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A dotação orçamentária do Departamento de Cultura

CAPÍTULO 2 – A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA CULTURAL PARA

2.1 O Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura de São Paulo

2.1.5 A dotação orçamentária do Departamento de Cultura

Outra questão importante a ser apresentada sobre o Departamento de Cultura diz respeito à fonte de recursos para realizar as diversas mudanças e propostas que a sua política cultural propunha. O Departamento de Cultura dispôs de um orçamento de 4.932:600$000. O que possibilitou a utilização desse valor na época, considerado alto para a administração pública, foi o uso de dois artigos constitucionais que vincularam a arrecadação de impostos da Prefeitura às atividades do Departamento de Cultura. O artigo 156 da Constituição Federal de 1934 apresentava que:

Art. 156 – A União e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento, da renda resultante dos impostos na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos. (BRASIL, 1934)

Esse artigo foi replicado na Constituição Estadual sob o número 82, assim como sintetizado na lei orgânica do município, no artigo 59, que dispunha que 10% dos impostos deveriam ser empregados no desenvolvimento e na manutenção dos sistemas educativos. Segundo o prefeito Fábio Prado: “Quer melhor sistema educativo do que o Departamento de Cultura? [...] Solicitei então pareceres de alguns juristas, que foram unânimes em reforçar a opinião da Prefeitura” (O Estado de S. Paulo, 5 mar. 1936, p. 4). A aplicação desses dispositivos legais surtiu dúvidas quando da sua aplicação, mas o prefeito obteve pareceres jurídicos que afirmaram a possibilidade do uso dos recursos da Prefeitura pelo Departamento de Cultura. A preocupação com o orçamento é fundamental dentro do conceito das políticas culturais, uma vez que para a execução de suas atividades são necessários recursos financeiros. Dessa forma, intervenções por

MILLER; YÚDICE, 2004) foram realizadas pelo prefeito Fábio Prado, que se mostrou hábil com relação às possibilidades jurídicas para fazer com que o Departamento de Cultura fosse instalado e tivesse um orçamento à frente de suas propostas.

Na mesma entrevista concedida pelo prefeito ao jornal O Estado de S. Paulo sobre o orçamento, ele disse que poderia utilizar de outro recurso para obter mais 1% para o Departamento, referente ao artigo 141 da Constituição Federal, artigo 80 da Constituição Estadual. Além disso, Fábio Prado expôs que Mário de Andrade solicitou orçamentos ainda maiores para a Prefeitura tendo em vista que o prefeito realizaria cortes (O Estado de S. Paulo, 5 mar. 1936, p. 4). Mesmo com os cortes realizados, cabe destacar a perícia jurídica que o prefeito desenvolveu para fazer com que o Departamento de Cultura tivesse um bom orçamento para a realização de suas atividades. Aqui podemos aproximar tal discussão ao campo de possibilidades

estratégicas (CERTEAU, 1995; BARBALHO, 2008) presente em uma política cultural.

O prefeito Fábio Prado soube bem interpretar os artigos da Constituição Federal para consubstanciar o Departamento de Cultura. Os pareceres jurídicos com relação ao uso do orçamento demonstram claramente essa análise das possibilidades e a obtenção dos recursos.

Da mesma forma, vale pensar que a utilização dos recursos orçamentários destinados à educação, feita pelo prefeito em conjunto com as propostas do Departamento de Cultura, traz para discussão qual o conceito de cultura os idealizadores do projeto tinham em sua política cultural. O que podemos constatar, tendo como respaldo a entrevista do prefeito Fábio Prado ao jornal O Estado de S. Paulo, em 5 de março de 1936, é que o Departamento de Cultura tinha uma proposta bastante ampla com relação ao conceito de cultura, utilizada para as atividades com fins educacionais, bem como na realização de projetos que visavam resgatar os modos de vida das populações do interior do Brasil, os registros dos cantos e das festas folclóricas que foram iniciados pela Prefeitura.

Fábio Prado, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, disse que foi a partir do Departamento de Cultura que escolas, museus e institutos passaram a figurar nos orçamentos com verbas necessárias (O Estado de S. Paulo, 3 mar. 1936, p. 5). Esse dispositivo foi conseguido devido ao entendimento jurídico que fez com que parte da arrecadação de impostos, direcionada para a educação, também fosse compartilhada com o Departamento de Cultura. O que podemos inferir desse momento é que o

aumento da dotação orçamentária (REIS, 2011) significa, consequentemente, uma maior centralidade da cultura na política. Com isso, constatamos que a política cultural proposta pelo Departamento de Cultura tinha por objetivo corrigir ou modificar um

processo em curso (CERTEAU, 1995) e que estava presente a busca por uma transformação social (GARCÍA CANCLINI, 1987). O olhar sobre o panorama político

da época demonstra que estava em jogo uma disputa dos poderes do estado e da Prefeitura de São Paulo frente ao governo federal. Nessa contenda, a formação de uma identidade cultural paulista tornou-se alvo de um projeto embrionário para uma possível gestão nacional em contraponto ao que estava sendo gestado pelo governo federal. Segundo Simon Schwartzman, em “Tempos de Capanema”:

No projeto político de construção do Estado Nacional há um lugar de destaque para a pedagogia que deveria ter como meta primordial a juventude. Ao Estado caberia a responsabilidade de tutelar a juventude, modelando seu pensamento, ajustando-a ao novo ambiente político, preparando-a, enfim, para a convivência a ser estimulada no Estado totalitário. (SCHWARTZMAN, 1984, p. 86)

No projeto da Biblioteca Infantil do Departamento de Cultura – que exploraremos com maiores detalhes a seguir – vemos uma forte interferência das atividades relativas à exaltação do espírito de civilidade paulista em crianças e jovens. Dessa forma, constata-se que a política cultural do Departamento de Cultura se coloca nesse momento como algo que se contrapõe ao processo em curso na construção de uma identidade nacional que estava sendo gestada pelo governo federal. Os desdobramentos desse embate têm como resultado a demissão de Mário de Andrade da chefia do Departamento de Cultura e os cortes de orçamento, com as verbas sendo destinadas a outras áreas.

Assim, uma parte considerável do orçamento municipal na gestão do prefeito Fábio Prado foi utilizada pelo Departamento de Cultura, a partir do respaldo jurídico de que as atividades realizadas tinham uma preocupação educacional. No entanto, como já vimos ao longo das exposições sobre as questões políticas que envolvem a formação desse Departamento, bem com a questão da aproximação entre o conceito de cultura e o de educação, podemos inferir que o fator jurídico também concede respaldo legal às ações que foram pensadas por seus dirigentes. Dessa forma, é um jogo de mão dupla, no qual são encontradas brechas na lei para afirmar a possibilidade de uso dos recursos

pelo Departamento de Cultura, bem como ele é respaldado por meio jurídico para colocar em práticas suas ações e prioridades desenhadas na gestão. Interessante notar como Paulo Duarte ressalta essa habilidade administrativo-financeira do prefeito Fábio Prado, vejamos:

Ele entendia bem de administração, de finanças, de organização, mas eu entendia de política, de Direito, e também de uma parte cultural que ele julgava indispensável da administração pública, ainda que num município. (DUARTE, 1974, p. 167)

Também, é possível identificar que o prefeito soube adaptar a sua gestão aos dispositivos legais de que dispunha. Dessa forma, a política da Prefeitura moldou, mas também foi moldada por recursos legais disponíveis na época. O questionamento a ser feito é se na gestão do prefeito Prestes Maia – posterior à gestão de Fábio Prado – as prioridades desenhadas pela gestão foram alteradas, uma vez que o Departamento sofreu cortes no orçamento. Há registros em entrevista com Rubens Borba de Moraes aos alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) de que ele vetou orçamentos devido a um enxugamento das receitas (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1972). Também, que elas foram destinadas a outros setores.

Outra questão que precisa ser mais bem discutida é a utilização desses recursos da educação pelo Departamento de Cultura. A Constituição de 1934 foi fortemente influenciada pela constituinte formada em 1933, decorrente dos problemas políticos enfrentados pelo governo federal com as revoluções de 1930 e 1932. Na assembleia constituinte os paulistas elegeram um grande número de membros de sua bancada. Com isso, como exposto por Elisabeth Abdanur (1992, p. 14) “ [...] os ‘paulistas’ firmaram um acordo com o governo de Getúlio Vargas em troca de preservação de seus principais interesses”. O art. 156 da Constituição Federal de 1934, que trata do ensino no país, não aparece nas versões anteriores da Carta Magna brasileira. Tal artigo foi proposto na Constituição por Raul Jobin Bittencourt,10 residente no Rio Grande do Sul, médico que se dedicou à educação. Republicano liberal, Raul Jobin não tinha vínculos com o Partido Democrático, nem com o PRP. Dessa forma, constatamos que o governador e o

10 Segundo Raul Jobin Bittencourt: “Nenhum povo, por ter abundante riqueza será grande se não a utilizar,

e a utilize na proporção de sua capacidade cultural” (Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume XV [1933]. São Paulo, 1936. p. 195. Disponível em:

prefeito de São Paulo desenvolveram uma política para a cultura com recursos da educação, uma vez que as ideias do Partido Democrático e, posteriormente, Constitucionalista tinham a educação como a principal reformadora da sociedade.

Segundo Elisabeth Abdanur, o projeto político do Partido Democrático tinha por objetivo alcançar a democracia, sendo que ela seria obtida somente por meio da educação do cidadão:

Portanto, o que caracterizou essencialmente o projeto político dos “ilustrados” representados pelo Partido Democrático foi a crença de que a “democracia”, da qual não poderíamos prescindir, deveria se tornar uma realidade no Brasil, desde que o cidadão fosse “educado” para exercê-lo dentro de limites que não colocassem em risco a ordem social estabelecida. (ABDANUR, 1992, p. 16)

Como bem apresentado por Elisabeth Abdanur, essa preocupação com a educação fazia parte de um projeto político pedagógico do Partido Democrático.

Era uma democracia que limitava a participação política da maioria ao exercício de direito de votar e, mesmo assim, essa participação deveria ser resguardada por um “projeto político pedagógico que pressupõe a educação como força capaz de reformar a sociedade”. (ABDANUR, 1992, p. 15)

Dessa forma, como já discutimos, na concepção dos membros do Partido Democrático e Constitucionalista, a educação era o principal fator para reformar a sociedade e é nesse contexto que as preocupações com a cultura entram em cena.