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A dupla instrumentalidade nos meios de comunicação de massa

A percepção do direito como parte integrante da realidade social vai além da constituição de um quadro amarrado e completo do processo econômico que se pretende operar e organizar dentro de configurações dadas. Como visto, o direito econômico em sua dupla instrumentalidade pode ser utilizado também para influenciar, manipular e transformar esta mesma realidade, incorporando o conflito no manejo da política econômica100.

Tal incorporação está longe de ser um processo voluntário. É, antes, a expressão das forças reais do conflito na formulação de leis e políticas, na ação do Estado, sempre inserido nos fenômenos em que atua e regula. No que tange aos meios de comunicação de massa, os conflitos partem da contradição principal – o uso destes meios como

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Nicholas Garnham, Capitalism and communication, op. cit., p. 38.

99Gilberto Bercovici, “Política econômica e direito econômico”, op. cit., p. 205. 100 Idem, p. 210.

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instrumentos de acumulação versus a consideração da centralidade destes na configuração de um espaço público democrático. Trata-se também de uma dupla instrumentalidade.

Diante da constatação do poder social e econômico dos diferentes meios, entre os quais se destaca historicamente a televisão, organiza-se a contraposição ao tratamento

desta “indústria” como uma mera atividade econômica voltada à eficiência, à acumulação.

O potencial concentrador dessa atividade, a veracidade das informações veiculadas, a pluralidade e diversidade dos conteúdos, a blindagem a censuras ou pressões políticas desviantes, as finalidades educativas e culturais da programação, a existência de mecanismos de defesa e de acompanhamento público destes meios são algumas das preocupações que motivam uma série de regulações ao redor do mundo.

No âmbito do direito econômico e da ordem econômica brasileira, que tem na Constituição Federal de 1988 suas diretrizes estruturantes, as preocupações acima podem ser relacionadas aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, especialmente o que se destina a garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º, II).

Tais objetivos compõem o dispositivo que representa a “cláusula transformadora”

da Constituição ao explicitar o contraste entre a realidade social injusta e a necessidade de eliminá-la. Por meio dessa cláusula, a Constituição consagra objetivos a serem alcançados e cria a obrigação ao Estado de promover a transformação da estrutura econômico- social101. Ela pode ser considerada fundamento à reivindicação pela sociedade do direito à realização de políticas públicas, isto é, de prestações positivas do Estado102.

Com relação à tarefa de desenvolvimento, Eros Roberto Grau ressalta que seu processo deve levar a um salto, de uma estrutura para outra, acompanhado da elevação do nível econômico e do nível cultural-intelectual comunitário. “Daí porque, importando a consumação de mudanças de ordem não apenas quantitativa, mas também qualitativa, não pode o desenvolvimento ser confundido com a ideia de crescimento. Este, meramente quantitativo, compreende apenas uma parcela da noção de desenvolvimento”103.

101 Gilberto Bercovici, Constituição econômica e desenvolvimento, op. cit., pp. 36-37. Gilberto Bercovici

destaca que “cláusula transformadora” é expressão cunhada por Pablo Lucas Verdú e está ligada a artigos de mesma natureza na Constituição italiana de 1947 e da Constituição espanhola de 1978.

102 Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988, op. cit., p. 215. 103 Eros Roberto Grau, Elementos de direito econômico, pp.7-8.

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Em sua acepção mais ampla, o desenvolvimento diz respeito a outro dos objetivos fundamentais previstos no art. 3º da Constituição Federal de 1988 – construir uma

sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Com “sociedade livre” se destaca a dimensão

também coletiva da liberdade, que deve ser abarcada em todas as suas manifestações,

especialmente como liberdade real, material. Por “sociedade justa” se entende aquela em

que se realiza a justiça social104, preceito retomado nos princípios gerais da atividade econômica.

Segundo o que estabelece o caput do art. 170 da Constituição Federal de 1988, “a ordem econômica (...) tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (...)”. No contexto constitucional, justiça social não designa meramente

uma espécie de justiça, em que “social” serve como adjetivo qualificador de uma de suas

modalidades. Ao contrário, esse termo compõe a expressão justiça social como substantivo que a integra, adquirindo sentido próprio105.

Assim é que Eros Roberto Grau assinala que seu significado compreende a superação das injustiças na repartição do produto econômico em termos micro e macroeconômico, passando a consubstanciar uma exigência de qualquer política econômica106. Produto econômico deve ser compreendido aqui de maneira ampla, como base de inter-relações que se estabelecem a partir da forma como ele é criado e distribuído, gerando efeitos sobre a vida social de maneira geral.

Alinhada a esse entendimento, a Constituição Federal invoca a justiça social como princípio conformador da concepção de existência digna, finalidade da ordem econômica. Neste sentido, a justiça social pode ser considerada princípio conformador de todo exercício da atividade econômica. Da mesma forma, a dignidade da pessoa humana, estabelecida como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e finalidade da ordem econômica (art. 170, caput), confere unidade não apenas aos direitos fundamentais, mas também à organização econômica107. Assim concebida, ela não pode se

104

Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988, op. cit., p. 215. 105

Idem, p. 223. 106 Idem, ibidem. 107 Idem, pp. 196 e 223.

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reduzir à defesa dos direitos pessoais tradicionais, sendo essencial reconhecê-la no núcleo dos direitos econômicos, sociais, culturais108 e políticos.

Portanto, justiça social e desenvolvimento são os preceitos capazes de integrar as dimensões da regulação dos meios de comunicação de massa109, com a articulação e interpenetração que lhes é imprescindível. Ao fazê-lo demonstram que são incompatíveis com a disciplina jurídica da atividade relativa aos meios de comunicação centrada na mera eficiência econômica, na acumulação. Isso porque tais preceitos expressam, dentro de nosso sistema constitucional, o conjunto de elementos substantivos de uma regulação da televisão direcionada à concepção de sociedade democrática que enfrente o máximo possível a totalidade das questões apresentadas sobre a indústria cultural. Por isso entendemos democracia.

Seu termo contraposto, mercadoria, refere-se à disciplina centrada em assegurar a eficiência econômica no contexto de conservação de uma lógica de acumulação e da conformação social a ela relacionada. Lógica que estabelece processos perversos na criação da mercadoria a partir da informação, especialmente se considerarmos que a atividade aqui analisada é crucial à garantia de uma série de direitos (econômicos, políticos, sociais e culturais) e está integrada à proteção jurídica específica da comunicação como um direito próprio – o direito à comunicação.

Complexo e fundamental, este pressupõe a interação, o intercâmbio, e envolve mais do que uma soma de direitos correlatos à comunicação, mas a constituição de um ambiente em que a massa possa se tornar agente. Ele deve ser o núcleo central das políticas para a televisão, embora muitas delas tenham se constituído a partir da preocupação com outros direitos. Isso quando, efetivamente, foi essa a lógica a guiar a regulação.

Com olhar voltado à televisão aberta, o presente estudo coordenará os conceitos e elementos de análise aqui articulados para compreender a legislação e as políticas adotadas no setor, suas falhas e avanços. Para tanto, não perderá de vista os termos da contradição apresentada, tampouco a constatação de que o movimento gerado por ela é intricado e multideterminado. Porém, sobretudo, buscará construir uma contribuição que consiga

108 Idem, p. 197. No desenvolvimento de sua argumentação, Eros Roberto Grau faz referência às contribuições de José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira na obra Constituição da República Portuguesa anotada, 1984.

109 Conforme apresentadas ainda no item 1.1, referimo-nos às dimensões econômica, política e pública da regulação dos meios de comunicação.

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retirar do mapa traçado fundamentos relevantes para a regulação democrática dos meios de comunicação no momento atual.

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CAPÍTULO 2 – Políticas para a televisão no Brasil: realidade e regulação