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CONSIDERAÇÕES SOBRE A PASSAGEM DA DINÂMICA DA REVERSÃO PARA

ROSIANO

Este segundo capítulo dissertativo intentou observar a ritualização do paradoxo no texto rosiano, isto é, como o rito, de modo ascensional, remete sempre, de algum modo, à experiência do paradoxo.

Como se pode ver, ao contar “Queria, não queria, ter saudades. Não ri. Ele era — um

meu personagem: conseguira-se presente o Rão no orbe transcendente.” (p.147), o narrador

rosiano labora problematização da identidade não apenas do personagem Radamante, mas, também, dos níveis verossímil e mito-simbólico. Deste modo, se em primeiro momento do enredo, o encontro dos personagens promove a reversão dos conflitos em complementaridades, o segundo faz-se como a reversão da complementaridade em posibilidade de autêntico paradoxo.

215 “Eu quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse traduzindo de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no plano “das idéias”, dos arquétipos, por exemplo. Não sei se estou acertando ou falhando nessa tradução.” (BUSSOLOTTI, 2003, p.63-64).

A ironia da dialógica ascensional incide tanto sobre o nível verossímil quanto sobre o nível arquetípico, haja vista os personagens adentrarem nova esfera da realidade216 de modo a perceber que as próprias identidades vivenciam-se em nível originário-causal217, ou seja, naquele nível em que, paradoxalmente, a identidade é alteridade.

A acolher e a superar os planos da verossimilhança e arquetípico – por intermédio de tensões e complementos, de gracejos e sérias reflexões, de expressões irônicas e paradoxais – o enredo em estudo tensiona e intensifica a experiência da leitura, segue rumo à experiência mais radical, faz-se dinâmica da conversão, desdobra-se em novo e terceiro movimento.

Nesta perspectiva, pode-se dizer que, na textualidade rosiana observa-se a possibilidade de emergência de dois tipos básicos de paradoxo. Faz-se mister, então, que se apresente de modo mais detalhado a distinção entre 1) paradoxo circunstancial ou situacional e 2) paradoxo estrutural ou originário.

O paradoxo circunstancial ou situacional218 se realiza em ambivalências situacionais, oxímoros, expressões contraditórias na fala dos personagens (ou do narrador) e engendra movimento que há de culminar na experiência do paradoxo originário219. Este, por sua vez – a irromper como insinuação de sentido em cada sintema, fonema, sílaba, palavra, frase, oração e período – é o paradoxo do qual emergem todos os conflitos e complementos adensados no texto. Não está explicitado em alguma fala do texto, mas, como centro que é margem – faz-se tal fluir extático do texto em questão. Nesta perspectiva, a princípio, o nível originário vem questionar a identidade dos personagens, para depois, então – sintetizando e sendo síntese de

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Neste sentido, pode-se dizer com Sören Kierkegaard (2005, p.89): “É assim que se passam as coisas com as exposições míticas nos diálogos construtivos. Primeiramente o mítico é assimilado ao dialético, não mais está em conflito com este, não mais se fecha em si mesmo de maneira sectária; ele alterna com o dialético, e deste modo, tanto a dialética quanto o mítico são elevados a uma ordem de coisas superior.”

217 Para esclarecimento do que venha a ser nível originário-causal ver a Introdução desta pesquisa, bem como WILBER, Ken. O projeto atman: uma visão transpessoal do desenvolvimento Humano. São Paulo: Cultrix, 1999.

218 Em carta endereçada ao tradutor alemão Curt Meyer-Clason, João Guimarães Rosa antevê o sentido de paradoxo circunstancial aventado nesta pesquisa, quando, então, afirma: “Uma pequena dialética religiosa, uma utilização, às vezes, do paradoxo; mas sempre na mesma linha constante, que, felizmente, o Amigo já conhece, pois; mais felizmente ainda, somos um pouco parentes, nos planos, que sempre se interseccionam, da poesia e da metafísica”. (BUSSOLOTTI, 2003, p.238-239).

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Nota-se como na entrevista concebida a Günter Lorenz, João Guimarães Rosa traz concepção que, ressoando com a noção de paradoxo originário aventada nesta pesquisa, vai ao cerne de toda a vida humana:

“G.L: Desculpe mais relacionado com a sua biografia isso não parece um tanto paradoxal?

J.G.R: E não apenas isto, mas tudo: a vida, a morte, tudo é, no fundo paradoxo. Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir algo para o qual não existem palavras. Por isso acho que um paradoxo bem formulado é mais importante que toda a matemática, pois ela própria é um paradoxo, porque cada fórmula que o homem pode empregar é um paradoxo.” (ROSA, 2005, p.32).

todas as ambiguidades da estória – favorecer ação e vivência radicais de paradoxo220 que, ao problematizar também a identidade do leitor, questiona a separação entre a leitura e texto, sobre-tudo, entre finitude e Infinito. Sendo autênticos, ironicamente, ambos os tipos de paradoxo remetem à experiência que vigora para além das circunstâncias e das estruturas. Assim, com o fortalecimento da experiência poiésica os paradoxos circunstanciais haverão de alargar a possibilidade de emergência do nível originário, ou seja, fortalecerá vivência que avança ao retornar para o paradoxo nevrálgico no qual se estrutura e pela qual há de se desestruturar e reestruturar criativamente a identidade do texto em questão.

Para a leitura, por sua vez, se em nível mito-simbólico, o personagem-narrador e Radamante faziam-se máscaras que, a dramatizar as potências da anima, animus, persona e

sombra integravam a identidade da narrativa e do narrador, agora, iniciando-se experiência

em nível originário, as manifestações da finitude (inclusive o próprio texto e a encenação identitária da leitura) podem ser máscaras que dramatizam, no palco do mundo, o encontro da Graça e do divino no ser do homem.

Lembra-se, outrossim, das falas de Schopenhauer221 no texto de Tutaméia e perceber- se-á que o terceiro capítulo deverá fazer-se como a terceira das quatro leituras sugeridas pelo autor. Trata-se, pois, de iminente movimento em que o triadismo dialético pode precipitar experiência simbólica da quadrindade222.

Como já foi observado, na linguagem rosiana os níveis de representação, apresentação e ação literárias estão justapostos e não necessariamente ocorre que todo e qualquer leitor queira ou deva apreender o texto rosiano como processo ascensional.

No entanto, a acompanhar a sugestão do autor de Tutaméia, quer por razões didáticas, quer por insinuações mistagógicas inspiradas em pedagogia do Mistério, esta pesquisa optou por fazer-se em gradual escalada. Nesta perspectiva, o colapso da hierarquia dos níveis ocorrido na dinâmica da conversão é e não é tão somente negação da existência dos níveis,

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Sobre a dialética que acolhe a vivência do paradoxo, na obra O Conceito de Ironia Constantemente referido a Sócrates, Kierkegaard (2005, p.89) reflete: “Pela resignação renuncio a tudo; é um movimento que realizo sozinho e se me abstenho, é razão disso a covardia, a moleza, a falta de entusiasmo... Porém, torna-se indispensável a humilde coragem do paradoxo para alcançar então toda a temporalidade a fim de ganhar a eternidade.”

221 Lembra-se das citações de Schopenhauer que o autor João Guimarães Rosa dispõe acima do primeiro e do segundo índices da obra Tutaméia: “Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob luz inteiramente outra.” (ROSA, 1979); “Já a construção, orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário por vezes ler-se duas vezes a mesma passagem.” (ROSA, 1979).

222

Para discussões basilares sobre a trindade e a quadrindade no texto rosiano ver tanto a Introdução quanto os Primeiro e Segundo Capítulos desta dissertação.

mas, sobre-tudo, experiência que faz perceber infinitude a se apresentar para o homem: amor que, sempre crescente e disponível, respeita as diferenças nos estratos e planos em que elas se apresentam também como identidades.

O próximo capítulo, portanto, intenta observar como o paradoxo, apoiado nas experiências verossímil e mito-simbólica, pode fazer a leitura ascender à experiência de abertura para a Graça, ou seja, pode favorecer o salto que guinda à experiência ao nível não- dual da Transcendência, isto é, à Libertação propriamente Bem-dita.

3 A LINGUAGEM ORIGINÁRIA E A LIBERTADORA EXPERIÊNCIA

DA GRAÇA NO TEXTO ROSIANO

No capítulo anterior, observava-se como, no primeiro e no segundo movimentos do enredo, a ritualização mito-simbólica realiza-se como crescente processo de emergência de situações proto-paradoxais. Vez que os eflúvios epifânicos do nível arquetípico-sutil brotam da fonte originária, a ascensão dialógica se faz como gradativas insinuação, emergência e deflagração experiencial de paradoxo que, acolhido, integrado e ultrapassado, deve remeter à radicalidade transcendental do nível não-dual. Assim, para efetivar o intento deste capítulo – estudar a linguagem rosiana em nível originário – torna-se desnecessário retomar o texto rosiano em questão desde o início.

Sabe-se que quando o narrador afirma “Queria, não queria, ter saudades. Não ri. Ele

era — um meu personagem: conseguira-se presente o Rão no orbe transcendente.” (p.147)

questiona-se a identidade, abre-se consciência para a realidade originária, enceta-se terceiro movimento do enredo ou dinâmica da conversão. Portanto, é esta dinâmica que, a acolher e a superar os níveis anteriores, torna possível a emergência do paradoxo originário tanto na experiência apresentada pelos personagens quanto na realização poiésica do texto como um todo.

Assim, depois dos personagens, com o desfecho do texto, quiçá, também a leitura possa se abrir para a libertadora experiência da Graça. Para tanto e a fim de que se vença o peso da temporalidade, de que se dê superação da oposição eu-outro, deve-se avançar em regresso que busca a instância da qual tudo se origina.

3.1 A DINÂMICA DA CONVERSÃO NO TERCEIRO MOVIMENTO DO