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4. Perfil e trajetória política das deputadas no pós-Constituinte

4.2. Quem são as deputadas do pós-Constituinte

4.2.2. Perfil das deputadas por nível de escolaridade e profissão

Alcançar o Parlamento é “privilégio” de muito poucos, o que expressa “uma das faces do tradicional elitismo vigente na história política brasileira, que, embora não lhe seja exclusivo, redunda numa enorme distância a separar representantes e representados”. 276 Tal elitismo fica ainda mais evidente quando se analisa o perfil educacional das mulheres que se elegeram ao longo de todos esses anos.

Entre as 76 deputadas, aproximadamente 83% possui nível superior completo (ver tabela 4). Esse comportamento não difere daquele apresentado para todo o Congresso Nacional, como mostra Messenberg (2002) em seu estudo sobre a elite parlamentar e o Congresso no pós-Constituinte. O alto nível educacional é, portanto, quase um pré- requisito para a entrada nesse espaço.

Ao longo das legislaturas analisadas há um ligeiro crescimento na proporção de deputadas com ensino superior completo, que passa de 85%, na 48a legislatura, para 89%, na 51a, e chega a 93% do total das mulheres em 1995. Esse elevado nível educacional limita bastante as possibilidades de ascensão aos cargos no Parlamento, tendo-se em vista que apenas 10,8% da população brasileira e 11,2% da feminina, com 25 anos ou mais de idade, concluiu um curso superior. 277 Apenas uma deputada conseguiu se eleger sem o ensino fundamental completo. Nesse caso, foi determinante para sua ascensão o envolvimento na política informal, via movimentos sociais, especialmente o de mulheres agricultoras.

276MESSENBERG, 2002, p. 60.

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Da inserção na análise do tipo de capital político predominante na trajetória dessas mulheres, é possível notar que, para qualquer um dos grupos, a maior parte das deputadas possui nível superior completo. Este é ligeiramente mais importante para aquelas que construíram uma trajetória via ocupação de cargos, o que se explica pelo fato de que convertem um capital técnico para tanto, obtido, em geral, nos bancos universitários. Mas para aquelas oriundas de outros campos que não o político, o peso da escolaridade torna-se menor. O grande fator distintivo dessas mulheres é a popularidade que obtêm a partir de sua atuação em outros espaços, especialmente o artístico, o que torna o grau de instrução um atributo menos relevante em comparação às demais categorias nas quais se enquadram (ver Tabela 6).

Tabela 6

Distribuição das deputadas* por grau de instrução segundo tipo de capital político. Brasil, 1987 a 2002

Grau de Instrução Superior

Completo

Superior

Incompleto Médio Completo

Fundamental Incompleto Tipo de Capital Político No Absoluto (%) No Absoluto (%) No Absoluto (%) No Absoluto (%) Total (%) Movimentos 19 82,6 2 8,7 1 4,3 1 4,3 100,0 Ocupação de cargos 12 85,7 - - 2 14,3 - - 100,0 Familiar 26 83,9 - - 5 16,1 - - 100,0 Outros campos 6 75,0 - 2 25,0 - - 100,0 Total 63 82,9 2 2,6 10 13,2 1 1,3 100,0

Fonte: Pinheiro, Luana. Vozes Femininas na Política. Brasília, 2006.

Nota: * O total de deputadas refere-se às 76 eleitas, tendo sido desconsideradas as duplas contagens resultantes de processos de reeleição.

É na análise da profissão278 anteriormente exercida que se encontra um importante fator de orientação da atuação parlamentar. Seguindo a tradicional divisão sexual das tarefas e do conhecimento, a maior parte das deputadas dedicava-se ao magistério e à pedagogia antes de entrar na vida política. Em segundo lugar aparecem as advogadas e, em seguida, as empresárias e as profissionais da área de saúde (ver Tabela 7).

278 Muitas deputadas informaram ter mais de uma profissão. Nesses casos, foi escolhida aquela que lhe garantia a sobrevivência cotidiana de maneira mais decisiva.

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O perfil profissional das deputadas difere significativamente daquele observado para o Congresso Nacional. Pode-se, a partir dessa comparação, inferir sobre as desigualdades entre homens e mulheres, uma vez que a quase totalidade do Congresso é masculina. Nesse caso, o predomínio é do bacharelismo e do empresariado que, juntos, respondem por cerca de 40% do total de parlamentares. Os professores equivalem a pouco menos de 6% do universo e as ocupações de “ruralista” e “engenheiro”, que sequer aparecem no elenco de atividades profissionais das deputadas, ocupam, respectivamente, a terceira e a quarta posição no ordenamento do Congresso Nacional. 279

Tabela 7

Distribuição das deputadas* por profissão segundo tipo de capital político Brasil, 1987 a 2002

(Em %)

Tipo de Capital Político Profissão Movimentos Ocupação de Cargos Familiar Outros Campos Total Advogada 4,3 21,5 16,1 12,5 13,2 Empresária - - 16,1 25,0 9,2 Médica/Farmacêutica/ Enfermeira 17,4 7,1 6,5 - 9,2 Jornalista 4,3 7,1 9,7 - 6,6 Professora/Pedagoga 35,0 35,7 25,8 12,5 28,9 Servidora Pública 4,3 - 12,9 0,0 6,6 Economista 4,3 7,1 3,2 - 3,9 Assessora Política - 7,1 3,2 - 2,6 Atriz/Radialista - - - 37,5 3,9 Assistente Social 17,4 7,1 3,2 - 7,9 Outras 13,0 7,1 3,2 12,5 7,9 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Pinheiro, Luana. Vozes Femininas na Política. Brasília, 2006.

Nota: * O total de deputadas refere-se às 76 eleitas, tendo sido desconsideradas as duplas contagens resultantes de processos de reeleição.

O predomínio de profissionais oriundos da área do direito não é uma característica da vida política recente do país. De fato, desde o Império pode-se observar a expressiva presença, na elite política, de profissionais ligados a esse campo do saber. Também não é uma realidade tipicamente brasileira, pois Weber já apontava que, para as sociedades ocidentais em geral, a participação dos advogados no campo político não podia ser

279 Todas as referências a respeito da morfologia do Congresso Nacional foram retiradas de Messenberg, 2002.

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menosprezada. Segundo ele, “A natureza das exigências feitas hoje à estrutura partidária faz com que em todos os parlamentos e partidos democratizados, uma profissão exerça um papel preponderante ao se recrutar parlamentares: a de advogado”280. Isso porque, além de contarem com o conhecimento oriundo do Direito e um habitus típico e bastante adequado ao exercício político, aos advogados é mais fácil a passagem do exercício profissional para a política profissional, considerando-se o trabalho a ser realizado no Parlamento. 281

As “facilidades” e a adequação que o bacharelismo proporciona, porém, têm um peso significativamente maior para os deputados do que para suas colegas do sexo feminino. Ademais, o exercício profissional do Direito confere um status simbólico ao parlamentar que, em função de uma formação que privilegia a retórica e o conhecimento profundo da legislação, estaria mais habituado e preparado para a atividade política. Contribui, assim, para a formação de capital político, uma vez que o seu maior acúmulo depende, entre outros fatores, de como os pares se vêem e se valorizam.

Nesse sentido, a construção das desigualdades de gênero e da segregação vertical e horizontal percebida no Parlamento começa a ser delineada já no momento da formação acadêmica e, posteriormente, na escolha profissional. O cenário ainda vigente na sociedade brasileira indica que, em 2002, nos cursos das áreas de educação, saúde e ciências sociais, o predomínio de mulheres era amplo (76%, 70% e 68%, respectivamente); já nas áreas de engenharia e ciências, matemática e computação havia apenas 27% e 36% de mulheres, respectivamente, em seu corpo discente.282 De maneira diversa, nos cursos de direito a situação, hoje, é de igualdade; metade das vagas disponíveis nas universidades e faculdades é ocupada por mulheres. Esse quadro, porém, é recente; durante muito tempo esses cursos foram redutos quase exclusivos dos homens. A maior abertura de tais cursos para as mulheres, ocorrida nos últimos anos, aponta para uma possível melhora, em anos próximos, na presença de mulheres no Parlamento com essa formação.

Tal divisão se perpetua para além dos bancos universitários e reproduz uma divisão sexual do trabalho que, diferentemente da divisão tradicional dos séculos anteriores

280 WEBER, 1993, p. 114.

281 Esse trabalho envolve o uso constante da oratória e a habilidade de trabalhar com a legislação brasileira, ambas características amplamente desenvolvidas e aperfeiçoadas nos cursos de Direito.

282 INSTITUTO de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: relatório nacional de acompanhamento. Brasília: Ipea, 2005, p. 73.

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(mulher no espaço privado e homem no espaço público), se reinventa e encontra novos caminhos para se manifestar. Na contemporaneidade, os limites do público e do privado são bem mais fluidos, o que não impede uma separação profissional na qual, às mulheres, cabem aquelas profissões que representam uma extensão do mundo privado para o público. Desse modo, a divisão sexual do trabalho reserva às mulheres profissões relacionadas às capacidades e virtudes da esfera doméstica. As profissões mais “femininas” mantêm os estereótipos da feminilidade e da maternalidade.

Essa tradicional divisão sexual faz que as mulheres, independentemente do tipo de capital político que possuem, estejam concentradas nas profissões ligadas à área educacional, atuando como professoras ou pedagogas. A exceção fica por conta das deputadas que converteram capital de outros campos, cuja maioria é de atrizes e radialistas, como se podia esperar (ver Tabela 7).

Algumas diferenças importantes podem ser notadas em relação ao tipo de capital político. Uma primeira diz respeito à proporção de mulheres advogadas. Para aquelas originadas do movimento social, esta não é uma profissão de peso. De fato, neste caso o envolvimento com a política se dá, em muitos casos, por meio dos movimentos sindicais e sociais de base, o que faz que a atuação como professora, assistente social ou profissional de saúde (médica, enfermeira, farmacêutica) envolva quase 70% do total. Por outro lado, a advocacia se configura na segunda profissão mais presente entre as deputadas que possuem um saber técnico especializado e entre as oriundas de famílias políticas. O domínio de direito, de economia e de política (atividades de peso para as mulheres que ocuparam cargos públicos e políticos) se constitui em valioso atributo de reconhecimento, sendo mais facilmente convertido em capital próprio do campo político.

Para parcela significativa do universo das deputadas é possível, de fato, falar em uma escolha profissional, no sentido de que algumas alternativas são apresentadas a essas mulheres e elas decidem entrem essa “cesta de opções”. Tal escolha, porém, não tem uma conotação naturalizadora. Parte-se do pressuposto de que tais preferências são construídas histórica e culturalmente, a partir de processos de socialização e de construção de papéis de gênero que delimitam bem as esferas a que cada grupo social tem acesso.

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Essa “escolha condicionada” pôde ser confirmada a partir da fala de algumas deputadas entrevistadas, que, ao serem questionadas sobre a motivação para a escolha da atividade profissional, destacaram:

Eu fui preparada [para ser professora]. Na minha época, meus pais educavam os filhos para serem professor, então no meu município onde eu comecei a trabalhar, [...] eu fui a primeira professora que tinha nível de normalista na época. Então a gente era levado por isso, pra ser professora. Mas agora eu gosto, gostei, trabalhei a vida inteira, sou aposentada, e sempre gostei da minha profissão de professora, não me arrependi de ter estudado pra ser professora (Deputada federal – PFL).

Eu nunca achei que eu tinha mesmo vocação pra ser professora, né? Nunca. “Ah, quero ser professora”. [...] Mas no ensino médio que eu fiz, na mesma escola, que era uma escola boa, tinha o ensino, chamado na época, curso normal, pra formação de professoras e eu fiz o curso normal, e o que a minha região oferecia. [...] Me formei [...] e quase que imediatamente eu fui pra.... inclusive até como, como é que se diz, é uma forma de começar a trabalhar imediatamente (Deputada federal – PT).

Deveu-se salientar que a percepção de que determinadas opções profissionais são alternativas únicas é, muitas vezes, permeada também por concepções de gênero, de qual é a função que se atribui à mulher e do que dela se espera na sociedade. Nota-se também um raciocínio mais estratégico que pode, em certa medida, orientar a atuação feminina no Parlamento, pois, uma vez que se reconhece que as oportunidades profissionais estão mais abertas às mulheres nas áreas tradicionais, como o magistério, então a orientação para esse tipo de formação pode ser incentivada.

Para um outro grupo de deputadas, porém, a atividade profissional não é exatamente uma escolha, mas constitui-se em uma resposta às contingências que lhes são apresentadas em suas vidas. Explicitam-se, assim, a multiplicidade de identidades que compõem cada indivíduo. Ao lado da condição de mulher, aparecem outros fatores que determinam as escolhas e trajetórias desse grupo – como a classe social – e que, por vezes, atropelam os reais anseios e preferências que possuem.

O que motivou [a escolha profissional]? Acho que não teve... nem foi questão de motivação, foi questão de realidade social. Meus avós, meus bisavós, são trabalhadores rurais, os meus pais.trabalhadores rurais, eu nasci trabalhando na

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roça, [...] acho que eu nasci já com a enxada na mão. Então não teve opção, foi uma questão social do meio que eu vivia. [...] Mas eu tinha um grande sonho, na época quando era menina de dez, onze anos, eu admirava o conhecimento, meu sonho era

ser educadora, ser professora, né? Mas situações de origem, é, cultural... E minha

família era muito pobre, eu continuei trabalhando na roça por não poder estudar também (Deputada federal – PT).