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III. A MISSIONAÇÃO

1. Estratégias missionárias

1.3. Diferentes níveis de acomodação

Os casos já referidos mostram-nos que a acomodação assumiu variados graus conforme as circunstâncias, as possibilidades e as necessidades. No colégio de Cochim, por exemplo, e noutras partes da província, sob a alçada protectora do Estado da Índia, a acomodação não foi, eventualmente, tão longe como a que se experimentou em Madurai ou junto dos cristãos de S. Tomé. Todavia, em maior ou menor medida, a acomodação às culturas dos locais onde os jesuítas actuaram foi uma característica da Companhia, bem visível na Província do Malabar.522

De facto, como salientámos, a missão de Madurai é um exemplo paradigmático de intercâmbio cultural. Ela remete-nos para a forma como os jesuítas souberam reinventar em cada momento e em cada lugar o seu intercâmbio cultural com os povos.

Podemos, ainda, contemplar outros locais e outras iniciativas de âmbito cultural que tiveram lugar nas dispersas partes da província. À semelhança da missão de Madurai ou mesmo do que se passou na China, no Tibete privilegiou-se o estudo da língua local e dos livros sagrados das comunidades autóctones.523 Tal funcionou como um veículo privilegiado para uma mais eficaz transmissão da fé cristã. Usando, sistematicamente, esse suporte cultural local, procedeu-se à composição de orações e de instruções em caracteres da região e ao estudo dos livros sagrados para discutir temas

521 Cf. Certidão de Paulo da Fonseca, Coulão, 17/9/1683, ARSI, Goa 29, fl. 31. 522

O processo de aprendizagem das várias línguas asiáticas que os jesuítas desenvolveram em muitas partes da província foi uma realidade no século XVII.

523 “Relação que mandou o Padre Estevão Cacela da Companhia de Jesus ao Padre Alberto Laercio, provincial da Provincia do Malabar da India Oriental, da sua viagem pera o Cataio, até chegar ao Reino do Potente”, Reino de Cambirasi, 4/10/1627 in Hugues Didier, Os Portugueses no Tibete, p. 233.

religiosos com os próprios líderes locais entre eles o rei Droma Raja, considerado grande letrado no seio dos lamas de reinos distantes.524

É interessante ainda notar o paralelismo traçado por Estevão Cacela entre a cultura religiosa de alguns destes lugares e o cristianismo. Por exemplo, relativamente a um dos muitos reinos por onde passara, Cacela descreve que ali se adorava um só Deus, considerado imenso e omnipresente em todos os lugares. A existência da ideia de um Deus trino e de um filho de Deus, nascido de uma virgem, é mais um ponto desse comentário a registar. Também a crença numa bem-aventurança, destino dos bons, e de um inferno, castigador dos maus, parecem, segundo este jesuíta, o sinal de ter chegado ali, de algum modo, a luz do “Santo Evangelho”.525

Em 1643, altura em que não existia nenhum jesuíta da província nesta missão, advertia-se a Europa que ela não deveria ficar esquecida até porque o mosaico de seitas ali existentes constituía um campo muito fértil a desbravar.526 Tal denota a forma como os jesuítas se aproximavam e interagiam com os povos a nível cultural. Este dinamismo que privilegiavam permitia-lhes uma mais interactiva abordagem missionária.

Também na residência de Chandegri, no reino de Vijayanagar, o jesuíta Francisco Rici, por exemplo, no seu zelo de conversão, foi estimulado a aprender a línguas locais: “ao exercicio das lingoas que pera este ministerio lhe servião, e assi depois de aprender a lingoa Talmud aprendeo aqui em breve a lingoa Badaga, em que tradusio alguns livros nossos”. Iniciou ainda o estudo da língua erudita da região, o sânscrito. Por sua vez, e após a morte de Rici, o provincial enviou a esta residência o jesuíta António Rubino (1578-1643), um natural de Piedmont que missionara na corte

524

Cf. ibid., pp. 237-238. Nesta missão catequizaram-se crianças e jovens. Segundo consta, um lama de vinte e sete anos ajudou a verter para língua local orações, a doutrina cristã, a cartilha sobre a Santa Cruz e um texto sobre a pureza de Nossa Senhora. Ibid., fl. 255v. Vem a propósito recordar que o trabalho seguido pelos jesuítas nos seus primeiros anos em Goa foi, para além da educação, a aprendizagem e o ensino do Concani. Pode ver-se, a este respeito, Francisco de Sousa, Oriente Conquistado a Jesus Cristo

pelos Padres da Companhia de Jesus da Província de Goa, 2 vols., Porto: Lello & Irmãos, 1978.

Actualmente os principais idiomas da Índia meridional como o tamil, o canarim, o telegu ou o malaiala não são de origem indo-europeia como o sânscrito e seus derivados, entre eles o marata e o concani. Sobre a origem e evolução dos idiomas da Índia pode ver-se, entre outros autores, Romila Thapar, A

History of India.

525 “Relação que mandou o Padre Estevão Cacela da Companhia de Jesus ao Padre Alberto Laercio, provincial da Provincia do Malabar da India Oriental, da sua viagem pera o Cataio, até chegar ao Reino do Potente”, Reino de Cambirasi, 4/10/1627 in Hugues Didier, Os Portugueses no Tibete, pp. 234-235. Peter Burke aborda o conceito de tradução cultural e aponta os jesuítas como especialistas nessa matéria no seu artigo “Cultures of translation in early modern Europe” in Cultural Translation in Early Modern

Europe, ed. Peter Burke & R. Po-chia Hsia, Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

526

Simão de Figueiredo, ânua da Província do Malabar de 1643, Cochim, 1/12/1643, ARSI, Goa 56, fl. 517.

de Vijayanagar, em Chandegri, e que viria, mais tarde, a morrer como mártir no Japão, para seguir o mesmo percurso de aprendizagem das línguas locais, o que demonstra como o programa da Companhia contemplava e persistia nesta estratégia de acomodação à realidade local.527 Como é evidente existia uma política linguística perfeitamente definida.

A mesma estratégia se aplicou para reduzir a cristandade da Serra ao catolicismo romano: “[…]porque para governar e dirigir a Christandade da Serra, he necessario saber nam sô a lingoa Malavar, se nam também a suriana, e ter inteira noticia dos custumes da Serra, erros daquela gente”. Realça-se no mesmo escrito que só o arcebispo da Serra e os jesuítas da Província do Malabar é que dominavam estes conhecimentos, uma vez que há muitos anos trabalhavam naquela missão.528 Como podemos observar mais uma vez, na carta ânua de 1607, o colégio de Vaipicota constituíra o local por excelência onde, desde cedo, fora prática corrente o ensino do suriano, mistura de siríaco e de caldeu.529

Veja-se ainda, a título de exemplo, o que acontecia no colégio de Cranganor onde seis jesuítas sabiam muito bem a língua malabar para percorrerem toda a cristandade da Serra;530 ou mesmo em Bengala, na ilha de Chatigão, onde se via o domínio das línguas locais como método para fazer muitos cristãos. Daí se explica terem-se aplicado os jesuítas Manuel Pires e Brás Nunes no estudo das línguas dos mogóis e de Bengala respectivamente.531

Tal como aconteceu, por exemplo, no Brasil e noutras partes, estamos prante uma estratégia perfeitamente direccionada às diferentes culturas asiáticas. Um método de acomodação que se expandiu a muitas partes da Província do Malabar. Pode observar-se ainda, a este título, o caso de Ceilão onde se recorreu a missionários que

527

Jerónimo Gomes, ânua da Província do Malabar de 1607, Cochim, 10/12/1607, ARSI, Goa 53, fls. 15- 15v. O jesuíta António Vico em Moramangalão discutia assuntos da fé cristã com homens entendidos na língua tamul e nas “seitas” locais. Cf. “Copia de hua do Padre Antonio Vico ao Padre Manuel Morais sobre a missão de Moramangalão feita aos 8 de Nouembro de 1629”, Moramangalão, 08/12/1629, ARSI, Goa 56, fl. 445. Em Velur os jesuítas usaram pinturas, entre elas uma alusiva ao mártir S. Jorge com legenda em língua badaga, para evangelizar o rei de Bisnaga. Cf. Jerónimo Gomes, ânua da Província do Malabar de 1606, Cochim, 29/12/1606, ARSI, Goa 55, fls. 152-152v.

528 “Sumaria Relação da Chistandade da Serra, de seos principios progressos de Reudhuções athe de tudo presente do anno de 1654”, ARSI, Goa 50, fl. 227v. A língua “suriana” era um misto das línguas siríaca e caldaica. Cf. ibid., fl. 236.

529 Cf. Jerónimo Gomes, ânua da Província do Malabar de 1607, Cochim, 10/12/1607, ARSI, Goa 53, fl. 6v.

530

Cf. André Lopes, ânua da Província do Malabar de 1644, Cochim, 13/12/1644, ARSI, Goa 56, fl. 521. 531 Pero Francisco, ânua da Província do Malabar de 1612, Cochim, 2/12/1612, ARSI, Goa 55, fl. 296.

dominassem a língua da terra e conhecessem os autóctones para, assim, melhor se inserirem no contexto sócio-cultural cingalês e mais adequadamente missionarem nestas partes.532

Os próprios debates que os religiosos travaram junto das classes mais instruídas foram uma prática corrente não só em Madurai e na missão tibetana, como em outros lugares da província.533 Os missionários tentaram conhecer as religiões locais no sentido de mais eficazmente captarem o interesse dos respectivos interlocutores para um diálogo mais profícuo. Usaram esses conhecimentos no sentido de alcançarem uma argumentação mais sólida, em favor das temáticas cristãs. Por exemplo, em Ceilão, na residência de Matigrama, o jesuíta ali de assento mandou, em dado momento, vir de Maluana um mestre local. Pediu-lhe para lhe dizer “de raiz e de principio as cousas da sua Lei” e teve com ele grandes debates sobre Deus. Estabeleceu um paralelo entre as diversas castas e as diferentes partes do corpo humano, a que S. Paulo aludira nos seus escritos, para demover o referido mestre das ideias que alimentava acerca de um Deus injusto.534

O resultado desta interacção acabou por ir ao encontro dos objectivos missionários, uma vez que o dito mestre se converteu ao cristianismo, tomando o nome de Simão Correia, e colaborou doravante com o jesuíta na composição, em língua local, de vinte e seis vidas de santos, de um catecismo, da Paixão de Cristo e na elaboração de um livro sobre a explicação dos sete sacramentos.535

Como podemos verificar, estas obras em língua local foram consideradas veículos prioritários para a difusão de matérias relacionadas com o cristianismo e para o

532

“A Chilão mandou o Padre Provincial hum padre que sabia a lingoa, e antigo obreiro da Christandade o qual com su mansidão e charidade cativou os ânimos de todo aquelle povo gentilico”. Jerónimo Gomes, ânua da Província do Malabar de 1606 e 1607, Cochim, 10/12/1606/1607, ARSI, Goa 53, fls. 13-13v. Nas directrizes do provincial Laerzio podemos perceber que a cultura dos povos da Ásia não passava indiferente à Companhia. Laerzio solicita, por exemplo, que se escreva sobre as “antiguidades da Ilha de Ceilão”. Ibid., fl. 13v. A sua visão de abertura ao desconhecido espelha, em certa medida, o quadro mental e cultural que herdara de Inácio de Loyola. Pierre Chaunu fala dos jesuítas como pessoas detentoras de características específicas para a missão. Na sua óptica eles sabiam conjugar o método, a eficácia, a organização e o sentido da diferença com a unidade para definir objectivos, a descentralização na escolha de meios e a capacidade de mobilização dos seus membros. Cf. Pierre Chaunu, Église, Culture

et Société. Essais sur Reforme et Contre-Réforme 1517-1620, Paris: Société d'édition d'enseignement

supérieur, 1981, p. 398. Na verdade, quando visitamos a Província do Malabar na metodologia que os seus membros implementaram vem-nos à memória algumas dessas imagens do perfil jesuíta traçado por Chaunu.

533 Cf. Simão de Figueiredo, ânua da Província do Malabar de 1643, Cochim, 1/12/1643, ARSI, Goa 56, fl. 519.

534

Pero Francisco, ânua da Província do Malabar de 1612, Cochim, 2/12/1612, ARSI, Goa 55, fl. 299v. 535 Ibid., fls. 299v-300.

alicerçar da fé no seio das populações. A composição destes textos deixa perceber que no plano metodológico o recurso ao ensino e à catequese constituiu uma estratégia pivô na linha de actuação da Companhia, funcionando estas actividades como instrumentos privilegiados ao serviço dessa mesma fé cristã.

Deste modo, vocacionados que estavam para aprender e instruir, os jesuítas implementaram no terreno, como salientámos anteriormente, o ensino. Por exemplo, em Ceilão, reportava-se que um dos religiosos ensinava a classe de Latim e que alguns filhos de régulos locais frequentavam a escola dos jesuítas “pera serem milhor instruidos”.536

Os diferentes colégios e seminários elencados na segunda parte deste estudo eram estruturas que funcionavam como espaços privilegiados de difusão cultural. Os programas escolares ao destinarem-se tanto aos elementos da Companhia, conforme já referimos atrás, como aos catecúmenos em geral, tiveram em conta a especificidade dos respectivos destinatários. Como salientou Jean-Marie Valentin, o ensino foi vulgarmente associado à Companhia de Jesus como uma marca específica e original e como um meio eficaz de evangelização universal e de reconstituição do mundo cristão na sua unidade.537

Efectivamente, a política de ensino e a doutrina difundida pelos jesuítas atravessou transversalmente a Província do Malabar. Várias destas iniciativas foram implementadas nas residências anexas ao colégio de Tuticorim e Costa da Pescaria, nas do colégio de Coulão, nas casas da ilha de Manar, em todas as partes da jurisdição do colégio de Colombo e do colégio de Jafanapatão, assim como nas áreas do colégio de Cochim e do colégio de Cranganor, em Bengala, Pegu, e Maluco.538

Assim, em 1612 referia-se, por exemplo, a existência de uma escola “em lingua Malavar” na ilha de Ceilão, onde os meninos aprendiam não só as orações, mas os capítulos com perguntas e respostas que repetiam aos Domingos na igreja. O próprio arcebispo de Goa, dizia-se, ao passar por este colégio admirara-se como os meninos de seis e sete anos repetiam a “Cartilha toda de cor so de ouvida sem saberem ler”. Os mais

536

Jerónimo Gomes, ânua da Província do Malabar de 1606 e 1607, Cochim, 10/12/1607, ARSI, Goa 53, fls. 13-14.

537 Cf. Jean-Marie Valentin, Les Jésuites et le théâtre (1554-1680). Contribution à l’histoire culturelle du

monde catholique dans le Saint-Empire romain germanique, Paris: Desjonquères, 2001, p. 46.

novos tinham participado também numa encenação alusiva ao orago da referida escola.539

Neste tipo de iniciativas recorria-se vulgarmente a manuais de apoio onde estavam gizados os conteúdos programáticos da catequese a ministrar. Os cristãos de Jafanapatão, por exemplo, foram convertidos pelos jesuítas e doutrinados com o recurso ao “Catecismo” e à Cartilha de Marcos Jorge, Doctrina Christãa ordenada a maneira

do dialogo para ensinar os meninos (1ª ediç. 1566), traduzida para a língua local.540

Os jesuítas da Província actuaram ainda noutras regiões dentro da mesma linha. Privilegiando o ensino das populações, tentaram, deste modo, atrai-las mais facilmente. Veja-se, a esse título, o trabalho que realizaram junto da cristandade da Serra. No longo processo em que participaram da conversão destes cristãos às fórmulas latinas ditadas por Roma a sua forma de intervenção junto desta cristandade passou, preponderantemente, por uma aproximação de âmbito cultural em que o ensino destas populações teve também um papel chave em toda a abordagem de relacionamento que desenvolveram na região.541

Assim, para conservação e aumento desta cristandade fundaram um seminário e ali operaram ao longo de décadas: “fizeram um sumptuoso seminario em Vaipicota pera ali ensinarem aos naturais a lingoa suriana. Elles como tam eminentes nesta lingoa alimparam de muitos erros e heregias os livros da Serra elles foram continuando com esta missam ate o tempo prezente”.542

Por aqui ficava implícito não só o ensino direccionado à cristandade da Serra, mas igualmente a cultura que os próprios jesuítas tinham assimilado para interagirem localmente.

Também um dos missionários pandaras que trabalhou na região de Madurai, nos reinos de Tanjaor e de Satiamangalão, instituiu uma escola onde foram ensinados

539 Pero Francisco, ânua da Província do Malabar de 1612, Cochim, 2/12/1612, ARSI, Goa 55, fls. 298v- 299. V. Perniola assinala que praticamente qualquer igreja jesuíta em Ceilão dispunha de uma escola anexa e de um espaço para encenações dramáticas e que foi devido a esta educação abrangente que a língua portuguesa ou um dialeto dela sobreviveu ali até hoje. V. Perniola, The Catholic Church in Sri

Lanka, III, p. XIV.

540

Simão de Figueiredo, ânua da Província do Malabar de 1643, Cochim, 1/12/1643, ARSI, Goa 56, fls. 512v-513. Sobre os catecismos impressos na Índia pode ver-se, entre outros autores, A.K. Priolkar, The

Printing Press in India, Bombaim, 1958.

541 Veja-se, a propósito, “Sumaria Relação da Chistandade da Serra, de seos principios progressos de Reudhuções athe de tudo presente do anno de 1654”, ARSI, Goa 50, fls. 228v. Já na residência da Madre de Deus, anexa ao colégio de S. Tomé, iam à doutrina diariamente duzentos meninos e na escola existiam doze alunos. Cf. André Lopes, “Breve Relação das Christandades”, Cochim, 1644, ARSI, Goa 56, fl. 533v.

542

“Sumaria Relação da Chistandade da Serra, de seos principios progressos de Reudhuções athe de tudo

meninos da casta pária e de outras castas para serem futuros catequistas. O dito religioso defendia ser o “unico meio pera se estender a fee” naquelas regiões.543 Ressaltava, pois, que os jesuítas da província integraram e implementaram na Ásia um processo dinâmico de intercâmbio cultural.

No processo de evangelização contemplaram-se ainda iniciativas relacionadas com a apresentação de pinturas de temática religiosa, no sentido de suscitar nas gentes locais uma melhor compreensão do cristianismo. Estamos perante uma espécie de teologia visual que, deste modo, se construiu.

Cativar os naturais através da imagem abriu mais uma janela à passagem da mensagem cristã. As fontes jesuítas reportam alguns exemplos que vão nesse sentido. Em 1607, foi enviado à residência de Chandegri o irmão, Bartolomeu Fonte Bona, que, junto do rei local, pintou várias cenas e falou de temas religiosos: “Algumas veses fallou ao Rei das cousas de Deos e de sua salvação, tomando occasião de algumas pinturas”. Segundo Jerónimo Gomes, o impacto destas pinturas levara o monarca a fazer a apologia da Companhia junto dos brâmanes mais ilustres que o rodeavam.544

Também a presença da cruz em muitos lugares funcionou como um símbolo, carregado de forte significado, que pretendeu descentrar as populações das suas antigas convicções religiosas, ligadas a divindades locais. Em Ceilão, por exemplo, quatro anos após ter sido derrubado um pagode dedicado ao deus da chuva, surgiu um período de seca que foi justificado pelos “changatares”, uma espécie de feiticeiros locais, como castigo da razia feita àquele local de culto. Entretanto, a chuva que sobreveio, após este período, foi tida como uma bênção e muito bem recebida pelos agricultores, tendo os meninos participado numa procissão à “Santa Cruz” pedindo-lhe água.545

Os missionários persistiram, deste modo, em direccionar o espírito religioso das populações para a pessoa de Cristo crucificado. Foi também através da simbologia da cruz546 e da mensagem que transporta que tentaram transformar a vivência religiosa da região. Não

543 Simão de Figueiredo, ânua da Província do Malabar de 1643, Cochim, 1/12/1643, ARSI, Goa 56, fl. 518v.

544 Jerónimo Gomes, ânua da Província do Malabar de 1607, Cochim, 10/12/1607, ARSI, Goa 53, fls. 15v-16.

545

Pero Francisco, ânua da Província do Malabar de 1612, Cochim,02/12/1612, ARSI, Goa 55, fl. 298v. Também em Martigrama, na ilha de Ceilão, onde se fundou residência e igreja arvorou-se uma “fermosa Cruz” aos 13 de Janeiro de 1611, para ali o reitor de Colombo celebrar a missa nova. Ibid., fl. 299. 546

Note-se que o recurso à cruz para cristianizar as populações não se podia aplicar, por exemplo, às missões do Japão uma vez que neste país esta simbologia era considerada vexatória.

deixa, contudo, de transparecer no episódio descrito algumas acções cristãs de forte radicalidade de modo a eliminarem qualquer vestígio pagão.

Estamos cientes que o presente tópico não esgota a diversidade de abordagens jesuítas, implementadas no decurso da sua diáspora missionária. Todavia, através dos exemplos apresentados é possível vislumbrar alguns traços característicos, ou pelo menos duas chaves de leitura que nos permitem desenhar uma imagem mais consistente desse modo de actuar. A primeira envolve uma arquitectura gizada, um programa rigoroso, concebido e implementado em torno de práticas religiosas e de instrumentos

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