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1. E NQUADRAMENTO T EÓRICO

1.5. A discriminação enquanto risco

A discriminação pode ser definida como um tratamento diferenciado e negativo de pessoas com base na sua pertença a um grupo social particular (Dovidio, Major e Crocker, 2000). Uma pessoa que é estigmatizada é, quase sempre, alvo das ações negativas que têm como base preconceitos (atitudes negativas) e estereótipos (representações cognitivas) socialmente construídos sobre o seu grupo específico (Dovidio et al., 2000). Assim, a perceção de discriminação é a avaliação de uma ação como injusta ou imerecida, explicada pela inclusão ou pertença do próprio a um grupo social estigmatizado (Major & Sawyer, 2009). São várias as características de pessoas que podem ser estigmatizadas numa determinada cultura. Em Portugal, segundo os dados do Eurobarómetro, os tipos de discriminação mais comuns parecem ser aqueles que têm por base a orientação sexual (69% dos participantes concorda que a discriminação de minorias sexuais é comum), a identidade de género (65%), a deficiência (65%) e a origem étnica (64%) (European Commission, 2015).

entre outros indicadores, ao aumento da depressão, ansiedade e stress pós-traumático; e também associada a menor autoestima, perceção de mestria, satisfação com a vida, bem como menor saúde física (genericamente avaliada) (para estudos de revisão consultar Paradies et al., 2015; Pascoe & Richman, 2009; Schmitt, Branscombe, Postmes, & Garcia, 2014). Além de enfrentar eventos potencialmente perturbadores, pertencer a um grupo estigmatizado estimula processos psicológicos capazes de, por si só, gerar stress, tais como a internalização de atitudes sociais negativas (Brondolo, Libretti, Rivera, & Walsemann, 2012; Meyer, 2003). Adicionalmente, a discriminação afeta não apenas a pessoa lesada, mas também, de forma indireta, outras pessoas próximas. Alguns estudos mostram que a discriminação percebida pelos cuidadores influencia negativamente a sua experiência de paternidade e, consequentemente, o ajustamento psicossocial dos seus filhos (Bos, van Balen, van den Boom, & Sandfort, 2004; Brody et al., 2008; Murry, Brown, Brody, Cutrona, & Simons, 2001). Adicionalmente, está também demonstrada a experiência de estigma por associação (ou de cortesia, como apelidado por Goffman, 1963/1990), pelo qual uma pessoa que não tem o atributo estigmatizado, mas se associa a quem o manifesta, é também alvo de um tratamento negativo (King, 2001). Estas situações observam-se, por exemplo, com os familiares de pessoas LGB (seus pais e seus filhos), pessoas com doença mental ou condenadas por algum crime (Corrigan & Miller, 2004; King, 2001).

No presente estudo, iremos focar-nos em grupos alvo-direto de dois preconceitos distintos, o racismo e a homofobia. Os estudos conduzidos por Neto (2010a) revelam que cerca de 19% dos jovens de comunidades imigrantes (sobretudo jovens Afro- lusitanos) sentem-se discriminados com frequência. Vários estudos mostram que a perceção de discriminação por parte de minorias raciais1 ou étnicas2 é um fator de risco

1 O termo “raça” poderá ser definido como uma categorização que distingue a população em função da

manifestação de determinadas partículas hereditárias (genes) ou carateres físicos (Coll et al., 1996). Segundo Smedley e Smedley (2005) o conceito de raça começou a ser utilizado nas interações com os norte-americanos com ascendência Europeia e a população com origem Africana ou Nativo-americana no final do século XVII. Antes desse período, as pessoas eram sobretudo distinguidas (e discriminadas) em função de outros atributos como a religião ou nível “civilizacional”. Ainda que características do aspeto físico contribuíssem para a distinção entre pessoas, apenas no século XVIII, o termo raça começou a estar associado a uma conceção social que considerava os Nativo-americanos e Africanos como inferiores e menos “humanos” que os Europeus (Brancos) (Smedley & Smedley, 2005). Desde então, esta ideologia de raça (associada à desumanização) persistiu e traduziu-se em mecanismos (como a segregação racial) que visam manter a hegemonia “branca”. Em paralelo, também a ciência apropriou-se deste conceito de raça e procurou sistematicamente avaliar em que medida as pessoas com diferentes traços fenotípicos eram distintas entre si, contribuindo para a “essencialização” das diferenças entre as pessoas de diferentes “raças” (Smedley & Smedley, 2005). Ainda que as mesmas investigações revelassem que as diferenças biológicas não sustentam os argumentos de diferenciação racial, a ideologia de raça persiste, o que corrobora a proposição do construcionismo social, pelo qual determinadas crenças/conceitos não são

para o desenvolvimento, observando-se um efeito negativo em termos de vários indicadores de adaptação, como a autoestima, sensibilidade interpessoal, bem-estar psicológico, depressão, ansiedade, solidão, problemas comportamentais, seleção de amigos, consumo de drogas e saúde física (Cunningham, 2001; Delgado, Updegraff, Roosa, & Umaña-Taylor, 2011; Gaylord-Harden & Cunningham, 2009; Huynh, Devos, & Dunbar, 2012; Juang & Alvarez, 2010; Neto, 2010; Paradies et al., 2015; Seaton, Neblett, Upton, Hammond, & Sellers, 2011; Szalacha et al., 2003; Wong, Eccles, & Sameroff, 2003). O estudo das micro-agressões raciais com afroamericanos (Torres, Driscoll, & Burrow, 2010) sugere que estas podem ser agregadas em três dimensões: (1) ser tratado como um cidadão de segunda classe ou a presunção de criminalidade (e.g., ser mandado parar sem evidências de alguma irregularidade) - que diz respeito a uma dimensão jurídica; (2) ter a sua capacidade pessoal subestimada (e.g., ser esperado que o seu trabalho seja inferior) - relacionado sobretudo com realizações académicas; e (3) ser alvo de isolamento cultural ou racial (e.g., ser evitado ou observar que os outros reagem com medo) - ligado à vida social. Desta forma, a discriminação racial afeta as pessoas de forma mais declarada ou mais subtil e manifesta-se em diversos contextos (e.g., a nível institucional e interpessoal), criando obstáculos em diversas atividades relevantes da vida quotidiana.

Neste sentido, as diferenças sociais observadas entre pessoas brancas e negras são consideradas como consequências diretas e indiretas do racismo nas suas diferentes

apenas mantidos pela sua validade, mas sim pela força que ganham nas negociações sociais, pela função simbólica que desempenham nas atividades (Gergen, 1985). Neste caso a consequência direta da ideologia de raça apresentada é a manutenção do preconceito racial que legitimou (e continua a legitimar) as práticas discriminatórias que ocorreram ao longo da história (e na atualidade) que postulam a inferiorização e rejeição do outro (negro).

2 O conceito de etnia refere-se a características culturais (e.g., como o país/região de origem, a língua, a

religião, ou os valores sociais) (Coll et al., 1996). Ainda que raça e etnia designem pertenças identitárias (categorizações) distintas, frequentemente a inclusão de uma pessoa num grupo está associada à sua pertença a outro grupo, ou seja, estas coocorrem. Assim, quando se abordam as diferenças em grupos, o termo raça tem-se deixado de utilizar para se falar em grupos étnicos. Independentemente de a cultura não ser algo estático, as atitudes da população não académica, da sociedade em geral, revelam uma cristalização destas diferenças culturais. Observa-se que há uma essencialização das pessoas, traduzindo- se na perceção de que as culturas são incompatíveis ou imutáveis, e que a cultura branca, ocidental, é superior (Howarth, 2009; Vala & Lima, 2002). Vários problemas se colocam com o uso de categorizações (Gillespie, Howarth, & Cornish, 2012), nomeadamente o de posicionamento social. A forma como os investigadores designam determinados grupo de pessoas condiciona a forma como estas são percebidas e, consequentemente, as práticas sociais a eles associadas. Por exemplo, falar de “imigrantes ilegais” ou falar de “refugiados” apela a conceções diferentes e, consequentemente, a reações comportamentais diferentes. Deste modo, sublinhamos que o termo raça usado neste trabalho não reflete uma perspetiva essencialista da diversidade humana, considerando-se antes que esta nomenclatura corresponde a um fenómeno socialmente construído. Reconhecemos que o uso desta categorização reforçou a perspetiva essencialista e poderá ainda continuar a fazê-lo (Smedley & Smedley, 2005). Não obstante, consideramos que não poderemos abdicar deste conceito uma vez que apenas pelo mapeamento destas identidades o racismo pode ser tornado visível e diminuído.

manifestações - institucional, de contacto interpessoal ou internalizado (Ford & Kelly, 2005). Como vetor de oposição ao racismo desenvolveu-se na sociedade a norma social antirracismo, proibindo até legalmente a discriminação racial (Givens, 2007). No entanto, observa-se que os níveis de preconceito racial continuam elevados e este começou a assumir manifestações mais encobertas, mais subtis, do que nas décadas anteriores (Vala & Lima, 2002). Assim, na presente sociedade individualizada (nas culturas ocidentais), onde a meritocracia é valorizada, as diferenças sociais observadas são muitas vezes entendidas como uma consequência da “inferioridade” de determinados grupos sociais. Esta é a manifestação do preconceito racial moderno, que encontra mais suporte em enfatizar as diferenças culturais (“étnicas”) de cada povo do que em afirmar diferenças biológicas (Vala & Lima, 2002; Vala, Pereira, & Costa‐Lopes, 2009). A persistência do racismo é inegável e o preconceito encontra-se muito associada ao tom de pele (Neto & Paiva, 1998). Assim, considerando que ao longo desta investigação a identificação étnica dos participantes passou por incluir características fenotípicas, nomeadamente a cor da pele, doravante iremos designar os jovens com ascendência imigrante e africana de jovens negros. Mesmo reconhecendo que esta designação poderá reforçar a essencialização da “raça”, a cor de pele é um fator de mobilização do preconceito, assim como também o sotaque ou a fluência linguística (Neto & Paiva, 1998; Neto, 2002), assim iremos utilizar as características fenótipos como fonte de diferencial entre grupos e não as práticas culturais (étnicas).

Os jovens de minorias sexuais – lésbicas, gay ou bissexuais (LGB) constituem o outro grupo social em estudo, pois são alvo do preconceito homofóbico e, frequentemente, vítimas de agressões. A violência que estes sofrem tem sido reportada em contexto escolar, familiar e em outros contextos sociais ao longo da vida (Fedewa & Ahn, 2011; Katz-Wise & Hyde, 2012). Alguns dados portugueses apontam que 42% dos jovens LGB (lésbicas, gay e bissexuais) viveram situações de bullying homofóbico (António, Pinto, Pereira, Farcas, & Moleiro, 2012). A investigação conduzida junto de jovens LGB tem demonstrado o impacto psicológico da violência social (discriminação e bullying). De forma global, esta encontra-se associada a problemas de comportamento internalizados (e.g., depressão e ansiedade) e externalizados (e.g., problemas de disciplina na escola, hiperatividade, consumo de drogas) (Bontempo & D’Augelli, 2002; Espelage, Aragon, Birkett, & Koenig, 2008; Murdock & Bolch, 2005), à internalização de atitudes sociais negativas, ao aumento da sensibilidade à rejeição (Feinstein, Goldfried, & Davila, 2012), a níveis mais baixos de autoestima e de

satisfação com a vida (Russell, Toomey, Ryan, & Diaz, 2014) e a um aumento da ideação e comportamento suicida (Bontempo & D’Augelli, 2002). A violência sofrida reforça ainda o isolamento e a falta de integração em contexto escolar (António et al., 2012; Espelage et al., 2008; Fedewa & Ahn, 2011; Plöderl, Faistauer, & Fartacek, 2010; Saewyc et al., 2009). Os diversos estudos revelam ainda que existe maior risco para a agressão quando os/as jovens manifestam uma expressão de género atípica, i.e., apresentam mais comportamentos tradicionalmente associados ao outro sexo (D’Augelli, Grossman, & Starks, 2008; Toomey, Ryan, Diaz, Card, & Russell, 2010).

Considerando as associações entre a vitimização sofrida por jovens de minorias étnicas e LGB e o pior ajustamento demonstrado, quer a nível interno quer a nível externo, iremos neste estudo focar-nos na violência sofrida enquanto mecanismo de risco para o ajustamento, abordando também possíveis mecanismos de proteção deste risco junto de uma amostra de adolescentes portugueses em que estes grupos estão representados.