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III. A MISSIONAÇÃO

1. Estratégias missionárias

1.1. A acomodação em Madurai

1.1.1. Debate missionológico

O método de Roberto de Nobili não só originou estas reacções decorrentes do xadrez sócio-cultural e político local como proporcionou uma acesa controvérsia no seio da Igreja. Naturalmente, em torno da questão dos ritos malabares avolumaram-se tensões, argumentos variados a favor e contra.480 Durante este processo, as hierarquias eclesiásticas foram progressivamente formulando pareceres.

De facto, o clima que envolveu Nobili e o seu método desenhou-se, desde cedo, de forma contrastante dentro da Igreja. Tal é perceptível em obras de alguns autores que estudaram a missão de Madurai. Léon Besse, por exemplo, adverte para o facto das recriminações contra a estratégia de Nobili terem partido, desde cedo, do missionário Gonçalo Fernandes.481 Não é de estranhar a atitude de Fernandes uma vez que a sua actuação em Madurai seguira, desde sempre, uma linha mais europeizante. Inicialmente, o visitador André Palmeiro estava predisposto a favorecer os seus argumentos que se fundamentavam na ideia de não haver uma nítida separação entre secular e religioso no Sul da Índia. 482Já Pierre Dahmen destaca algumas vozes favoráveis a Nobili, entre elas situam-se as do arcebispo Ros e do primaz de Goa, D. Aleixo de Menezes, que afirmara, peremptoriamente, ser mais importante existirem imitadores de Nobili do que detractores.483

Importa notar que a referida controvérsia não assumiu contornos totalmente lineares no que diz respeito a certas posições dos membros da Igreja dado que as

479 Cf. Valentim Pinheiro, ânua da Província do Malabar de 1620, Cochim, 20/12/1620, ARSI, Goa 56, fl. 387. O contexto de tensão e de confronto com as realidades sócio-culturais da região ressalta nos escritos de Roberto de Nobili dirigidos a familiares próximos. Veja-se “Trois Lettres Spirituelles Inédites de Robert de Nobili (1610, 1615, 1649)” in Revue D’Ascétique et de Mystique, 6º ano, nº 62, Abr-Jun, 193, pp. 182-183.

480

É um facto que a referida metodologia, direccionada às elites sócio-religiosas da região, foi motivo de controvérsia dentro e fora da Companhia, pela forma como se revestiu. O debate que se foi avolumando em torno da questão dos ritos envolveu demasiado o missionário de Madurai ao ponto de fazer transparecer as suas preocupações junto de familiares mais próximos, como notou Ioseph Wicki e como podemos comprovar no conteúdo da carta de Nobili dirigida a sua mãe no ano de 1619. Pode ver-se, a este respeito, “Lettere Familiari del P. Roberto Nobili S.I., 1609-1649” in AHSI, ano 38, fasc. 75, Jan-Jun, Roma 1969, pp. 314-318.

481 Veja-se Léon Besse, La Mission de Maduré, Trichinopoly, 1914, p. 200. 482

Cf. Liam Brockey, The Visitor, pp. 94-95.

atitudes de alguns deles oscilaram ora contra ora a favor do método em causa. Esse foi o caso do cardeal Roberto Belarmino (1542-1621), compatriota de Roberto de Nobili, e do Padre Geral que, inicialmente, o hostilizaram e posteriormente modificaram a sua atitude, após terem lido o seu tratado Narratio Fundamentorum. O próprio inquisidor, bem como o visitador André Palmeiro e alguns teólogos da Companhia seguiram posições semelhantes.484

Como notou Liam Brockey, se, por um lado, André Palmeiro reconhecera que este método permitira converter brâmanes sem estes terem de abandonar o seu status social, por outro, verificara também que os resultados da referida estratégia não tinham levado à criação de uma larga comunidade de cristãos indianos.485

As deliberações papais foram também pontos de referência dentro de todo este processo. Como Ioseph Wicki salientou, o papa Paulo V (1605-1621) emitiu, em 1618, um breve muito favorável a Nobili dirigido a Francisco Ros, o que não impediu de se iniciar, cerca de um ano depois, o debate oficial em torno dos ritos, na própria cidade de Goa.486

Dentro deste contexto, alguns dos comentários que constam da relação elaborada pelo provincial Laerzio, a pedido do visitador, revelam, por um lado, a aprovação do método por parte do Padre Geral, do próprio provincial do Malabar, do arcebispo da Serra, Francisco Ros, do reitor do colégio de Cranganor, de Estevão de Brito e de outros religiosos e, por outro lado, a contestação daqueles que defendiam tratar-se de uma estratégia não muito conforme à dos apóstolos, uma vez que visava apenas a conversão de brâmanes e não envolvia a sociedade em geral, nem favorecia a humildade e a caridade exigidas aos pregadores do Evangelho. Nas críticas formuladas aponta-se também o uso do fio bramânico e do sândalo, o vegetarianismo, a ostentação do vestuário, de panos decorativos e de palanquim e as despesas que a missão exigia. Laerzio destacou-se nesta argumentação como favorável à estratégia seguida por

484 Cf. Antão de Proença, ânua de Madurai de 1565 e 1566, Candelur, 20/09/1656, ARSI, Goa 53, fls. 248-248v. Veja-se ainda, a propósito, Casimiro Cristóvão de Nazaret, Mitras Lusitanas, p. 117; G. Santos “S. João de Brito e os Ritos Malabares” in Brotéria, vol. 44, fasc. 1, Lisboa, 1947, p. 759.

485 Cf. Liam Brockey, The Visitor, pp. 110-111.

486 Cf. “Lettere Familiari del P. Roberto Nobili S.I., 1609-1649” in Archivum Historicum Societatis Iesu, ano 38, fasc. 75, Jan-Jun, Roma 1969, p. 317. Em 1615, Paulo V autorizara o Mandarim como língua litúrgica.

Roberto de Nobili quando referiu, de forma incisiva, que quem impugnava o método fazia-o apenas pela simples razão de ele envolver um italiano.487

Estão aqui polarizadas tensões entre os métodos e as nacionalidades dos seus agentes. É interessante notar que a atitude favorável de Laerzio para com esta metodologia não o impediu de solicitar informações detalhadas sobre ela a habitantes de Madurai que já tinham sido evangelizados pelo missionário em causa.488 É evidente que o cargo que Laerzio desempenhava não se compadecia com atitudes de mera benevolência ou simpatia para com esta missão, mas exigia uma posição de permanente vigilância face aos desenvolvimentos que se passavam no terreno, até porque a Igreja em geral estava atenta à “questão” Nobili. Muitas das tensões relacionadas com ela terão levado, eventualmente, o próprio visitador Nicolau Pimenta a pedir-lhe que tomasse “certa enformação do modo de proceder do Padre Roberto Nobili” e dos cristãos que ele fazia.489 Esta expressão parece indiciar que uma das preocupações de Pimenta foi precisamente pensar o referido método em termos de eficácia, de resultados concretos, tal como defenderia Palmeiro posteriormente.

No seio deste contexto, algumas directrizes emanadas da hierarquia eclesiástica acabariam por ser penalizantes para a missão de Madurai. Em 1613, o provincial Pero Francisco, que sucedera a Laerzio, enunciou por escrito decisões do Padre Geral que contestaram, frontalmente, a abordagem missionária implementada por Nobili em Madurai. Neste documento são inúmeras as proibições relativas aos trajes usados pelos padres da missão. Determinou-se, por exemplo, que “o vestido de sanniage de que athegora usarão, não he modesto, nem decente aos Religiosos; pello que tragão sempre Cabaya comprida athe o arthelho”. Interditou-se também o recurso ao trabalho de brâmanes, por se achar pouco condizente com a “pobresa, e humildade religiosa”, o uso do sândalo, a clausura, a alimentação vegetariana, “ritos e bençoens gentílicas”. Proibiu- se ainda a manipulação de termos locais para traduzir termos portugueses como Jesus, Baptismo, Confirmação e Eucaristia, à qual se associara o nome “Pugey”. Apenas se

487 “Relação da consulta que o Provincial Alberto Laercio fez sobre a missão de Maduré, comforme a ordem do Padre Visitador”, s.l, s.d., ARSI, Goa 51, fl. 27v. A favor do método estava também Jerónimo Gomes: “polla fee e conversão das almas tudo se pode fazer, e temos experiencia na China que teve muito bom socesso tomarem os nossos padres habito e profissão de Letrados”. Jerónimo Gomes, ânua da Província de Cochim de 1607, Cochim, 10/12/1607, ARSI, Goa 53, fl. 11. O termo palanquim na acepção antiga designa, na Índia, um andor ou machila. Na acepção extensiva significa qualquer transporte oriental acarretado por homens. Cf. Sebastião Rodolfo Dalgado, Glossário Luso-Asiático, II, p. 142. 488

Cf. “Artigos que se hao de perguntar”, 12/9/1610, ARSI, Goa 51, fls. 51-62. 489 Cf. ibid., fl. 63.

permitiu o recurso ao termo “Tambiram” para significar Deus, por ser usado vulgarmente em toda a Índia com esse sentido. Impediu-se, inclusivamente, a circulação do catecismo e orações que Nobili vertera para a língua tamul, até serem examinados pelas autoridades competentes.490

Neste longo e minucioso rol de imposições e proibições está patente um crescente clima de tensão vivido dentro da Companhia. Todavia, o texto em si enferma de uma ambivalência fecunda para este estudo, já que nos revela as duas posições antagónicas que se perfilaram: por um lado, a vertente mais ortodoxa da Companhia fechada nos seus modelos mais ocidentalizantes e por outro lado a dimensão de maior abertura ao mundo que ela também albergou dentro de si. Ao contestar-se o modelo missionário de Nobili descreveu-se, simultaneamente, as formas que o plasmaram e que nos permitem perceber um pouco do contexto religioso que o envolveu.

O impacto que este documento teve em Madurai originou a suspensão da actividade apostólica junto daquela zona da província. Todavia, Nobili e os companheiros de missão não desistiram desta causa e discutiram-na detalhadamente quer por meio de missivas quer presencialmente junto da hierarquia da Companhia.491 O parecer elaborado em 1615 pelo jesuíta António Vico, missionário de Madurai, é significativo, a esse respeito, por realçar, em defesa de Nobili, que o Geral aprovara aquela missão com o seu particular modo de se acomodarem os religiosos àquela gente e por apresentar outros argumentos bem fundamentados para responder e contrapor os artigos impostos em 1613.492 Estamos perante um intenso debate, à imagem do que sucedeu relativamente ao caso da missão da China.

A carta ânua de 1623 assinalou um retrocesso desta cristandade em termos de fé cristã pelo facto de a corte local ter sido transferida de Madurai para Trichinopoli493 e por ter sido também interrompido o trabalho missionário. Segundo se dizia, esta deslocação motivara a dispersão de muitos dos habitantes e alguns dos jesuítas deixaram de pregar devido às dúvidas e questões que se levantaram em torno da

490 Pero Francisco,“Ordem que se deve guardar na nova Residencia de Madure, dada pelo Padre Provincial”, s.l., 11/8/1613, ARSI, Goa 51, fls. 191-192v.

491 Cf. carta autógrafa do padre António Vico, Madurai, 19/11/1615, ARSI, Goa 51, fls. 211-211v. 492 “Parecer do Padre Antonio Vico aos sobreditos pontos”, 1615, ARSI, Goa 51, fls. 245 e ss. 493

O termo Trichinopoli aparece nas fontes jesuítas com as seguintes designações: Trichelapaly, Triserapaly, Trigerapaly.

missão.494 A tensão vivida pelos missionários de Madurai, motivada pela controvérsia dos ritos, torna-se mais uma vez evidente nesta missiva.

Atente-se, no entanto, que o ano de 1623 foi também crucial para se dar um novo impulso ao método de Nobili. É que o papa confiara ao inquisidor-mor de Portugal, D. Fernando Martins de Mascarenhas (1608-1628), um estudo e um parecer sobre o referido método. O parecer favorável do prelado teve como resultado a bula de Gregório XV (1554-1623), Romanae Sedis Antistes de 31 de Janeiro de 1623.495 Bertrand vê o período que se segue como um tempo de mudança.496 É certo que, se por um lado, o desgaste ocorrido durante esta fase mais polémica trouxera, como salientámos, efeitos negativos no terreno, por outro, esta bula papal era agora uma nova esperança que poderia facilitar o retomar do progresso missionário em Madurai nos moldes gizados por Nobili.

De facto, Roberto de Nobili manter-se-ia firme na sua estratégia ao longo do tempo e, em 1644, lamentava terem enviado para Madurai somente dois obreiros para converter “gente baixa”, da casta dos párias. Segundo Nobili esta casta já tinha começado a ser evangelizada por via de alguns cristãos. O jesuíta pretendia angariar, acima de tudo, mais gente capaz de missionar entre as classes superiores, uma vez que estava em risco a conversão dos brâmanes, por falta de religiosos que se dedicassem exclusivamente a estes. Além disso, as gentes locais criticavam os jesuítas por desenvolverem, por vezes, o mesmo tipo de abordagem junto de castas tão díspares. Queixavam-se aos respectivos governantes de os religiosos misturarem os “altos” com os “baixos” no trabalho que desenvolviam. Não obstante as tensões vividas localmente, o desejo que Nobili acalentava, à data, de ali permanecer até ao final dos seus dias parece mostrar os vínculos que ainda o uniam à missão de Madurai e ao trabalho junto das elites da região.497

Em 16551, refere-se a importância do método de Nobili e da missão dos padres

brâmanes. Uma importância que, na altura, não se atribuía a um número avultado de

conversões de brâmanes mas à forma de os missionários se acomodarem a estes reinos,

494 Cf. ânua da Província do Malabar, Cochim, 1623, ARSI, Goa 56, fl. 402. 495 Veja-se Bullarium Patronatus Portugalliae Regum, tomo II, pp. 32-34. 496 J. Bertrand, La Mission du Maduré, II, p. 197.

497

Carta de Roberto de Nobili ao Padre Geral, Madurai, 7/4/1644, ARSI, Goa 51, fl. 318. Nobili persistia no seu apostolado não obstante os graves problemas de visão que o afectavam. Já em 1639, por morte do padre António Vico, Nobili tinha requerido mais missionários que se fossem instruíndo nas línguas locais para as quais dizia ser preciso destreza. Cf. carta de Roberto de Nobili ao Padre Geral, Madurai, 10/10/1639, ARSI, Goa 51, fl. 317.

onde os brâmanes eram vistos quase como divinos e estavam acima de qualquer rei ou senhor local.498 Os livros escritos por Nobili em língua tamil eram considerados, de facto, um material de importância chave para instruir na fé cristã os católicos da missão de Madurai. A este conjunto de obras acrescentavam-se outros livros que os jesuítas compunham em língua local. Por exemplo, o missionário brâmane Manuel Miranda escrevera sucessivamente pequenas obras baseadas na doutrina do cardeal Roberto Belarmino, em livros da paixão de Cristo, em obras sobre os bons costumes, no Flos

Santorum, tirado do livro do padre Pero de Ribadaneira etc. A informação veiculada

nestes escritos era comunicada aos cristãos e, ao tempo, o seu autor desejava até que ela alcançasse os próprios cristãos da Costa da Pescaria e de Jafanapatão, pelo facto de aí se falar a mesma língua.499

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