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III. A MISSIONAÇÃO

1. Estratégias missionárias

1.5. A dimensão temporal

Da análise das fontes verifica-se que a actuação dos jesuítas da Província do Malabar saiu, frequentemente, da esfera religiosa que a definiu. Trata-se, pois, de uma atitude de âmbito temporal cujo objectivo último foi, seguramente, cultivar um ambiente favorável à expansão do cristianismo.

Para uma maior proximidade à realidade em causa procuraremos visitar alguns exemplos concretos. A carta ânua de 1643 referente ao colégio de Cranganor, assinala, por exemplo, que os jesuítas se dedicavam à cristandade do apóstolo S. Tomé, que se encontrava distribuída por noventa e três paróquias através de todos os reinos do Malabar, não só implementando as normais práticas apostólicas, como apaziguando desavenças e assistindo em muitas questões de âmbito temporal. O próprio arcebispo gastava muito do seu tempo a resolver inúmeros negócios destes cristãos.572 Segundo a “Breve Relação” de André Lopes, a cristandade de Jafanapatão nutria muito respeito pelos membros da Companhia não só pelo facto de estes zelarem pelas suas almas como também por acudirem a seus trabalhos com os “Ministros Del Rei”.573

Algumas décadas atrás, já num outro contexto, uma situação semelhante permite perceber, uma vez mais, que as intervenções de âmbito temporal foram, desde cedo, prática comum da Companhia em diferentes cenários onde actuou. Estando o caimal da região do colégio de Vaipicota desavindo com o rei de Cochim, o reitor daquele estabelecimento deslocou-se, no início da década de 1620, com o dito revoltado a esta cidade para ajudar a promover as pazes entre os dois soberanos, já que o religioso mantinha laços de amizade com o referido monarca.574

571 As festas ajudaram a congregar os crentes em torno da sabedoria bíblica, ou da summa sapientia. Sobre a sabedoria bíblica pode ver-se, La Sagesse Biblique de L‘Ancien au Nouveau Testament, Paris: s.n., 1995; K.Y. Dell, Get Wisdom, Get Insight: An Introduction to Israel’s Wisdom Literature, London: Darton, Longman & Todd, 2000; S.L. Adams, Wisdom in Transition. Act and Consequences in Second

Temple Instructions, Leiden-Boston: Brill, 2008; Stéphanie Anthonioz, Qu’est-ce que la Sagesse? De l’Orient ancien à la Bible, s.l.: Éditions Parole et Silence, 2011.

572

Simão de Figueiredo, ânua da Província do Malabar de 1643, Cochim, 1/12/1643, ARSI, Goa 56, fls. 506v-508.

573 André Lopes, “Breve Relação das Christandades”, Cochim, 1644, ARSI, Goa 56, fl. 532v. 574

Valentim Pinheiro, ânua da Província do Malabar de 1620, Cochim, 20/12/1620, ARSI, Goa 56, fl. 386v.

Em Coulão, por exemplo, na década de 1630, chegaram os religiosos a incentivar todos os habitantes a fazerem voto solene perante o Santíssimo Sacramento para se apaziguarem, dado que, nesta época, a guerra civil imperava localmente.575 Também por estes anos entre os moradores da cidade de S. Tomé existiram muitas dissensões que os jesuítas tentaram apaziguar.576 Já em Cochim, no coração da província, puseram-se em liberdade, na década de 1640, por meio do Pai dos Cristãos, alguns cativos e dirimiram-se discórdias locais restabelecendo-se as pazes entre alguns habitantes.577

Estas pazes que os agentes da Companhia tentaram promover revelam também a forma diplomática como, em situações problemáticas, geriram as relações dentro da realidade local. Por exemplo, quando o governador de Manila se dirigiu a Ternate para conter a influência holandesa nestas partes, aprisionou o rei de Ternate. Todavia, por influência dos jesuítas, estabeleceu pazes com o rei de Tidore “e socedeo-lhe tudo muito bem porque se houve com muita prudencia” pois seguiu os conselhos dos missionários da Companhia.578 No contexto descrito os jesuítas souberam trabalhar habilmente o relacionamento entre partes opostas, apaziguando os ânimos e as rivalidades existentes em alguns lugares. Através das interacções promovidas tiveram, seguramente, em vista, como já assinalámos, suscitar a benevolência local e criar um clima mais favorável à evangelização.

Como poderemos, mais uma vez, constatar, o alcance de muitas das iniciativas jesuítas ultrapassou o estrito cariz apostólico que define a essência do seu ministério. Os próprios conflitos de guerra foram geradores de cenários complexos que levaram a Companhia a conjugar, na sua actuação, as dimensões pastoral e temporal. Esta última, muitas vezes praticada ao nível da assistência. O episódio já descrito anteriormente relacionado com os jesuítas de Jafanapatão é elucidativo a esse respeito, seja pela assistência religiosa que concederam aos soldados portugueses em 1630, quando dos confrontos entre a armada do vice-rei e os holandeses na zona do Coromandel, seja pelo

575 Cf. Inácio Lobo, ânua da Província do Malabar de 1630, Cochim, 5/12/1630, ARSI, Goa 56, fl. 448v. 576

Cf. ibid., fl. 449.

577 Cf. Manuel Silveiro, ânua da Província do Malabar de 1640, Cochim, 17/1/1641, ARSI, Goa 56, fl. 474v.

578

Pero Francisco, ânua da Província do Malabar de 1612, Cochim, 2/12/1612, ARSI, Goa 55, fls. 298- 298v.

apoio que providenciaram aos mutilados, enquadrando a sua acção no cenário perfeitamente dantesco que daí resultou.579

Situações bélicas complexas e convulsões sociais replicaram-se em diversas partes da Ásia. Por exemplo, quando a referida armada portuguesa chegou a Manar, novos conflitos se geraram, uma vez que os casados da terra se sublevaram contra a soldadesca. Um incidente que obrigou o próprio capelão jesuíta a atalhar a contenda para bem do Estado, como refere a carta ânua de 1630.580

As próprias iniciativas de âmbito temporal ramificavam-se por diversificadas formas de abordagem. Por exemplo, na ilha de Calpeti, em Ceilão, um religioso da província percorria sistematicamente zonas ásperas e desertas habitadas por elefantes bravos, búfalos e tigres para assistir gente extremamente pobre que por ali vivia e se alimentava, grande parte do ano, de fruta do mato, de ervas e de peixe capturado à fisga. Num contexto sui generis e assaz difícil, o dito missionário conseguia ajudar parte destas populações carenciadas, tratando alguns doentes com pau da China, distribuindo arroz e panos para se vestirem. Deste modo, terá convertido alguns habitantes.581

Os religiosos desdobravam ainda a sua acção ao acudir a situações imprevisíveis como foi o caso de um apoio dirigido a uns ingleses durante um incêndio de grandes proporções que deflagrara em casas e ricas fazendas que estes habitantes possuíam na região de Cochim.582

Por vezes, os jesuítas também se ingeriram nas conjunturas político-mercantis. Tal aconteceu em Bengala, onde a movimentação dos religiosos da província neste contexto foi uma realidade, como já deixámos antever atrás. A grande reputação que o jesuíta António Rodrigues, obreiro antigo daquela missão, colhera junto dos muçulmanos levou a que lhe entregassem o “governo da terra” para, por seu meio, se assegurar que os portugueses acorressem ao porto a negociar e não só. Por se tratar de uma actividade de cariz secular, completamente “alheo da Companhia”, o provincial ordenou que Rodrigues se libertasse do cargo. A própria Companhia ao mesmo tempo que reconhecia que já houvera contra os jesuítas alguma “mumuração” por conta desta actividade, para a qual tinham sido solicitados, receava também que a obra que o jesuíta

579

Cf. Inácio Lobo, ânua da Província do Malabar de 1630, Cochim, 5/12/1630, ARSI, Goa 56, fls. 449v- 450v.

580 Ibid., fls. 449v-450v.

581

Cf. Pero Francisco, ânua da Província do Malabar de 1612, Cochim, 2/12/1612, ARSI, Goa 55, fl. 299. 582 Cf. André Lopes, “Breve Relação das Christandades”, Cochim, 1644, ARSI, Goa 56, fl. 473v.

implementara junto dos cristãos moradores e dos mercadores não prosseguisse após a sua partida para Cochim.583 Importa notar que os jesuítas foram usados como “guarda avançada” para ali se implementar uma mais consistente penetração económica dos portugueses. Cruzaram-se múltiplos interesses nestas plataformas portuárias e os religiosos também aqui foram chamados a participar ao nível das dinâmicas da região. Neste episódio de Bengala sobressai também a problemática que acompanhou a Companhia no seu percurso asiático e que se centra em torno da tensão entre religião e questões de ordem temporal.

Por outro lado, em Manar, no ano de 1643, os agentes da província tiveram de intervir junto do capitão geral de Colombo, Filipe de Mascarenhas (g.1640-1645), para lhe solicitar provisões que protegessem os cristãos da terra das opressões e injustiças causadas ali pelos portugueses e, deste modo, evitarem que os ditos cristãos despovoassem o lugar.584

A acção jesuíta junto dos portugueses que percorreram a Ásia revestiu-se também, em determinadas circunstâncias, de um cariz perfeitamente conforme aos interesses da Coroa. Em 1643, o reitor do colégio de S. Tomé sabendo que os portugueses de Negapatão tinham jurado vassalagem aos holandeses, escreveu-lhes várias cartas aconselhando-os a redimirem-se diante do vice-rei da Índia, a avassalarem- se ao seu legítimo rei e a oferecerem-lhe fortaleza e alfândega. Os portugueses acolheram bem a proposta e o próprio vice-rei acabou por conceder à povoação o título de cidade e por enviar para ali soldados capitaneados por António Vaz Pinto. Os esforçados portugueses de Negapatão foram, então, fortificando muros e baluartes perante as permanentes resistências dos locais com o intuito de sujeitarem ao monarca português um porto de enorme importância donde saíam anualmente inúmeras naus de “Christãos, e de Mouros, e de gentios pera diverças partes do Oriente”. Entre muitos desses destinos contavam-se Gergilim, Bengala, Junsalão, Tenassarim, Achém, Malaca, Sião, Camboja, China, Macaçar, Manila, Maluco e outros portos de onde os mercadores traziam ouro, seda, sândalo, cravo, noz, massa “[…] e todas as mais drogas e fasendas previstas” que havia no Sul.585

583 Manuel Silveiro, ânua da Província do Malabar de 1640, Cochim, 17/1/1641, ARSI, Goa 56, fl. 486v. 584 Cf. Simão de Figueiredo, ânua da Província do Malabar de 1643, Cochim, 1/12/1643, ARSI, Goa 56, fl. 512v.

Sendo esta terra de grande comércio e de grande utilidade para os portugueses, os jesuítas tentaram com a sua acção que se reforçasse a presença portuguesa naquele lugar. De acordo com a Companhia, esta foi a primeira cidade que, na Ásia e neste tempo, se libertou da sujeição dos poderes locais, ficando sujeita ao monarca D. João IV.586 Se por vezes a Companhia defendeu as populações asiáticas de algumas ingerências lusas na governação local, aqui a abordagem que empreendeu insere-se claramente na lógica dos interesses da Coroa portuguesa.

Nos exemplos acima ressalta a imagem de uma Companhia embrenhada nos contextos e vivências locais actuando ao nível das mentalidades e das dinâmicas intersociais. A dimensão temporal esteve, assim, ao serviço da dimensão religiosa não só nas áreas de poder português como fora da esfera de influência do Estado da Índia.

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