• Nenhum resultado encontrado

2.3 Mapeando a contradição no conjunto das políticas brasileiras para a televisão

2.3.5 Concentração de propriedade na televisão

2.3.5.1 Os limites presentes e ausentes

2.3.5.1.1 A dinâmica das redes no Brasil

As redes de televisão são formadas por estações geradoras, estações retransmissoras e estações repetidoras. De acordo com o Decreto n. 5.371/2005, suas definições são as seguintes:

I - Estação Geradora de Televisão: é o conjunto de equipamentos, incluindo os acessórios, que realiza emissões portadoras de programas que têm origem em seus próprios estúdios;

II - Estação Repetidora de Televisão: é o conjunto de receptores e transmissores, incluindo equipamentos acessórios, capaz de captar os

317 Alexandre Ditzel Faraco, Democracia e regulação das redes eletrônicas de comunicação, op. cit., p. 180. 318 James Görgen, Sistema Central de Mídia, op. cit., p. 87.

149 sinais de sons e imagens oriundos de uma estação geradora, recebidos

diretamente dessa geradora ou de outra repetidora, terrestre ou espacial, de forma a possibilitar seu transporte para outra repetidora, para uma retransmissora ou para outra geradora de televisão;

III - Estação Retransmissora de Televisão: é o conjunto de receptores e transmissores, incluindo equipamentos acessórios, capaz de captar sinais de sons e imagens e retransmiti-los, simultaneamente ou não, para recepção pelo público em geral;

A primeira é outorgada mediante concessão, enquanto a segunda e a terceira recebem autorização. Ressalvadas as retransmissoras de geradoras exploradas diretamente pela União, cada RTV poderá retransmitir os sinais de uma única geradora. Em regra, repetidoras e retransmissoras veiculam somente a programação e a publicidade oriunda da geradora cedente dos sinais. Esta pode difundir publicidade destinada a uma determinada região servida por uma ou mais retransmissoras, desde que não haja, na mesma localidade, estação geradora de televisão ou emissora de rádio. Todavia, o Decreto n. 5.371/2005 retoma a exceção às retransmissoras quanto ao impedimento de inserir programação própria.

A legislação vigente permite que as entidades autorizadas a executar o serviço de retransmissão insiram programação local e publicidade quando estiverem em Municípios situados em regiões de fronteira de desenvolvimento do país, conforme definição do Ministério das Comunicações. A inserção de programação local não poderá ultrapassar 15% da programação total e a veiculação de publicidade é liberada apenas para as RTVs de geradoras comerciais.

As redes se organizam local, estadual, regional e nacionalmente. Porém, cada geradora opera em uma localidade, não havendo no modelo brasileiro licenças de abrangência nacional. Para serem assistidas em outros lugares, as geradoras precisam das repetidoras, retransmissoras e outras geradoras, do mesmo grupo ou de parceiros – as emissoras afiliadas. Assim, “cabeça de rede” e afiliadas são ambas estações geradoras, que se unem para a veiculação da mesma programação básica montada pela “cabeça de rede”. As emissoras afiliadas podem transmitir parte dela ou sua totalidade319.

319

150

Essa estratégia apresenta vantagens para os dois lados. As “cabeças de rede” não precisam investir em infraestrutura para fazer a sua programação chegar a todo o território nacional, mas gozam dos efeitos positivos de sua penetração ao vendê-la aos anunciantes, amortizando seus custos de produção, e se fortalecem em seu potencial de formação da opinião. As afiliadas investem local ou regionalmente e se credenciam a transmitir uma programação que atrai audiência e que não teriam condições de produzir em seus estúdios320.

As redes comerciais se estruturam no Brasil a partir da segunda metade da década de 60 com o protagonismo das geradoras do eixo Rio-São Paulo. Seu processo de formação, em que já passa a se destacar a TV Globo, está em grande medida atrelado à

relação política dessas emissoras com grupos regionais. É a origem do “coronelismo eletrônico”. As famílias dos grupos afiliados, por sua vez, tratam de criar o seu modelo de

afiliação intra-regional com o intuito de manter a fidelidade à “cabeça de rede” nas principais praças e garantir os resultados financeiros. Para tanto, eles usam de sua influência junto ao governo militar para receber concessões de rádio e TV e entregá-las a parente e amigos, burlando o art. 12 do Decreto-lei n. 236/1967321.

Considerando que desde o início a maior parte da programação das afiliadas é mera reprodução do que vinha das “cabeças de rede”, constituem-se redes verticalizadas, em que predomina a unilateralidade no fornecimento dos conteúdos, desprezando a produção regional. As emissoras estatais e educativas levam mais tempo para se integrar em rede e, embora tenha se tentado estabelecer um modelo menos verticalizado, a alternativa não se firmou. A criação da EBC renova esse projeto, mas ainda há grandes desafios para a sua concretização322.

Logo, a dimensão real do poder das “cabeças de rede” vai bem além das estações geradoras sob a propriedade da mesma pessoa ou entidade, abrangendo uma série de outras estações e relações econômicas e políticas. Os gráficos abaixo demonstram sob três abordagens diferentes – número de emissoras, audiência e cobertura – a penetração e o poder de influência das redes que operam no país.

320 Ver João Brant, Políticas nacionais de radiodifusão (1985-2001) e espaço público, op. cit., pp. 138-139 e James Görgen, Sistema Central de Mídia, op. cit., pp. 87-88.

321James Görgen, “Apontamentos sobre a regulação dos sistemas e mercados de comunicação no Brasil”, op. cit., p. 204.

151

Gráfico 1 – Número de emissoras por rede

Fonte: Grupo de Mídia de São Paulo, Mídia Dados 2013 (referente ao ano de 2012).

* Até setembro de 2013, o grupo Abril explorou a marca MTV, ligada ao conglomerado americano Viacom, para a veiculação da MTV Brasil. Esta encerrou suas atividades em 2013 e o grupo Abril passou a transmitir em seu lugar a TV Abril. Não foi checado se o número de retransmissoras se mantém o mesmo.

Gráfico 2 – Audiência das redes (total da população das 07h às 00h, de segunda a domingo)

Fonte: Grupo de Mídia de São Paulo, Mídia Dados 2013 (referente ao ano de 2012) * “Outras” contempla emissoras não listadas e não identificadas/cadastradas.

152

Gráfico 3 – Cobertura geográfica de TV (municípios e domicílios com TV)

Fonte: Grupo de Mídia de São Paulo, Mídia Dados 2013 (referente ao ano de 2012) * A MTV Brasil deixou de operar em setembro de 2013.

Os gráficos acima demonstram a artificialidade dos limites horizontais previstos no art. 12 do Decreto-lei n. 236/1967. Isso ocorre tanto no que se refere ao limite de 10 estações de TV em todo o território nacional quanto no fato de o conjunto da regulação desconsiderar as disparidades na audiência efetiva e potencial das redes como balizas ao controle da concentração. Com índices de audiência bastante diferentes entre si, há quatro redes de televisão que ultrapassam a cobertura de 60% dos municípios e que atingem, ao menos, 79% dos domicílios com TV. Em todas as abordagens, porém, resta evidente a hegemonia da Rede Globo, que já foi maior, mas ainda concentra 44% da audiência.

De todo modo, a verticalização da produção e o poder de definição da programação

conferido à “cabeça de rede” aprofundam sobremaneira a influência dessas emissoras

sobre o espaço público se comparada ao que derivaria apenas das concessões diretamente detidas por elas323. Sua penetração, contudo, não se restringe às redes de televisão. Estas

153

fazem parte de um complexo de veículos ainda maior graças à concentração cruzada dos meios de comunicação, sempre ocupando posto de destaque nas atividades do conglomerado.

A partir da atualização do levantamento feito pelo projeto Donos da Mídia, James Görgen identifica quais seriam os conglomerados aptos a compor o que ele define como

“Sistema Central de Mídia”. De acordo com dados de 2008, o autor enumera dez

conglomerados de comunicação no país: (1) Organizações Globo, (2) Sílvio Santos, (3) Igreja Universal do Reino de Deus (Rede Record, entre outras), (4) Bandeirantes, (5) Governo Federal (TV Brasil), (6) TeleTV (Rede TV!), (7) Abril, (8) Amaral de Carvalho (Jovem Pan e Sat FM e AM), (9) Governo do Estado de São Paulo (TV Cultura) e (10) Organização Monteiro de Barros (Rede Vida).

Juntos, esses conglomerados controlavam direta ou indiretamente 1.310 veículos, sendo 343 emissoras de televisão, 391 rádios FM, 259 rádios AM, 37 rádios Ondas Curtas, 26 rádios Ondas Tropicais, 2 rádios comunitárias, 83 jornais, 85 revistas, 29 operadoras de TV a cabo, 27 de MMDS (TV por assinatura via micro-ondas), 2 de DTH (TV por assinatura via satélite), 6 de TVA e 20 programadoras de TV por assinatura (Canal TVA). Eles também eram responsáveis pela produção e distribuição de conteúdo de 21 das 54 redes, sendo 9 de rádio e 12 de TV. Em termos percentuais, o domínio dos dez conglomerados era cristalino no caso da televisão. Nada menos do que 81% das geradoras eram ligadas a eles324.

Para serem enquadrados no que a pesquisa entende por “Sistema Central de Mídia”,

os conglomerados deveriam atender três condições: (1) exercer controle direto de uma rede nacional de rádio ou de televisão, (2) manter relações políticas e econômicas com mais de dois grupos afiliados em mais da metade das unidades da federação e (3) possuir vínculo com grupos que detêm propriedade de veículos, ao menos, nos segmentos de rádio, televisão e jornal ou revista. Como afirma James Görgen, as organizações que atendem a estas três características conseguem distribuir conteúdo de forma nacional e, ao mesmo tempo, captar receita publicitária em mercados regionais e em nível nacional325.

324 Só o conglomerado das Organizações Globo reunia 383 veículos, seguido pelo de Sílvio Santos, com 195. James Görgen, Sistema Central de Mídia, op. cit., pp. 98-99. Cumpre ressaltar que o número de veículos ligados às redes inclui também emissoras que não integram grupos de comunicação, mas são afiliadas de forma individual. O Projeto Donos da Mídia pode ser acessado em http://donosdamidia.com.br/ .

325

154

Na análise foram consideradas, ainda, a consistência dos conglomerados em quatro dimensões fundamentais: econômica (posição de mercado em termos de receita publicitária ou faturamento bruto); simbólica (lugar de credibilidade ou preferência que os veículos do grupo ocupam no imaginário do público); política (papel da organização como fonte primária de conteúdo para outros grupos a ela associados ou que compõem a periferia do sistema e relação com o ambiente político em nível federal e estadual); e histórica (protagonismo da corporação ao longo do tempo e seu envolvimento com causas de interesse da sociedade). A combinação das condições e dos elementos resultam, por certo, em gradações diferentes do poder de influência e de mercado de tais conglomerados, mas todos contemplavam as principais características requeridas para constarem da relação326.

Cumpre notar que a propriedade cruzada não se concentra apenas em grupos de abrangência nacional. Ela se reproduz também no âmbito regional e local, reforçando a influência das redes nacionais através do poder de grupos regional e localmente constituídos. O melhor exemplo é a RBS, afiliada à Rede Globo, que atua em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. O grupo acumulava, em 2008, 18 emissoras de televisão, 28 estações de rádio (sendo mais da metade FM), 8 jornais (entre eles o Zero Hora), 1 operadora e 2 programadoras de TV por assinatura, somando 57 veículos. Embora o grupo se destaque, outros casos confirmam o fenômeno:

Tabela 2 – Composição dos dez maiores grupos regionais afiliados às redes de TV (2008)

Grupo Rede Região TV Rádio Jornais TV por

assinat. Canal TVA Total RBS Globo RS e SC 18 28 8 1 2 57 Jaime Câmara (OJC) Globo DF, GO e TO 10 12 2 - - 24

Sistema Mirante* Globo MA 4 17 1 - - 22

326

O autor divide os conglomerados em 3 grupos. O primeiro se refere aos quatro principais conglomerados (Rede Globo, SBT, Igreja Universal e Bandeirantes), que preenchiam com folga as quatro dimensões avaliadas. O segundo grupo é integrado por TeleTV, Abril e o grupo Amaral de Carvalho, que possuem trajetória histórica e boas fatias de mercado, mas eram menos representativos em termos de público e relações políticas. O terceiro se caracterizava por ter menos inserção comercial e mais penetração política, abarcando Governo Federal, Governo de São Paulo e Organização Monteiro de Barros, controladora da Rede Vida. Idem, pp. 100-101.

155

(cont.) Grupo Rede Região TV Rádio Jornais TV por

assinat. Canal TVA Total Rômulo Maiorana (ORM) Globo PA 2 8 2 2 1 15

Petrelli (RIC) Record PR e SC

(principais) 9 3 2 - - 14 Sistema do Jornal do Commercio SBT PE 2 11 1 - - 14 Central Barriga Verde Band SC 1 13 - - - 14 Boa Sorte SBT PA e TO (principais) 1 12 - - - 13

Rede Amazônica Globo AC, AM,

AP, RO e RR

6 5 - 1 1 13

Rede Bahia* Globo BA 6 3 1 1 1 12

Fonte: Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação, Projeto Donos da Mídia – levantamento atualizado em 2008. Disponível em: http://donosdamidia.com.br/

Os números não levam em consideração a quantidade de retransmissoras sob o controle de cada grupo. * O Sistema Mirante é ligado à Família Sarney e a Rede Bahia à Família Magalhães. Outras das redes acima eventualmente contam com participação ou ligação com políticos locais e regionais. Para checar todos, acessar:http://donosdamidia.com.br/levantamento/politicos

Todas essas relações passam ao largo da regulação ou da forma como ela é aplicada. Os parâmetros de controle infraconstitucionais ligados ao mandamento da Constituição de 1988 que veda o monopólio ou o oligopólio, direto ou indireto, na comunicação social são historicamente insuficientes e trabalhados de modo a possibilitar que os poucos limites sejam contornados pelos grupos de mídia. O texto constitucional inscreve fundamento crucial à organização dos meios de comunicação no país, acertando ao fazê-lo no dispositivo que trata da liberdade de expressão. Todavia, se confere legitimidade a um controle mais efetivo da intrincada concentração econômica e política da comunicação brasileira, deixa abstrata a tarefa de como concretizá-lo.

Diante disso, a força dos interesses contrários à reconfiguração desse cenário atua para que a principal norma definidora de limites à propriedade seja ainda de 1967. As outras duas novidades relevantes nesse sentido demoraram dezenove anos ou mais, depois

156

da Constituição, para despontarem nas políticas voltadas ao setor – a criação da EBC em 2007 e a aprovação da Lei n. 12.485 em 2011.

Quanto à concentração vertical dos meios e a liderança da programação pelas

“cabeças de rede”, com seus centros de produção em geral instalados no eixo Rio-São

Paulo, a Constituição estabeleceu a regionalização como princípio da produção e da programação, positivando a necessidade de percentuais para sua realização. Ao mesmo tempo, visou a atacar a concentração da produção apenas nas radiodifusoras, prevendo o estímulo à produção independente.

Esses dois pontos serão tratados a seguir.