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3 DEBATE DE OPINIÃO: EMBATE IDEOLÓGICO E LINGUÍSTICO

3.1 A dimensão sociointeracionista do gênero textual debate

Na perspectiva de Bakhtin (1997), os gêneros textuais podem ser encarados como modos de estruturação das práticas sociais mediadas pela linguagem. Eles „organizam‟ eventos comunicativos diversos do qual tomam parte, como interlocutores, sujeitos sócio- historicamente situados. Os gêneros têm caráter relativamente estável, assim como destacado pelo autor:

“Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. (BAKHTIN, 1997, p. 284)

Considerados em sua dimensão individual e social, então, os gêneros devem ser entendidos a partir da percepção do interlocutor a respeito do enunciado - daí decorrendo a premissa de que toda e qualquer interlocução deve ter um destinatário, além de um conteúdo e objetivos determinados – e do reconhecimento das estruturas comunicativas e tipos discursivos/linguísticos partilhados pelos textos pertencentes àquele gênero.

Para Bakhtin (1997), a língua é dialógica e o discurso é elaborado em forma de enunciados, sem os quais não se processa a interação que, acredita o autor, marca todo o processo comunicacional, caracterizando, assim, o dialogismo e configurando a dimensão polifônica, ou seja, a profusão de vozes em um discurso. E para planejar, elaborar e analisar determinado gênero do discurso, é imprescindível que se levem em consideração suas condições de produção, representadas pelo tema, estilo e composição, que são indissociáveis, ligados organicamente. “Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação” (BAKHTIN, 1997, p. 279).

Quando se focalizam esses elementos constituintes dos gêneros, vê-se que o conteúdo temático é mais do que o assunto em si ou o tópico que tipifica aquela enunciação. Vai além, pois abrange as leituras possíveis e os desdobramentos destas leituras. Está não apenas no campo enunciativo, mas discursivo, uma vez que representa a singularidade dos participantes da enunciação, apesar de, segundo o filósofo russo, esta individualidade ter sido construída coletivamente, nas práticas sociais deles.

O estilo, como materialização linguística, é constituinte do gênero. Reflete as escolhas gramaticais, lexicais, fraseológicas do enunciador, tomadas dentro de parâmetros coletivos que caracterizam esses enunciados. Trata-se de um todo comunicativo do qual o enunciado é apenas um elo que, junto a outros, aponta leituras possíveis. Também deve ser analisado sob um viés discursivo, pois é resultado da relação entre dois interlocutores, já que o discurso é, constantemente, influenciado pelas subjetividades de seus enunciadores. A ideia de construção composicional está ligada às formas de organização textual basilares, que dão ao gênero o caráter relativamente estável do que fala Bakhtin (1997).

Para se tornar verdadeiro mediador da comunicação, o gênero precisa ser apropriado pelos agentes como um instrumento, processo este que também é mediado socialmente, já que, como destacado por Dolz e Schneuwly (2004a, p. 44), envolve a necessidade de adaptação ao contexto e ao referente (capacidade de ação), além da mobilização de arquétipos discursivos já estabelecidos (capacidade discursiva) que instrumentalizam as práticas de linguagem (capacidade linguístico-discursiva) materializadas nos gêneros.

Quanto tomados como objeto de ensino, entende-se que não há melhor instrumento para análise da linguagem em situação de uso real do que os gêneros, fato atestado por Dolz e Schneuwly (2004a, p. 49), para quem eles “devem constituir os ingredientes de base do trabalho escolar, pois, sem os gêneros, não há comunicação e, logo, não há trabalho sobre a comunicação”. Schneuwly (2004, p. 116) complementa, afirmando a importância dos gêneros

como “objeto de desenvolvimento da linguagem”: “Saber falar, não importa em que língua, é dominar os gêneros que nela emergiram historicamente, dos mais simples, aos mais complexos”.

Os autores colocam que a aprendizagem da linguagem se dá “no espaço situado entre as práticas e as atividades de linguagem” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004b, p. 64) e, quando se levam em conta, especificamente, as atividades voltadas para a argumentação, vê-se que elas precisam integrar a prática escolar uma vez que “a argumentação está presente nas mais diferentes esferas da vida diária”, conforme atestado por Leitão (2011, p. 14).

O debate é uma dessas atividades de linguagem. Reyzábal (1999, p. 144) o define como “uma discussão formal entre várias pessoas, regulada por um moderador” e vai adiante, acrescentando que é uma técnica fundamental da comunicação oral “tanto para a compreensão, como para a expressão, além de ter essencial importância para todas as áreas do currículo”, (REYZÁBAL 1999, p. 145).

Como gênero essencialmente argumentativo, permite a formulação de pontos de vista diferenciados, conforme destacado abaixo:

O debate aparece, assim, como a construção conjunta de uma resposta complexa à questão, como instrumento de reflexão que permite a cada debatedor (e a cada ouvinte) precisar e modificar sua posição inicial; essa modificação é realizada, essencialmente, pela escuta, pela consideração e pela integração do discurso do outro; cada argumento, cada exemplo, o sentido de cada palavra transformam-se, continuamente, pelo fato de serem confrontados aos dos outros debatedores [...] (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004b, p. 72)

Através da sucessão de ideias, fatos, narrações e argumentos, os participantes do debate trazem, para os colegas e para o público, pistas que podem levar ao esclarecimento de uma questão controversa previamente selecionada, contribuindo para uma atribuição coletiva de sentidos a respeito daquele tema, não apenas através da elaboração das reflexões pessoais, mas da escuta dos itens propostos pelos demais debatedores.

Nem sempre, entretanto, precisa ficar no campo da confrontação de ideias que modificam ou influenciam a opinião do outro. Em muitos casos, cabe o debate que visa à mudança de ponto de vista, o convencimento do outro sobre determinado assunto, assim como aquele empreendido com o intuito de buscar a resolução de um problema.

Assim, levando em conta os objetivos pretendidos, os envolvidos no processo e o tema, Dolz, Schnewuly e Pietro (2004, p. 215-216) propõem uma classificação que chamam

de “base” para o trabalho em sala de aula: debate de opinião de fundo controverso (colocação pública de opiniões de forma a persuadir o outro sem, entretanto, demandar uma tomada de decisão); debate deliberativo (tomada de decisão sobre um ponto não-pacífico, como, por exemplo, quando uma turma de alunos discute se viaja ou faz uma festa para comemorar a formatura) e o debate para resolução de problemas (quando os participantes elaboram, coletivamente, proposições rumo a uma resposta que existe, mas não é, ainda, conhecida ou aceita por todos).

Seja qual for o modelo escolhido, entretanto, é inegável que se trata de um gênero textual que coloca à prova várias habilidades linguísticas, mas, também, sociais, principalmente pelo fato de que, em todas as etapas, desde a escolha conjunta do tema, até as tomadas de posição e elaboração de argumentos, está em jogo um conjunto de crenças, valores e regras subjetivas socialmente determinadas que se manifesta através das palavras.