido, a ênfase ao corpo enquanto um elemento importante a ser considerado nas relações que implicam ensino e aprendizado é discutido por Carvalho e Floréz-Floréz (2011). Sua proposta se funda na possibilidade de estabelecer um projeto de descolonização do modelo de universidade que se constrói a partir de conhecimentos pretensamente abstratos. Os autores contrariam a visão objetivista e neutra da ciência moderna, que nega a inserção do sujeito produtor de conhecimento em qualquer contexto, bem como não considera relevante a relação corpo-mente. Para a lógica objetivista, é somente a mente que rege

os processos científicos, de produção de conhecimento e de ensino. Assim, as dinâmicas, os contextos sociais, raciais, geográficos, políticos supostamente não exerceriam qualquer influência, lógica que não se aplica ao que estamos tratando aqui, se partimos do que a mãe de santo e do que autoras como Rabelo (2011) e Carvalho e Flórez- Flórez (2011) nos argumentam.

Há ainda outro ponto que considero necessário a ser destacado e que se conecta com essa dimensão corporal que estou explorando aqui. Durante toda a conversa que a Iyá Ozanélia propôs a nós tive a sensação de que estávamos operando ali a partir de outra chave, de outros elementos, que não são convencionais ao espaço da universidade. Não apenas por quem estava ministrando a aulas, mas mesmo pelo modo como estávamos dispostos ali. As pessoas se organizaram em formato similar a uma roda59, algumas sentadas no chão, e todo o contexto da sala evidenciava a mãe de santo e as demais afro-religiosas presentes, essas sim, todas sentadas em cadeiras, o que me fez lembrar a própria noção de hierarquia muito marcada nas religiões de matriz africana. Quando há uma autoridade presente, as filhas de santo mais novas precisam sempre evidenciar a distinção hierárquica em relação à sua Iyalorisá e as autoridades, apontando que ―as mais novinhas no santo‖ ainda precisam galgar longos caminhos de aprendizado, de obrigações, de trajetória dentro da religião. Naquele momento, a nossa disposição na sala indicava também quem detinha os saberes a serem compartilhados naquela noite, era a Iyalorixá quem dominava o universo de elementos, nomes, narrativas, cantigas, folhas, histórias.

59 O formato de círculo, ou de roda também é prevalece nas cerimônias afro-religiosas, que além disso, as

rodas giram no sentido anti-horário, como forma de simbolizar um retorno á África, às origens e ao tempo dos orixás. Bastide (2001) descreve com bastante minúcia em O candomblé da Bahia, no capítulo em que está descrevendo sobre tempo e espaço.

Imagem 4: aula ministrada por Iyá Ozanélia de Oyá

Fonte: Bandeira, Keiliane. 2016

Além disso, a linguagem utilizada pela Iyá Ozanélia abriu outro registro em termos comunicativos. Muitas palavras não eram compreensíveis para boa parte das pessoas que estavam tendo contato com autoridades afro-religiosas pela primeira vez. Termos próprios, nomes de orixás, cantigas, tudo isso nos colocou em contato com outra forma de se relacionar, entender e explicar o mundo, se considerarmos que a linguagem também pode ser entendida como expressão de uma cosmologia. Os termos em ioruba se sobressaiam nesse universo de novo vocabulário, aos quais estávamos sendo apresentadas. Lembro- me do quão complexo foi para mim, ao longo dos anos, conseguir me familiarizar com os termos, as palavras, os significados, é um processo que nunca se encerrou, sempre que estou em conversa no Sindoyá surge uma nova palavra para mim e com ela um conjunto de novos significados que passam a fazer sentido e que me ajudam a entender o universo com o qual estou em contato.

A oralidade se combina com a escrita e ao mesmo tempo em que escuto palavras novas, tento arriscar a grafia, muitas vezes tropeçando no meu pouco conhecimento de Yorubá. Em seu artigo ―Aprendendo yorubá nas redes educativas dos terreiros‖, Stela Caputo também ressalta a conexão entre essas duas dimensões, que não são vistas como antagônicas, mas intimamente complementares. Para ela, de um lado a oralidade ajuda a sustentar e perpetuar histórias que constroem enredos, narrativas e tradições afro- religiosas, de outro, a escrita auxilia nos registros, que em se tratando dos processos de aprendizado, são fundamentais. Assim, pude me perceber também nesse processo de aprendizado que envolve desde a forma de se portar com o corpo, até o entendimento

mínimo de yorubá de forma que eu possa estabelecer compreensão das palavras e dos significados estabelecidos no terreiro.

Darei seguimento a essa reflexão na sessão a seguir, em que destaco o diálogo com o Pejigã Paulo. Em diálogo com muito do que já foi elaborado pela Iyá Ozanélia, Paulo aponta outros aspectos também fundamentais no entendimento das redes educativas que se estabelecem no terreiro. O engajamento das filhas de santo, a dedicação e responsabilidade são alguns dos elementos que ele articula como sendo de grande importância a serem considerados. Desse modo, a conversa com Paulo segue alinhavando o argumento que aponta a necessidade da valorização dos saberes que circulam no terreiro e que remetem a uma ligação com os antepassados e com África.

3.3 A CONVERSA COM PAULO: UMA AULA SOBRE MODOS DE ENSINAR