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1.3 Sobre a informação e seus desdobramentos

1.3.1 O bem informação

1.3.1.2 Considerações sobre a indústria cultural

1.3.1.2.2 Indústria cultural e hegemonia

Tratamos aqui da segunda faceta da indústria cultural, relacionada à coordenação e coesão social. Nela atuam os interesses do capital privado, do Estado e de diferentes instituições e agentes de ordem econômica e política. No cumprimento dessa função, os dois primeiros podem em geral coincidir e caminhar integrados, mas a incorporação das massas no processo político e a maior complexidade de forças envolvidas na conformação social pressionam pela alteração de compromissos e reposicionamento do Estado.

Esse contexto significa também uma transição de sociedades em que o modelo dominante de coordenação social era baseado na interação direta entre aqueles que importavam à vida política para sociedades caracterizadas pelo aumento e centralidade de interações mediadas85. Na crescente tarefa de mediação, os meios de comunicação de massa, com destaque à televisão, cumprem papel crucial e operam pela persuasão.

83Marcos Dantas, “O espetáculo do crescimento” op. cit., p. 43.

84 Nicholas Garnham, Emancipation, the Media, and Modernity, op. cit., p. 166. 85 Idem, p. 114.

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Tal desenvolvimento de formas mediadas de comunicação, que separa hierarquicamente um pequeno número de produtores de um grande número de receptores, constrói os participantes do processo de comunicação social como audiências ao invés de concebê-los como interlocutores de uma relação dialógica86. Isso se dá principalmente em razão de fatores estruturais e até que medida a segunda alternativa seria possível é uma questão cuja resposta envolve uma série de elementos.

Inicialmente é preciso ter em vista que a tarefa de mediação não está apartada do processo descrito no item anterior, com relação à coesão em torno de uma lógica de acumulação. Ao mesmo tempo, deve-se considerar que a necessidade de mediação se torna maior com a ampliação das forças sociais atuando no espaço político de tomada de decisões; forças que muitas vezes se contrapõem àquela lógica.

Portanto, é preciso ter em vista que esse é um ambiente de conflito. Uma pretensa relação dialógica dificilmente levaria ao encontro de uma verdade comum a todos. Porém, permitiria a exposição dos termos do conflito de maneira mais clara e a consequente tomada de decisão com base na correlação de forças resultante.

As formulações de Antonio Gramsci contribuem para a compreensão dessa dinâmica em sociedades mais complexas (de acordo com sua concepção ampliada de Estado)87, e do papel dos meios de comunicação de massa na conformação social. Gramsci os insere no conjunto de instituições responsáveis pela elaboração e/ou difusão de valores simbólicos e de ideologias88.

O conjunto dessas instituições é denominado em sua construção teórica de

sociedade civil89, que exerce na articulação das relações de poder e na organização da vida social uma função diversa da desempenhada pelo que ele designa por sociedade política.

86 Idem, p. 115.

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Sua perspectiva ampliada do Estado está relacionada à importante diferenciação gramsciana, que trata da relevância ou não da sociedade civil nas determinações de um Estado, dispondo suas variantes de resposta sob dois modelos ligados ao que ele denomina de Oriente e Ocidente. O primeiro designa o que poderíamos entender por um Estado que se mantém principalmente pelo seu aparelho coercitivo e o segundo por um Estado que conta, para além da força, com outras formas de manutenção do poder por meio da reprodução de valores simbólicos conduzida pelas instituições do que ele entende por “sociedade civil”.

88 Carlos Nelson Coutinho, A dualidade de poderes – introdução à teoria marxista sobre estado e revolução, 1985, p. 60.

89 Entre as instituições da sociedade civil, Gramsci inclui o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, as organizações profissionais, os sindicatos, as instituições de caráter científico e artístico, entre outras.

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Esta se refere ao conjunto dos aparelhos através dos quais se detém e se exerce o monopólio legal ou de fato da violência, tratando-se dos aparelhos coercitivos do Estado90.

Segundo sua formulação, o Estado em sentido geral ou integral compreende sociedade política + sociedade civil91, entendidas, respectivamente como força e consenso92, ou ainda, ditadura e hegemonia93. Duas esferas que se combinam na conservação ou transformação de uma determinada formação econômico-social de acordo com os interesses do grupo dominante.

Neste sentido, Gramsci denomina as instituições que formam o conjunto da sociedade civil de aparelhos privados de hegemonia. “Privados” no sentido de serem organismos sociais relativamente autônomos perante o Estado em sentido estrito94 (sociedade política, apenas), não estando totalmente subjugados ao seu poder. “De

hegemonia” porque a eles cabe a função de contribuir ao exercício do domínio não através

da coerção, do domínio direto, mas da legitimação por meio da construção do consenso95, da direção intelectual e moral.

Definir os meios de comunicação de massa como aparelhos privados de hegemonia constantes do conjunto da sociedade civil significa, então, considerá-los organismos sociais materialmente autônomos do Estado em sentido estrito (sociedade política) que servem à elaboração e/ou difusão de valores simbólicos e de ideologias, tendo em vista a transformação em consenso desses valores e ideias próprios dos interesses de um grupo determinado, materializando-se a direção deste grupo sobre os outros e tornando-o hegemônico em relação aos demais.

Contudo, é também considerá-los organismos em disputa entre as forças em conflito. Disputa capaz de gerar efeitos concretos na reprodução geral de valores e nas decisões do Estado, através de pressões internas e externas. Assim é que Gramsci se dedica a avaliar as estratégias de inclusão e participação efetiva nesses espaços por grupos sociais

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Carlos Nelson Coutinho, A dualidade de poderes, op. cit., p. 60. 91

Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere. vol. 3. Trad. Carlos Nelson Coutinho et alli, 2007, p. 244. Ao final dessa fórmula, Gramsci conclui, “isto é, hegemonia couraçada de coerção”.

92 Idem, p. 233. 93

Idem, p. 257.

94 Carlos Nelson Coutinho, A dualidade de poderes, op. cit., p. 62.

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subalternos, de maneira a permitir que estes também possam difundir suas ideias e concepções em proporções massivas. Não há dúvida de que a desigualdade material se reflete nas diferentes condições de disputa desses espaços, o que não representa um obstáculo intransponível, mas um elemento central a ser trabalhado.

Importa ressaltar, ainda, que os conteúdos não são recebidos sem filtros pelo público. Eles são mediados por outros condicionantes econômicos e sociais, bem como pelas experiências vividas, conformando fatores que interagem na maneira como os conteúdos são interpretados pela audiência e interferem ou não nos comportamentos individuais e coletivos96.

Logo, não há nada automaticamente absorvido. Há sim um intrincado jogo de forças que oferece condições mais favoráveis aos que se unem à lógica de acumulação dominante, mas sujeito a rupturas e mudanças pontuais.

Ambas as facetas da indústria cultural reafirmam a relevância pública e social dos seus aparelhos. Os efeitos perversos ou positivos que podem ter demonstram a centralidade desses meios e expõem uma contradição fundamental no modo como são concebidos.

A contradição na indústria cultural parece se dar no sentido de uma permanente possibilidade de negação de seus pressupostos, algo que se verifica no clássico estudo de

Adorno e Horkheimer: “Todavia, a indústria cultural permanece a indústria do

entretenimento. Seu controle sobre os consumidores é mediado pelo entretenimento, e não é por um mero decreto que esta acaba por se destruir, mas pela hostilidade inerente ao

princípio do entretenimento por aquilo que seja mais do que ele próprio”97

. Isto denota a subjacente pressão para que os meios da indústria cultural sejam guiados por finalidades maiores, públicas (ou a arte por propósitos mais elevados), e voltados à constituição de um espaço público efetivo.

Tal contradição é expressão de outra, referente à tensão fundamental do sistema capitalista, da necessidade de acumulação que engendra desigualdades, que, por sua vez, organizam a pressão por um novo concerto de forças. No caso dos meios de comunicação

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Nicholas Garnham, Emancipation, the Media, and Modernity, op. cit., pp. 122-125. Conclui o autor na página 125 (tradução livre): “Em resumo, as mensagens dos meios de comunicação de massa sim afetam nosso entendimento do mundo, porém como nós interpretamos ou agimos a partir desse entendimento está relacionado à posição social e à experiência”.

97 Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 112. Vide, ainda, Nicholas Garnham, Capitalism and communication, op. cit., p. 34.

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de massa, isso pode ser entendido como o conflito que opõe a utilização destes meios como instrumentos de acumulação e preservação de poderes constituídos ao caráter público e o consequente imperativo de democratização dos mesmos98. Este conflito influencia o Estado em sua política, assim como a condução de outras instituições, gerando seus efeitos também sobre o capital privado.

A disciplina jurídica consequente da atividade econômica ligada aos meios de comunicação deve, assim, debruçar-se sobre essa contradição e estar ciente da complexidade da organização desses sistemas dentro do capitalismo. Se a exposição aqui realizada demonstra que os meios de comunicação de massa são parte da política econômica instrumentalizada pelo Estado, ela é ainda mais enfática em explicitar o cuidado que se deve ter quando da análise desta mesma política.

Isto porque, como ressalta Gilberto Bercovici, aadequada compreensão da política econômica exige que se assuma que economia e política estão profundamente associadas, que o processo político-econômico é resultado de uma complexa série de contraposições e conflitos de interesses distintos, que os vários grupos sociais e econômicos buscam influir sobre o Estado e que a política econômica não possui nem fins, nem meios neutros99.