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3. A atuação política das mulheres: delineamentos teóricos

3.1. Fatores que condicionam a atuação das mulheres no Parlamento

3.1.3. A dominação masculina: o mundo do simbólico

Uma das grandes contribuições de Bourdieu à compreensão dos determinantes e condicionantes das ações humanas diz respeito à aplicação que faz dos conceitos de

habitus e campo para a construção de outra categoria: a da dominação (ou violência simbólica). Para ele, o fenômeno da dominação está impregnado nas estruturas de pensamento de dominados e dominantes e se expressa no próprio corpo por meio da manifestação de seus habitus, sendo este a “força dormente de onde a violência simbólica extrai a sua eficácia”.176

Assim, para que um ato simbólico seja eficaz, é preciso que haja igualdade das categorias de percepção e de avaliação entre os agentes sociais. No caso da dominação, essa igualdade significa ser exercida com a cumplicidade do dominado, na medida em que, para que a dominação se dê, é preciso que o dominado aplique aos atos do dominante as mesmas estruturas de percepção utilizadas pelo dominante. Dessa forma, os dominados sentem como normal o processo de obediência e submissão; eles se sentem dominados por natureza, enquanto os dominantes se sentem assim também de maneira natural. É necessário, portanto, que tenha ocorrido um trabalho anterior, normalmente invisível, que tenha produzido, naqueles submetidos aos atos de imposição, as disposições necessárias para que tenham a sensação de ter de obedecer sem sequer levantar a questão da obediência.

175 SWAIN, Tânia N.; MUNIZ, Diva C. G. Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas. Florianópolis: Ed. Mulheres, Belo Horizonte: PUC Minas, 2005.

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Nesse contexto, o capital simbólico torna-se instrumento indispensável para garantir a existência de relações de dominação. Para Bourdieu, “O capital simbólico é uma propriedade qualquer que, percebida pelos agentes sociais dotados das categorias de percepção e de avaliação que lhes permitem percebê-la, conhecê-la e reconhecê-la, torna- se simbolicamente eficiente, como uma verdadeira força mágica”.177 Ele é, na verdade, o princípio objetivo da violência, que permite solucionar problemas aparentemente insolúveis como a dominação ao mesmo tempo sofrida sob pressão e aceita por meio do reconhecimento ou obediência.

Segundo o autor, as relações sociais entre os sexos são, portanto, orientadas segundo a lógica da dominação masculina, situada no campo da dominação simbólica. Sendo assim, tais relações são socialmente instituídas e engendram o mundo social e simbólico com os referenciais de masculinidade e feminilidade compondo dimensões do

habitus e da dominação simbólica.

As aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para inverter a relação entre as causas e os efeitos e fazer ver uma construção social naturalizada (os ‘gêneros’ como habitus sexuados), como o fundamento in natura da arbitrária divisão que está no princípio não só da realidade como também da representação da realidade.178

O princípio de perpetuação da dominação masculina não reside, porém, principal ou exclusivamente no domínio da unidade doméstica, mas em instâncias como a escola ou o Estado, lugares de elaboração, imposição e reprodução dos princípios de dominação que se exercem dentro mesmo do universo mais privado. Assim, o universo político é também um lócus de reprodução dessa relação de dominação, mas de forma privilegiada, pois é um espaço tradicionalmente visto como masculino e que denota uma grande possibilidade de exercício do poder, o que o faz ser palco de disputas constantes pela sua posse.

A divisão entre os sexos parece estar na “ordem das coisas”, ou seja, parece ser algo tão natural que chega a ser inevitável. Ao mesmo tempo em que está presente como estado objetivado nas coisas, também se encontra em estado incorporado nos corpos e nos

habitus dos agentes, funcionando como esquemas de percepção, pensamento e ação. Essa

177 BOURDIEU, 1996, p. 170. 178Id., 2003, p. 9.

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concordância entre estruturas objetivas e estruturas cognitivas leva à naturalização e faz com que “[...] o mundo social e suas arbitrárias divisões, a começar pela divisão socialmente construída entre os sexos (passem a ser vistas como) naturais, evidentes, e adquire, assim, todo um reconhecimento de legitimação”.179

A dominação masculina tem sua força expressa no fato de não necessitar de justificação, ou seja, a visão androcêntrica coloca-se no mundo como neutra e não tem necessidade de legitimar-se mediante discursos, o que caracteriza o mundo simbólico. A ordem social, portanto, funciona como imensa máquina simbólica que ratifica a dominação masculina180 sobre a qual se fundamenta por meio da divisão sexual dos trabalhos, que coloca mulheres no privado, longe da esfera política; ou por meio da divisão dos espaços até mesmo dentro da casa, onde cabem aos homens os salões e às mulheres a cozinha ou a lavanderia. As mulheres foram, e ainda são, excluídas de todos os lugares públicos nos quais se realizam os jogos comumente considerados os mais sérios da existência humana. Esse mundo social é, assim, orientado segundo as idéias de gênero, ultrapassando a justificativa de que características biológicas distintas de homens e mulheres são suficientes para colocá-los em espaços distintos na vida social. As construções sociais feitas sobre esse natural são, nesse momento, mais importantes para justificar a separação.

A forma natural como a dominação masculina é percebida é destacada por Welzer- Lang:

Não somente homens e mulheres não percebem da mesma maneira os fenômenos, mas, sobretudo não percebem que o conjunto social está dividido segundo o mesmo simbólico que atribui aos homens e ao masculino as funções nobres e às mulheres e ao feminino as tarefas e funções afetadas de pouco valor. Esta divisão do mundo mantém-se e é regulada por violências: violências múltiplas e variadas as quais tendem a preservar os poderes que se atribuem coletivamente e individualmente os homens às custas das mulheres.181

A violência (dominação) simbólica é, desse modo, aquela suave, invisível à suas próprias vítimas e que pode se traduzir em uma coerção que se estabelece por meio da

179 BOURDIEU, 2003, p. 17.

180 Bourdieu (2003, p. 33) destaca que “A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada”.

181 WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, jul/dez 2001, p. 461.

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adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao seu dominante sempre que se utiliza de instrumentos partilhados entre eles para pensar sobre si mesmo, o dominante ou as relações aí estabelecidas. Ao se utilizar desses instrumentos, que se constituem na forma incorporada da estrutura da relação de dominação, a relação entre eles estabelecida passa a ser vista como natural; é a idéia do “é mais forte do que eu”. Dito em outras palavras, a adesão involuntária dada pelo dominado ao dominante se dará sempre que “[...] os esquemas por ele empregados (pelo dominado) no intuito de perceber e de se apreciar, ou para perceber e apropriar os dominantes (masculino/feminino; branco/negro) constituem o produto da incorporação das classificações assim naturalizadas, cujo produto é o seu ser social”.182

Assim, a obediência que dominados concedem aos seus dominantes não pode ser vista como uma submissão – ou coerção – mecânica a uma força nem como um consentimento consciente a uma ordem. Essa obediência é involuntária, no sentido de que não é planejada, é fruto do acordo entre habitus predispostos a obedecerem às chamadas à ordem e às estruturas objetivas no mundo no qual se inserem. A violência simbólica é capaz de transformar atos de dominação e submissão em relações afetivas, de transformar poder em carisma ou em um encanto capaz de suscitar um encantamento afetivo. As relações de dominação são, portanto, ao mesmo tempo espontâneas e extorquidas.

Desse modo, a questão da legitimidade da dominação jamais se coloca de fato na existência ordinária. Fora das situações de crise a questão da legitimidade da dominação e da ordem aí estabelecida nem mesmo chega a ser questionada. Tais situações, porém, só se manifestam quando os esquemas de percepção aplicados à relação são questionados. De fato, a teoria da violência simbólica requer uma teoria da produção da crença, um trabalho de socialização, necessário para produzir agentes dotados de esquemas de percepção e de avaliação que os farão obedecer sem questionar. Considerando-se que essas estruturas de percepção e avaliação são produtos da incorporação de estruturas objetivas, é de se esperar que a estrutura do capital simbólico apresente grande estabilidade. Assim, as “revoluções ou crises simbólicas” supõem uma revolução mais ou menos radical dos instrumentos de conhecimento e das categorias de percepção. Por se apoiar em uma crença, apenas a crise ou a reprodução dessa crença serão capazes de levar a uma crise ou reprodução da economia dos bens simbólicos. A crise traduz-se em uma ruptura do acordo entre as

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estruturas mentais e as estruturas objetivas, mas não resulta de simples tomada de consciência, pois a extraordinária inércia resultante da inscrição das estruturas sociais nos corpos faz que qualquer movimento para libertar-se do processo de dominação deva ser acompanhado de mudanças nessas estruturas.

É ilusório crer que a violência simbólica possa ser vencida apenas com as armas da consciência e da vontade, pois os efeitos e as condições de sua eficácia estão duradouramente inscritos no mais íntimo dos corpos e das mentes, sob a forma de predisposições ou de habitus. Tal ceticismo é explicitado por Bourdieu ao destacar que a alteração desses habitus não é tarefa trivial. Marcados no inconsciente dos indivíduos, sua modificação requer mais do que simples tomada de consciência da posição ou da dominação a que os atores sociais estão submetidos; requer uma mudança nas disposições por eles incorporadas, algo certamente muito mais difícil e trabalhoso. 183 Além disso, a alteração do quadro de dominação requer uma mudança de consciência não apenas dos dominados, mas, também, dos dominantes. A divisão sexual que assegura a dominação masculina está fortemente presente nos habitus de cada indivíduo, dominado ou dominante, e de tal forma que pareça algo natural.

De acordo com Arán,

Apesar da importância de o movimento feminista ter introduzido no debate político aquilo que permanecia na ordem do privado, o seu limite está em reproduzir essa mesma lógica de poder. Assim, somente uma ação política que leve em conta os efeitos objetivos e subjetivos da dominação, considerando que dominantes e dominados fazem parte de um mesmo sistema, poderia provocar um ‘perecimento’ sócio-simbólico da dominação masculina”. A conquista da igualdade entre os sexos passa, portanto, pela descoberta daquilo que Arán chama de “alavanca que possibilite saltar desses dualismos que estão impregnados tanto no sistema de pensamentos como nas organizações sociais.184

A autora, porém, é cética quanto à possibilidade desse “salto”, referindo-se, então, a um poder improvável das mulheres. Se assumirmos isso como verdade, então podemos entender porque, mesmo se pressões externas são abolidas e as liberdades formais são adquiridas (como o direto ao voto, à educação), a auto-exclusão e a vocação tomam o lugar

183 Saffioti (2004) também expressa sua preocupação, afirmando que "[o conceito de habitus] incomoda por sua quase absoluta permanência, ou seja, quase impossibilidade de mudar".

184 ARÁN, Márcia. Os destinos da diferença sexual na cultura contemporânea. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 11, n. 2, p. 399-422, jul/dez 2003, p. 411.

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da exclusão expressa. Encontra-se, aí, o fundamento da baixa participação das mulheres na vida pública. Mesmo extintas as barreiras formais, as mulheres ainda participam de forma muito tímida da esfera política, dos sindicatos, partidos ou de cargos eletivos. Muitas vezes, as cotas de 30% de candidaturas femininas não são preenchidas por falta de interessadas em participar. Esse fato tem levado muitos estudiosos, pesquisadores e militantes de movimentos sociais a organizarem oficinas, cursos e outros eventos que sensibilizem e despertem no público feminino o interesse por um espaço que foi tradicionalmente masculino, mas que não necessariamente o precisa ser para sempre.

Muitas vezes se argumenta que as mulheres, por não romperem de forma imediata e definitiva com essa dominação, são as responsáveis pela situação de submissão em que se encontram, porque escolhem adotar práticas submissas (como recolher-se à participação em esferas políticas menos “poderosas”) ou mesmo porque gostam dessa dominação. No entanto, é fundamental destacar não só que essas tendências à submissão resultam das estruturas objetivas, mas também que essas estruturas só devem sua eficácia aos mecanismos que desencadeiam e que contribuem para sua reprodução. O poder simbólico, portanto, não pode ser exercido sem a cumplicidade do dominado, que só se subordina a esse poder porque o constrói como tal.

O transformar das disposições não pode ocorrer sem uma mudança anterior ou concomitante nas estruturas objetivas das quais são o produto e às quais podem sobreviver. Só se pode chegar à ruptura da relação de cumplicidade entre dominados e dominantes a partir da transformação radical das condições sociais de produção das tendências que levam os dominados a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes.

No entanto, alguns fatores têm apontado, hoje em dia, para certa mudança nas relações de dominação entre homens e mulheres. A maior, sem dúvida, reside no fato de a dominação masculina deixar de ser algo indiscutível, o que é uma característica essencial para que funcione sob a égide do simbólico. Isso é fruto do processo de tomada de consciência (não suficiente, mas necessário, para desencadear a mudança) provocado pela intensa atuação dos movimentos feministas e que colocaram a dominação como dado a ser justificado ou defendido. Importante também foi o aumento da presença feminina nos

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bancos escolares, bem como a entrada massiva de mulheres no mercado de trabalho e a conseqüente possibilidade de autonomia econômica.