• Nenhum resultado encontrado

Evolução da estratégia de acomodação na missão de Madurai

III. A MISSIONAÇÃO

1. Estratégias missionárias

1.1. A acomodação em Madurai

1.1.2. Evolução da estratégia de acomodação na missão de Madurai

No decorrer de Seiscentos a metodologia de acomodação reajustou-se na região de Madurai, uma vez que passou a dirigir-se a todo o universo social desta mesma região por via de outro tipo de missionários. Assim, já não só os padres brâmanes, como os padres pandaras ou padres belalas passaram a fazer parte do corpo de membros da Companhia.

A estratégia missionária seguida pelos padres pandaras viria a ser decisiva para se progredir no terreno de uma forma mais inclusiva. Antes de ela ter sido implementada em 1640, o provincial Manuel de Azevedo (1637-1641) ouvira algumas experiências dos padres brâmanes relacionadas com a missionação de párias500 e percebera que estes missionários, quando arriscavam secretamente evangelizar o referido estrato social, incorriam num risco efectivo por estarem a infringir as regras da sociedade local. Estes religiosos ficavam, naturalmente, expostos a inúmeras dificuldades enfrentando o perigo iminente de perderem o contacto com as classes mais altas. Azevedo, determinou, então, que um desses religiosos mudasse o seu hábito e passasse a trajar como um pandara, para operar mais facilmente junto das castas inferiores. A 4 de Julho de 1640 iniciou-se oficialmente esta nova estratégia de

498 Cf. carta de Manuel Miranda, Satiamangalão, 31/10/1651, ARSI, Goa 53, fl. 219. 499 Cf. ibid., fl. 222.

500

Anteriormente à criação dos missionários pandaras já se evangelizavam as castas baixas. Veja-se, a propósito, carta de Manuel Miranda, Madurai, 20/10/1638, ARSI, Goa 53, fl. 113v.

evangelização: “Feito Jogue me parti de Madurê pera Caruur aonde fiz a primeira igreja, em que bautizei quasi todos os cathecumenos […]”.501

Azevedo decidiu, pois, após muitas considerações e consultas, em conselho com visitadores e outros jesuítas criar esta nova classe de missionários para se dedicar à evangelização das castas inferiores.502 Instituiu-se, então, como referimos a classe dos sacerdotes pandaras. Na Índia meridional e em Ceilão, os pandaras representavam os ascetas ou penitentes mendicantes de castas inferiores e o seu teor de vida era semelhante ao dos saniassis. Não obstante esta similaridade, era-lhes lícito tratar, simultaneamente, com castas superiores e inferiores o que lhes conferia, no Hindustão, um prestígio assinalável. Pandaras já convertidos vieram, posteriormente, a desempenhar o cargo de catequistas colaborando com a Companhia e proporcionando o aumento da cristandade de Madurai.

Como referimos, o recurso a estes novos missionários viria a constituir a via privilegiada para o cristianismo chegar às castas mais baixas. Vários missionários iriam posteriormente prosseguir nesta estratégia de abarcar de forma mais abrangente a população de Madurai.

Na carta ânua de 1641 podemos já ver assinalados os sacerdotes pandaras a actuar junto das castas mais baixas da região. Reporta-se, por exemplo, que um jesuíta fora destacado para evangelizar os párias num lugar muito afastado de Madurai para não prejudicar as elites desta cidade. Mesmo assim, existiam resistências, por parte dos

pandaras e brâmanes do pagode. Tal confirma-se no momento em que estas elites

sociais avisaram o maniagar da terra contra os jesuítas, alegando que iriam destruir os seus deuses acusando-os de serem seres inertes, à semelhança de pedras.503 Não obstante as resistências locais, tentava-se missionar outros estratos sociais de um modo novo, marcado por uma maior proximidade à sociedade local.

501 Baltazar da Costa, “Do Principio da Conversão do Pareâs e do mais sucedido nesta Cristandade ate Outubro deste prezente anno de 1646”, Madurai, 14/10/1646, ARSI, Goa 53, 196v-197. Como assinala Ananya Chakravarti, Baltazar da Costa foi o primeiro missionário a vestir-se de padre pandara. Uma estratégia de evangelização direccionada especificamente às castas mais baixas que pressupõe, em última instância, a manutenção da alteridade em vez da dissolução da diferença. (cf. “The many faces of Baltasar da Costa: imitatio and accommodatio in the seventeenth century Madurai mission” in Etnográfica, 18 (1), 2014, p. 135). Sobre o catecismo de Baltazar da Costa veja-se “Catecismo em que se Explicão Todas as Verdades Catholicas Necessárias pera a Salvação com Excellentissima Ordem”, 1661, Academia das Ciências, Vermelha 698.

502

Cf. carta de Manuel Miranda, Satiamangalão, 31/10/1651, ARSI, Goa 53, fl. 219.

Em 1643, um padre pandara informava que tinha grandes esperanças que todos os moradores de uma determinada povoação se fizessem cristãos por via dos respectivos senhores principais que já ouviam o catecismo.504

Naturalmente, durante este processo os jesuítas viveram por entre algumas tensões e obstáculos, tal como acontecera com Nobili e com outros missionários da Província do Malabar. Um outro exemplo desta conjuntura refere-se a Trichinopoli, para onde fora transferida a corte do naique de Madurai e alguns cristãos, e onde passara a existir uma igreja destinada apenas aos párias. Paralelamente, os jogues

pandaras desta zona professavam de forma rigorosa as práticas afectas aos seus pagodes

beneficiando, ao mesmo tempo, das esmolas provenientes desta casta inferior. A conversão dos párias ao cristianismo trouxera, pois, algum mau estar não só entre estes mestres locais como entre os gentios, em geral, até porque não viam com bons olhos os

pandaras estrangeiros. Afirmavam que estes desvirtuavam à “boca cheya” a divindade

de seus deuses. Como tal, a ideia de perseguir os neófitos ia ganhando adeptos dentro do contexto local e os próprios receios dos religiosos avolumavam-se perante a ameaça latente de jogues e mercadores poderem interferir contra os cristãos junto do naique da região.505

Não obstante estas tensões, o método de Nobili relativo às elites locais encontrava-se, nestes anos, também no terreno coexistindo com os outros tipos de abordagens como podemos constatar na carta ânua de 1643. Aqui, informava-se que nas terras repartidas pelos diferentes naiques, entre elas os de Madurai e de Tanjaor, andavam os religiosos vestidos uns ao modo jesuíta, outros com traje de “Saniazees”, que eram os mestres dos brâmanes e das castas nobres, e outros de “Pandaras” ou “Belalas graves”, que eram os mestres de “vida honesta” de todas as restantes castas.506

504

Simão de Figueiredo, ânua da Província do Malabar de 1643, Cochim, 1/12/1643, ARSI, Goa 56, fl. 518v. Em 1612 e na jurisdição do colégio de Cochim, fala-se da conversão de cinquenta e oito gentios de várias castas, o que permite pensar que nesta área da Índia a estratégia jesuíta de acomodação visou uma maior diversidade de estratos sociais. Veja-se, a este propósito, Pero Francisco, ânua da Província do Malabar de 1612, 2/12/1612, ARSI, Goa 55, fl. 279v. Em outros contextos o objectivo de conversão de alguns missionários centrou-se num único grupo social, tal como aconteceu na Costa de Travancor. Em 1665, reporta-se o trabalho de alguns religiosos que, ali, se dedicavam principalmente a evangelizar uma casta de pescadores. Cf. “Breve noticia da Provincia do Malavar no estado presente em o primeiro de Janeiro de 1665”, ARSI, Goa 48, fls. 164-165.

504

Cf. ibid.

505 Cf. Baltazar da Costa, “Do Principio da Conuersão do Pareâs e do mais sucedido nesta Cristandade ate Outubro deste prezente anno de 1646”, Reino de Madurai, 14/10/1646, ARSI, Goa 53, fls. 197-201. 506

Simão de Figueiredo, ânua da Província do Malabar de 1643, Cochim, 1/12/1643, ARSI, Goa 56, fls. 512v, 517v-519v.

No mesmo ano os jesuítas voltavam a assinalar que na missão de Madurai existiam “três sortes de micionarios, todos com diferentes trajos, pera ganharem Almas pera Deus”.507

O decreto papal de 1623 marcado por uma abertura ao método de Nobili não impedira que as vozes contra ou a favor desse método deixassem, posteriormente, de ecoar. Assim sucedeu, por exemplo, na década de 1640, em que houve opiniões díspares quanto ao modo de missionar nestes lugares. De acordo com a ânua de 1643, um outro sector da Companhia parecia mais adepto da conversão da casta indiana dos pandaras já que, segundo o texto, esta casta era mais conforme ao exemplo de Cristo, uma vez que ela tratava com qualquer outra casta, tal como Cristo fizera ao escolher “pescadores de baixa casta”. A estratégia de acomodação aplicada às castas mais baixas é apresentada aqui como muito frutuosa porque, de acordo com Simão de Figueiredo, entre 1640 e 1643 tinha levado a cerca de dois mil e duzentos baptimos de adultos, entre eles párias,

belalas e outras castas nobres dos reinos de Madurai, de Tanjaor e de Satiamangalão.508

Ao longo das décadas em análise e a par do método mais ocidentalizante, já ali implementado anteriormente, a estratégia de Nobili perdurou e foi, ao mesmo tempo, alargando-se a diferentes áreas do distrito e ganhando novas nuances. A partir do dealbar da década de 1640, três metodologias permitiram que o cristianismo se propagasse mais eficazmente nesta região do Sul da Índia.509

Se, por um lado, o método de acomodação introduzido por Nobili prosseguiu nas décadas subsequentes, por outro, a acomodação implementada pelos padres pandaras junto de castas mais baixas ganhou progressivamente uma maior expressão. Vários foram os jesuítas que se revestiram deste traje e deste modo de vida ao longo das décadas posteriores. Entre eles, refira-se o exemplo paradigmático de S. João de Brito que, entre 1674 e 1693, actuou com êxito em diferentes partes desta missão, tal como referiremos oportunamente.

Note-se, a título conclusivo, que a versatilidade de instrumentos missionários experimentados pela Companhia permitiu ampliar a missão de Madurai não só geograficamente como em termos sociais.

507 Ibid., fl. 516. 508

Ibid., fls. 518-518v. 509 Ibid., fls. 517v-519v.

Uma acção missionária embrenhada na cultura da região e direccionada à estratificada sociedade do Tamil Nadu, mas que não se desligou de tensões, interrogações, perseguições e conflitos. Percorrer sistematicamente lugares dispersos, catequizando, confessando, celebrando baptismos e outros sacramentos e dar a esses dinamismos missionários um rosto local permitiu transfigurar, progressivamente, a linguagem cristã nos lugares da missão de Madurai e que os respectivos habitantes contactassem essa reinvenção ou readaptação dos moldes de transmitir o cristianismo.

No que respeita às populações abrangidas pela missão de Madurai, importa ter em conta a conjuntura sócio-cultural do espaço tamil-nadu que as enquadrara e marcara profundamente. A sua própria identidade, que fora moldada ao longo do tempo, transparece nos escritos da Companhia quando neles se descrevem a sociedade e a cultura destes lugares abrangidos pela província.510 Como já referido, muitos dos traços da sociedade fortemente estratificada que ali existia permaneciam vinculados àqueles que se tornavam cristãos.

Alguns desses sinais que se prolongaram na cristandade emergente são visíveis aqui e ali em excertos do epistolário jesuíta. As missivas da Companhia foram, na verdade, bem explícitas neste ponto quando referiram que a conjuntura local motivou os religiosos a adaptarem estratégias específicas ao seu exercício apostólico e à acomodação que empreenderam nestas partes da província. Quando perceberam a impossibilidade das castas baixas e das castas honradas se juntarem em lugar de culto ou mesmo em casas particulares “enventaram os Padres por inspiração do Spirito Santo a profição de Pandaras, pera darem remedio a converção das castas baixas”.511

Tal como referimos, ao mesmo tempo que os padres brâmanes se dedicaram às castas honradas, os padres pandaras ou belalas cultivaram os estratos sociais mais baixos, o que constituiu uma honra nunca vista nestes reinos, dado que normalmente estes grupos eram ensinados por mestres pertencentes a castas inferiores. Nas palavras de André Lopes, a igreja tornou-se também para estes grupos num local privilegiado de encontro, a partir do momento em que aderiram à fé cristã.512

510 Veja-se, a este propósito, Cf. André Lopes, “Breve Relação das Christandades”, Cochim, 1644, ARSI, Goa 56, fls. 533-534v.

511

Ibid., fl. 533v. 512 Cf. Ibid., fl. 533v.

Trichinopoli513 é um exemplo ilustrativo onde se conjugaram diferentes formas de abordagem e de vivências cristãs. A área abrangida pela residência dos padres

brâmanes de Trichinopoli era vasta e compreendia vários lugares, entre eles a cidade do

mesmo nome, localizada a vinte léguas ao norte de Madurai, a cidade de Irôru, a vinte e duas léguas de Trichinopoli, povoações pertencentes à província de Satiamangalão, situada a sessenta e duas léguas de Irôru e o reino de Tanjaor, localizado a dois dias de viagem de Trichinopoli, onde se iniciara, nestes primeiros anos da década de 1640, o cultivo de uma nova cristandade. Por outro lado, a residência dos padres pandaras de Trichinpoli compreendia uma igreja sita nesta cidade, para além de outros lugares que dois jesuítas percorriam, como eram as respectivas localidades circunvizinhas, Madurai, Tanjaor, Caruur, Satiamangalão e Ginja.514

É curioso notar que na cidade de Trichinopoli quando o padre brâmane não estava disponível para assistir os respectivos cristãos estes eram acolhidos na igreja do padre pandara que ordinariamente ali se encontrava e que, por este motivo, ficava mais sobrecarregado pelas acrescidas tarefas que daí lhe advinham.515

Como podemos constatar, neste lugar as diferentes castas em algumas ocasiões partilhavam um espaço único em torno de um topos comum. No excerto que se segue a Companhia reflecte sobre esse motivo que as unia: “Verdade he que huns e outros a saber Altos e baixos sabem muito bem que a lei he a mesma”.516

Ainda na década de 1640 algumas perseguições originaram a ocupação da casa e da igreja dos padres brâmanes de Trichinopoli por um capitão turco. Tal levou o superior da missão a transferir estas estruturas para Satiamangalão onde o naique local se mostrara, ao tempo, mais amigo da Companhia.517 No seio deste ambiente de convulsões locais iriam prosseguir os trabalhos da Companhia ao longo das décadas seguintes.

513 Em 1616, o soberano de Madurai transferiu para esta cidade a sua corte e o seu exército. Nobili terá passado por Trichinopoli no ano de 1627 e encontrou ali vários cristãos que, anteriormente, tinham sido baptizados por ele. Nesta urbe viviam também elementos de castas inferiores. Cf. Angel Santos Hernández, Las Misiones bajo el Patronato Portugues, I, Madrid: Eapsa, 1977.

514

André Lopes, “Breve Relação das Christandades”, Cochim, 1644, ARSI, Goa 56, fls. 533v-534. 515 Ibid., fl. 534.

516 Ibid., fl. 534. 517

Baltazar da Costa, “Do Principio da Conuersão do Pareâs e do mais sucedido nesta Cristandade ate Outubro deste prezente anno de 1646”, Reino de Madurai, 14/10/1646, ARSI, Goa 53, fls. 205v-206.

Documentos relacionados