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A dinâmica da inversão no primeiro movimento do enredo em nível verossímil

1.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENREDO EM NÍVEL VEROSSÍMIL

1.3.1 A dinâmica da inversão no primeiro movimento do enredo em nível verossímil

Nota-se que ao iniciar o enredo, o personagem-narrador parece conceber ironicamente o personagem Roasão como um trickster, um anti-herói que veio à França movido por frívolos imediatismos instintivos, haja vista “Traziam-no dólares do Govêrno e perturbada

vontade de gozo, disposto ao excelso em encurtado tempo, isto é, como lá fora também às vezes se diz, chegou feito coati, de rabo no ar”. (p.146).

Logo o diálogo é entabulado por questões relativas à natureza e função da arte literária. Sem embargos, porém com dúvidas, o leitor pode suspeitar que – aos olhos do personagem-narrador – Roasão seja alguém que está sendo ironizado pela própria fala que enuncia em flagrante e absurdo contra-senso. Neste caso – enquanto espelhamento relacional – há possibilidade do encontro dar vezo a processo de projeção80

. Se não, veja-se: “Denunciou-me romances que intentava escrever e que lhe ganhariam glória, retumbante,

arriba e ante todas, ele havia de realizar-se. (...) “Explicou-me Klaufner e Yayarts” (p.147).

Assim, uma análise que objetive correspondência biunívoca entre linguagem e realidade verá que Roasão, nestas circunstâncias, pode ser melhor chamado pelo pseudônimo (ou falso nome) de Radamante, pois que nutre pretensiosas intenções literárias, porém, em termos factuais, os nomes dos dois escritores que cita inexistem, a não ser como prováveis invenções, blefe e vacuidade.

Nesta perspectiva, se Radamante (como neste primeiro capítulo este estudo, em função dos aparentes blefes, prefere chamar o personagem Roasão) “Despreza estilos” (p.147), contraditoriamente, também, o mesmo Radamente parece enunciar estilosas, modernosas81 sentenças ao dizer que o “(...) romance gênero estava morto (...)” (p.147). Ademais, sobre elitizado fundo, em sofisticada cidade francesa, o personagem, aparente vítima da ironia, “Visava não à satisfação pessoal, mas à rude redenção do povo” (p. 147). Ao querer o “mundo novo, aclássico, por perfeito” (p.147), Radamante sugere-se percebido pelo personagem-narrador como representante de todo o período moderno; de modo que,

80 Em nível verossímil, é possível que o personagem-narrador esteja projetando em Radamante aspectos desconhecidos e sombrios que desconhece em si mesmo. Sobre a projeção Fadiman e Frager dizem: é “o ato de atribuir a uma outra pessoa, animal ou objeto as qualidades, sentimentos ou intenções que se originam em si próprio (...) é um mecanismo de defesa por meio do qual os aspectos da personalidade de um indivíduo são deslocados de dentro deste para o meio externo. A ameaça é tratada como se fosse uma força externa. A pessoa pode, então, lidar com sentimentos reais, mas sem admitir ou estar consciente do fato de que a idéia ou comportamento temido é dela...” (FADIMAN; FRAGER, 1986, p. 22).

81 Usa-se, aqui, os vocábulos estilosas e modernosas para enfatizar que o narrador-personagem parece estar ironicamente apresentando os exageros e contradições percebidos na fala e no comportamento de Radamante.

nesta perspectiva, seja ele o próprio individualismo em ironia e a própria ironia em pessoa.82 Apóstata do racionalismo verista, ironiza-o o próprio verismo83, pois este, sendo lógico e realista, não suporta tantas contradições.

Como se pode constatar, até, então, tudo indica que o primeiro movimento do diálogo perfaz-se como dinâmica da inversão, vez que representa a relação de conflito entre os personagens. No entanto, a relação que favorece o conflito é também a que favorecerá a re- solução. Veja-se que ambos os personagens sentam-se à mesa, nutrem-se: “Depois do filet de sôle sob castelão bordeaux seco, branco, luziu-se a poularde à l`estragon, à rega de grosso

rubro borguinhão e moída por dentaduras degustex”. (p.147).

Integrando diálogo que versa sobre a arte literária, tal passagem, possivelmente, pode metaforizar a atividade artística como devir de relação humana e nutrição espiritual. Sobre este fundo, é provável que os conflitos se intensifiquem de modo que também se acenem possíveis superações.

Radamante – abundando em excessos – parece carecer em faltas, de tal modo que diz ao cicerone: “Você é o da forma, desartificios (...). Mas vivamos e venhamos. (...) Você não

tem livros verdadeiros, impinge-nos...” (p.147). Por sua vez, o personagem-narrador, não sem

certa dose de ironia, parece revidar ao sugerir que o interlocutor é um “prisioneiro de intuitos,

confundindo sorvete com nirvana.”84 (p.147).

Acena-se, aqui, a passagem que leva os movimentos da inversão à dinâmica de reversão. O possível conflito entre o aparente hedonismo imediatista de Radamante e o ascetismo eudemonista85 do personagem-narrador parece sofrer transformação quando sutilmente se dá escuta conjunta de canções que – catalisando a possibilidade de novas sínteses relacionais – viabilizam sentimento de mútua compreensão. Nota-se que depois de

82 Refletindo sobre a relação entre a ironia e a modernidade, na obra Ironias da Modernidade, Arthur Nestrovski comenta: “Na medida em que a ironia é uma qualidade de toda linguagem, quando se vê como tal, um perpétuo deslocamento que define a própria linguagem da arte, pode-se dizer que a literatura – toda a literatura – é irônica. Mas na modernidade esse reconhecimento passa a ser o tema por excelência da arte, alegorizado nas mais variadas formas de narrativa”. (NESTROVSKI, 1996. p.7).

83 Sobre o verismo examinar UNAMUNO, Miguel de: Do sentimento trágico da vida nos homens e nos povos. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996.

84 De condão metafísico, esta fala parece querer enunciar que Radamante não sabia distinguir gozo nirvânico, transpessoal vivido no Eterno Agora dos prazeres imediatos proporcionados pela sensorialidade pré-pessoal. A falácia que confunde o pré-pessoal com o transpessoal é discutida em WILBER, Ken. Transformações da

consciência: o espectro do desenvolvimento humano. São Paulo: Cultrix, 1999.

85 Hedonista diz-se daquela ética que concebe a vida como orientada para o prazer, enquanto que eudemonista diz-se daquela ética que concebe a vida como orientada para a felicidade. Tais noções podem ser encontradas, respectivamente, nas páginas 94 e 122 em JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de

dizer “Ouvíamos a Vinha do vinho, depois a Canção dos oitenta caçadores” (p.147), a narrativa revela que o personagem-narrador abre-se para a presença de Radamante. Se não, veja-se tal revelação: “Peguei-lhe aos poucos o fio dos gestos, tudo o que exame submisso” (p.147).

Assim, como pletora do movimento dialogal que se desenvolve até então, em enigmático instante, o personagem-narrador, percebe-se em situação ambivalente. Retomando lembrança que o faz pressentir o vindouro – agora – parece sentir metafísicas saudades que o levam a cintilante apreensão, pois conforme vem narrar “Queria, não queria

ter saudades. Não ri. Ele era — um meu personagem:” (p.147). De modo lancinante, a

existência de Radamante, portanto, é percebida não enquanto fato positivista – factualidade externa – supostamente objetável, mas, sim, enquanto figura fictícia, simulação e ação que dis-simula: irônica figura que interpreta movimentos de parábase e catábase.86

A partir deste momento dá-se inversão, vez que Radamante espelha possíveis projeções e sombras do personagem-narrador e é este quem parece ironizado por aquele. Necessariamente, tal relação dialógica será oportunidade de mútuo conhecimento, reflexão, meditação. Enfim, de transformação que – por problematizar a realidade em nível verossímil – a evocar gracejo e perplexidade, aponta para a existência de forças que vigorem em outros níveis de consciência e realidade.

O leitor atento – possivelmente – abordará a verossimilhança sob suspeita, enquanto que para os personagens, o movimento dialogal far-se-á como enantiodromia87: o que era

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Ronaldes de Melo e Souza, em ensaio intitulado Introdução às Poéticas da Ironia, reflete sobre a ironia em Schlegel e sobre a obra rosiana, comenta: “A revolução crítica de F. Schlegel consiste em elevar a parábase ao estatuto privilegiado de princípio supremo da composição artística. Axiomaticamente se considera que a grandeza da poesia do verso e da prosa é pendente da intensidade constante do movimento parabático. A obra literária é considerada superior se apresentar um movimento parabático contínuo. Postula-se que a literatura, além de representar acontecimentos, tem de ser uma forma de conhecimento. O primado artístico da parábase intensifica a força cognitiva do discurso literário. Uma parábase permanente, eis o ideal da obra de arte. (…) A ironia é uma parábase permanente, principalmente porque subordina o acontecimento representado ao processo crítico da reflexão”. (SOUZA, 2000, p. 27-48).

Neste sentido, o movimento de parábase é processo de ascensão e purificação espirituais que, através da ironia, não apenas visa ao que é santo, luminoso e etéreo, mas, também, põe-se a exigir o movimento de catábase, ou seja, a descensão que intenta conhecer e integrar o que é diabólico, sombrio e telúrico. Sobre os processo de catábase ver SANFORD, John A. Mal, o lado sombrio da realidade. Trad. Sílvio José Pilon e João Silvério Trevisan. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1988. (Coleção Amor e Psique).

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Usada no pensamento jungiano para descrever a dialética que rege os processos do desenvolvimento humano, a expressão enantiodromia vem da palavra grega enantio e significa movimento que oscila de um oposto ao outro, ou seja, trata-se da circularidade operada pelos movimentos dialéticos. No caso rosiano, a enantiodromia rege a dialógica dos personagens tanto quanto serve como dinâmica que prepara o leitor para aquela experiência que supera os planos da representação e da circularidade dialéticas.

Em artigo intitulado O Círculo do Dramático na Obra de Guimarães Rosa, Evelina Hoisel, discutindo os aspectos dramáticos do conto Meu tio, o Iauretê, registra que “a representação literária, que enceta essas

conflito, então, reverte-se em complementaridade. É como se pelo advento da linguagem promovido no encontro com o personagem Radamante, o personagem-narrador, que antes parecia ironizar, agora, esteja, ele também, sob ação ascensional da ironia.

Adentra-se, por conseguinte, em segundo movimento da dialógica no enredo. A presença das canções acompanha harmonicamente tal momento e, depois de acolhido e superado a percepção da realidade em nível de verossimilhança, o personagem-narrador, diante o enigmático fato de Radamante ser um personagem, vivencia a emergência do nível sutil, o nível das cores e sons arquetípicos88.

1.3.2 A dinâmica da reversão no segundo movimento do enredo em nível