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2 GÊNEROS E PRÁTICAS SOCIAIS: A LINGUAGEM ORAL COMO ATIVIDADE

2.3 O importante papel da escola no trabalho com os gêneros orais

2.3.1 A fala como ponto de partida para a escrita e a leitura

Parece não restarem dúvidas de que a fala, definitivamente, tem que estar presente na sala de aula e mais: ela deve ser o ponto de partida, uma vez que “ver a fala em sua especificidade é observar fenômenos relativos a processos de produção textual e não detalhes morfológicos ou variações e determinações sociais devidas à variação dialetal e socioletal”, afirmativa que o leva à seguinte indagação: “por que é tão difícil escrever corretamente, se a

fala quase não contém equívocos gramaticais”? (MARCUSCHI, 2007, p. 84 grifo do autor).

Antunes (2003, p. 24) diz que uma “visão equivocada da fala” prejudica o entendimento sobre a formalidade dos gêneros orais. “De acordo com essa visão, tudo que é „erro‟ na língua acontece na fala; [...] não se distinguem, portanto, as situações sociais mais formais de interação que vão, inevitavelmente, condicionar outros padrões de oralidade que não o coloquial”.

Marcuschi (2007) analisou um diálogo retirado do conto “O caso de FA”, escrito por Rubem Fonseca; duas conversas - atribuídas a “dois homens” e “dois interlocutores”, respectivamente - colhidas no Projeto Norma Culta Urbana (NURC), além de uma narração oral atribuída a uma empregada doméstica, que tem como fonte o Núcleo de Estudos da Língua Falada e Escrita (NELFE), ambos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Para isso, tomou por base a noção de Unidade Comunicativa (UC), adequada para a “análise das características linguísticas da língua falada ligadas aos processos de formulação textual” (MARCUSCHI, 2007, p. 79) concluindo que

o texto falado apresenta, seja qual for o nível de formação, procedência social ou identidade cultural do falante, um altíssimo grau de gramaticalidade, podendo-se até mesmo dizer, com base em estatísticas facilmente comprováveis, que contém menos „equívocos gramaticais‟ que a maioria da escrita acadêmica de um modo geral (grifo do autor).

Assim, Marcuschi (2007, p. 79) acredita que a fala deve ser tomada como ponto de partida para o trabalho para a escrita e leitura, pois é mais facilmente caracterizável em sua textualização e se dá em forma de gêneros, conforme destacado pelo autor:

A fala apresenta enorme regularidade na sua composição sintática que se manifesta no discurso em construção. O texto escrito em geral perde seu “borrão” ao passo que a fala não perde e fica com sua versão original sempre. Justamente por isso, o maior problema no ensino de língua não é ensinar gramática, e sim ensinar a produzir e a compreender textos (grifo do autor).

Ramos (1997) ratifica a ideia defendida acima, assegurando que “iniciar por textos falados é iniciar através de um médium sobre o qual o aluno tem mais domínio. Seriam minimizadas, desse modo, as dificuldades de decodificação da escrita no momento da leitura” (RAMOS, 1997, p. 25 grifo da autora).

A tese defendida por ela, a partir desta assertiva, é a de que as pessoas que dominam precariamente ou mesmo as que não têm qualquer familiaridade com o sistema escrito, ao terem privilegiadas suas habilidades de uso oral durante as aulas, poderão se sentir mais estimuladas a tomar parte nas práticas de uso escrito da língua, o que facilitará seu aprendizado.

Conforme Marcuschi e Dionísio (2007a, p. 8), a preocupação com oralidade na escola deveria ser naturalizada, sem necessidade de justificativas. Eles ressaltam:

É certo que a escola existe para ensinar a leitura e escrita e estimular o cultivo da língua nas mais variadas situações de uso. Mas como a criança, o jovem ou o adulto já dominam a língua de modo razoável e eficiente quando chegam na escola, esta não pode partir do nada. Isso justifica que se tenha uma idéia clara dessa competência oral para partir dela no restante do trabalho com a língua. A escola não vai ensinar a língua como tal, e sim usos da língua em condições reais e não triviais da vida cotidiana. Em si não haveria necessidade de justificar o trabalho com a oralidade em sala de aula, pois parece natural que isso deva ocorrer. O espantoso é que se tenha demorado tanto para chegar a esse reconhecimento. (grifo do autor)

E, neste esforço para empreender uma didática produtiva com a fala em sala de aula, é preciso levar em consideração alguns pressupostos trazidos por Antunes (2003, p. 100 a 105), descritos no quadro abaixo, repleto de orientações para os professores:

Quadro 4: Pressupostos para o trabalho com linguagem oral em sala de aula

1 – “Uma oralidade voltada para a coerência global”

Reconhecimento das unidades temáticas e da finalidade dos textos orais produzidos ou lidos

2 – “Uma oralidade orientada para a articulação entre os diversos tópicos e subtópicos da interação”

Reconhecimento de que na oralidade também é possível verificar princípios de textualidade, a exemplo dos elementos reiterativos e dos conectores.

3 – “Uma oralidade orientada para as suas especificidades”

Reconhecimento dos pontos “formais e funcionais” em que oralidade e escrita são diferentes através de atividades nas quais os alunos sejam levados a confrontar uma e outra modalidades (passar o do oral para o escrito, por exemplo).

4 – “Uma oralidade orientada para a variedade de tipos e de gêneros de discursos orais”

Reconhecimento da variedade de tipos e registros nos quais ocorrem os gêneros orais, com orientações sobre como o falante deve adequar-se às condições de interação determinadas por cada um dos textos produzidos ou lidos em sala de aula. 5 – “Uma oralidade orientada para facilitar

o convívio social”

Reconhecer a necessidade de adotar um comportamento linguístico polido, adequado a cada situação interativa, explicitando, ainda, a forma como certas expressões e palavras podem mudar de sentido, dependendo do contexto.

6 – “Uma oralidade voltada para se reconhecer o papel da entonação, das

pausas e de outros recursos

supressegmentais na construção do sentido do texto”

Reconhecer de que forma elementos suprassegmentais são determinantes no processo de interação verbal.

7 – “Uma oralidade que inclua momentos de apreciação das realizações estéticas

Reconhecimento do valor estético, cultural e artístico das literaturas populares feitas

próprias da literatura improvisada, dos cantadores e repentistas”

em versos cantados. 8 – “Uma oralidade orientada para

desenvolver a habilidade de escutar com atenção e respeito os mais diferentes tipos de interlocutores”

Reconhecimento de que o „ouvir‟ também é uma ação de cooperação e participação no discurso do outro, lembrando, ainda, que a atenção ao que o outro fala é uma habilidade que contribui, também, para a formação social e doméstica do falante, não apenas escolar.

Fonte: Antunes (2003 p. 100)

De fato, “há muito que fazer nas aulas de português”, como lembra Antunes (2003, p. 105) e, apesar da negligência da escola em relação a práticas como as descritas acima, não há dúvidas de que a aprendizagem acontece a partir da interação do indivíduo com o objeto de conhecimento. Sendo assim, o contato com uma diversidade de gêneros do discurso faz com que o aluno compreenda as peculiaridades de cada um deles e possa ter sucesso nas interações formais ao longo de sua vida de falante.

Uma estratégia que atenderá a sugestão feita por Castilho (2000, p. 98): “Simplesmente, estou sugerindo que a escola imite a vida: primeiro aprendemos a falar, depois aprendemos a escrever. Que nas reflexões escolares sobre nossa língua, acompanhemos esse ritmo, deixando de lado uma tola supervalorização do escrito (...)”.