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O estigma e a abordagem socioecológica da resiliência

1. E NQUADRAMENTO T EÓRICO

1.7. O estigma e a abordagem socioecológica da resiliência

De acordo com a perspetiva socioecológica defendida por Ungar (2008, 2013) a manifestação da resiliência ocorre de acordo com o contexto cultural, sendo que muitas das estratégias usadas pelos jovens, para lidar com as adversidades, são representativas das oportunidades que o contexto lhes fornece. Por exemplo, poder-se-á observar uma forma de resiliência nos adolescentes que fumam tabaco quando confrontados com situações de violência familiar, ou quando as crianças desenvolvem uma conduta de oposição quando confrontados com abuso sexual, ou quando os adolescentes considerados de elevado risco desobedecem aos pais, numa tentativa de fomentar o seu sentido de competência (Ungar, 2004a, 2004b). A especificidade do contexto justifica também porque é que alguns mecanismos são promotores do ajustamento em determinadas condições e não em outras, observando-se assim uma influência diferencial. Por exemplo, Sameroff, Gutman e Peck (2003, in Fergus & Zimmerman, 2005), observaram que o controlo parental estava relacionado com maior ajustamento social em jovens de nível socioeconómico baixo que viviam em contextos de maior risco, enquanto nos jovens de classe média ou alta esse estilo parental estava associado a maior desajustamento externo. No âmbito do estudo da vitimização entre pares, Bowes, Maughan, Caspi, Moffitt e Arseneault (2010) observaram que apesar de o carinho da mãe e o ambiente familiar positivo ser promotor, de uma forma geral, de melhor ajustamento emocional e comportamental, o seu efeito positivo era maior para as crianças que tinham sofrido bullying. A especificidade do contexto é também revelante no que diz respeito ao estatuto minoritário e/ou estigmatizado. Pearson e Wilkinson (2013), numa amostra representativa dos adolescentes dos EUA, observaram que uma maior perceção de união aos pais estava associada a um menor consumo de álcool por parte das adolescentes. Porém, este efeito protetor era menor nas raparigas lésbicas ou bissexuais, comparativamente às heterossexuais. A união aos pais revelou também estar associada a menores níveis de depressão nos rapazes, só que neste caso a influência protetora exercida era maior para os adolescentes gay ou bissexuais. Este

estudo revelou ainda que realizar atividades de lazer com a família estava associado a menor consumo de drogas e fugas de casa nos rapazes heterossexuais, porém nos jovens gay e bissexuais foi observada uma associação no sentido oposto. Estes são alguns dos estudos que sugerem que um mesmo mecanismo tem um impacto diferencial em função do contexto na qual se manifesta a adversidade, sustentando a abordagem socioecológica da resiliência. Deste modo, quando procuramos explorar o processo de resiliência juntos de jovens de grupos minoritários e discriminados, a adoção de uma perspetiva ecológica no estudo dos mecanismos de risco e de proteção é fulcral, até porque não pode ser esquecido que o estigma e a manifestação do preconceito são indissociáveis do contexto.

No âmbito desta investigação focamo-nos no processo de resiliência de dois grupos de adolescentes que são alvo de estigmatização, fenómeno entendido como desvalorização social com base em um atributo, num determinado contexto (Link & Phelan, 2001; Major & O’Brien, 2005). Desde o trabalho inicial de Goffman (1963/1990) sobre o estigma, tem havido algumas tentativas de categorizar os diferentes tipos de estigma ou pessoas estigmatizadas. Este autor distinguiu entre "abominações do corpo" (e.g, deformidades físicas), "marcas de caráter individual" (e.g., perturbações mentais, desemprego, homossexualidade) e "identidades tribais" (e.g., raça, sexo, religião). No entanto, a investigação tem destacado o efeito de duas dimensões que ajudam a caracterizar os diferentes tipos de estigma, a sua "visibilidade" e "controlabilidade" (Crocker, Major & Steele, 1998; Dovidio et al., 2000). Estas dimensões influenciam não somente as reações cognitivas e emocionais de pessoas que estigmatizam, mas também as ações daqueles que são discriminados. Uma marca estigmatizante visível fornece um esquema primário pelo qual tudo é entendido, uma vez que as pessoas estigmatizadas estão conscientes dos estereótipos que são usados como base de julgamento. Dado que as atribuições à discriminação são frequentemente subjetivas, quando se tem uma marca estigmatizante visível (e.g., a cor da pele ou o peso), a probabilidade de haver ambiguidade nas atribuições aumenta, não havendo certezas se a ação negativa vivida é devida à discriminação ou se tem outras causas plausíveis. Além disso, a perceção da existência desses esquemas pode, por si só, influenciar os pensamentos, sentimentos e comportamentos das pessoas estigmatizadas. Por outro lado, as pessoas com características estigmatizantes não visíveis (e.g., a orientação sexual ou o desemprego) podem tentar esconder esse aspeto no seu quotidiano de forma a se protegerem de atos discriminatórios (Dovidio, et al., 2000). A

perceção da controlabilidade e responsabilidade sobre o atributo estigmatizado são outros aspetos importantes. Estas perceções influenciam as reações das outras pessoas em dimensões fundamentais: ao nível das cognições (por exemplo, na magnitude da culpa atribuída), das emoções (por exemplo, na resposta de raiva ou simpatia) e dos comportamentos (por exemplo, decidir prestar apoio ou não) (Weiner, Perry & Magnusson, 1988; in Dovidio et al., 2000). Além disso, dois tipos de responsabilidade podem ser traçados, uma sobre o controlo do início da condição estigmatizada e outra relacionada com o controlo da sua manutenção ou mudança. Por exemplo, em algumas perspetivas da pobreza, as pessoas podem não ser consideradas responsáveis por terem nascido numa situação desfavorável, mas serem consideradas responsáveis por não a alterarem (Crocker et al., 1998).

Estudos sobre os preconceitos revelam que os preconceitos que estão na base dos diversos tipos de discriminação sofrem influências sociais distintas. Em determinados casos, a norma antipreconceito é promotora de maior moderação na expressão do preconceito, mais precisamente, o preconceito é expresso de forma mais subtil, como é o caso do racismo. Noutros casos, a norma social antipreconceito não parece contribuir muito para a supressão da manifestação do preconceito, como é o caso da homofobia (Monteiro, França, & Rodrigues, 2009; Pereira, Monteiro, & Camino, 2009). Parece que para que a norma social antipreconceito seja eficiente, é necessário que se concretize em relação ao tipo de estigma social específico, uma vez que sem esta especificação o contexto continua a legitimar a manifestação da discriminação. Deste modo, observa-se que a norma social tem alterado a manifestação do preconceito racista, sendo este apenas manifestado quando o contexto o legitima, enquanto a manifestação aberta do preconceito homofóbico ainda não é suprimida pelas normas sociais vigentes em Portugal (Monteiro et al., 2009; Pereira et al., 2009).

No presente trabalho, centramo-nos na análise da vitimação e o ajustamento de grupos alvo de discriminação racista e homofóbica. Estes dois grupos distinguem-se relativamente à concretização das normas antipreconceito e antidiscriminação, uma vez que estas normas já foram interiorizadas relativamente ao racismo, mas quanto à homofobia a internalização é ainda incipiente (Monteiro et al., 2009; Pereira et al., 2009). Os jovens de minorias étnicas/raciais e sexuais distinguem-se também em termos de visibilidade e perceção de controlabilidade do atributo que é estigmatizado. Em relação aos jovens de minorias étnicas e raciais, a cor da pele é um dos principais atributos que dá visibilidade ao estigma, assim como outras características, muitas vezes

associadas à condição de imigrante, tais como a língua ou sotaque, sendo fatores preditores da discriminação percebida (Neto & Paiva, 1998; Neto, 2002). Estes atributos não são passíveis de ser ocultados. Não se pode, como é evidente, argumentar em favor da controlabilidade da identidade racial. Contudo, uma vez que há uma distribuição assimétrica de recursos (educacionais e ocupacionais/salariais) entre pessoas afrodescendentes e as pessoas “brancas”, sendo que as primeiras usualmente estão mais representadas em estratos sociais com condições socioeconómicas inferiores (Dailey, Kasl, Holford, Lewis, & Jones, 2010; Neto, 2010a), devemos ter em consideração que os estereótipos sociais atribuem alguma responsabilidade às pessoas de minorias étnicas pela sua posição social, acusando-as de não estarem comprometidas o suficiente em ascender socialmente, por serem menos inteligentes ou cometerem mais atos ilícitos (Torres et al., 2010). As mesmas crenças prevalecem no contexto português, como corroboram dados de um estudo português que revela que as pessoas ciganas e as pessoas desempregadas figuram entre aquelas pelas quais a discriminação de que são vítimas é considerada mais justificada (Costa, Pereira, Oliveira & Nogueira, 2010).

A orientação sexual minoritária, pelo contrário, é uma característica passível de ser encoberta. Assim, as pessoas que poderiam ser afetadas pelo estigma associado a esta característica podem tentar ocultar esta parte da sua identidade, a fim de se protegerem contra a discriminação. Por outro lado, a homofobia e o heterossexismo estão muitas vezes ligados à perceção de controlabilidade. As pessoas que consideram que a orientação sexual é algo controlável apresentam níveis mais elevados de preconceito contra lésbicas e gays (Gato, Carneiro, & Fontaine, 2011; King, 2001), sendo por isso expectável que estas pessoas ajam de forma discriminatória com maior frequência.

É de realçar que a literatura sugere algumas especificidades na discriminação vivida, nas estratégias de coping usadas e no ajustamento de jovens de minorias étnicas e jovens LGB. Observa-se que os jovens LGB, com receio de reações negativas decorrentes do preconceito social nas suas relações familiares, ocultam a sua orientação sexual de modo a minimizarem a ocorrência de situações de discriminação (D’Augelli, Hershberger, & Pilkington, 1998). A violência familiar com raiz no preconceito, que está ainda associada a um aumento da ideação suicida (Russell, Ryan, Toomey, Diaz, & Sanchez, 2011), não é usualmente observada em jovens de minorias étnicas ou raciais. Adicionalmente, a não-visibilidade da orientação sexual condiciona o processo de identificação com o grupo, mecanismo que a investigação com os jovens de minorias

étnicas revela ser promotor do ajustamento positivo (Smart & Wegner, 2000). Assim, importa perceber em que medida a pertença a diferentes grupos socialmente discriminados se relaciona com vivências particulares de situações socialmente violentas e as especificidades do processo de resiliência em jovens discriminados em função de diferentes tipos de preconceitos.