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Incompatibilidade de Género: Caso de São Miguel Manuela Gomes Tavares Furtado

3. A Economia Política das Conjugalidades Frouxas

As mulheres, ao descreverem as formas de violência a que são submetidas, ou foram, constroem um discurso que expõe sua visão sobre os motivos de violência, e consequentemente uma visão sobre os homens que lhes pautam o quotidiano em violência. Nesse apanhado de suas relações, soma-se incursões sobre o seu processo de formação enquanto mulher, a aspiração a ser senhora de lar. Está subjacente às concepções de maternidade, uma concepção do bem-viver associada ao domínio do lar que perpassa as rupturas nos sentimentos, nos valores e atitudes.

Simultaneamente, na exposição das visões de mulher se misturam as cores dos processos de contratos, a forma como os vínculos estão baseados na ameaça de ruptura violenta. Mais do que resistências, visualizamos as condições nas quais as mulheres constroem vidas, formas de conhecimento, de superação, de esquecimento, de negociação. As formas de vida forjadas em situação da violência pelas mulheres do interior de Santiago são outras tantas expressões do feminino, que não podem ser plenamente

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explicitadas sob o prisma da falta, da lacuna, do desvio. Trata-se aqui de mirar a condição da mulher frente à violência como forma de vida plena e não somente pelo prisma da passividade, da falta, das atitudes que teriam outras mulheres de outras latitudes visando romper o ciclo da violência. Aqui, importa reconhecer as condições nas quais as mulheres do interior da ilha de Santiago se movimentam, nesse campo de gravidade em que a violência interpessoal projeta capacidades plenas de decisão, modos dignos de significação das relações que elas mesmo vivenciam.

Para a interpelação do material teórico que coloca ênfase no idioma da violência como parte do processo de se dar significados aos relacionamentos, utilizo uma narrativa em que a vítima não é necessariamente uma mulher. É o caso da história de vida de Humberto, de 42 anos. Ele vive com a sua companheira há 18 anos e nesses anos de relacionamento ele sofre sistematicamente atos de violência por parte da companheira. Nos termos do próprio Humberto:

De vez em quando que eu chegava bêbado em casa, no outro dia sempre eu acordava com muitas dores no corpo sem saber o porquê de tanta dor. Até que um dia um vizinho me alertou que sempre que eu chegava em casa ele sentia a minha mulher a me bater.

Estudos constatam com frequência que em famílias alcoolistas e violentas, durante o período de intoxicação do membro alcoolista, os demais membros da família adotam uma postura mais ríspidas, provocadora e agressiva. De acordo com SENAD – Secretária Nacional Anti-drogas, (2007), vários relatos de violência doméstica, lesões corporais, tentativas de homicídio, assim como outras situações de conflitos interpessoais, são cada vez mais evidentes em contextos nos quais o álcool se faz presente. A minha ênfase aqui é contudo outra. Numa contexto de desemprego estrutural masculino massivo, e em que os homens estão menos dispostos ao trabalho informal, a mulher tende a ser com frequência a provedora do lar. A masculinidade em desmoronamento intensificado pelo efeito

do álcool apresenta um corpo vulnerável numa situação estrutural de vulnerabilidade. É nesse contexto que a violência doméstica é um medium que redefine os lugares da masculinidade e da feminilidade. O corpo frágil do sujeito não-provedor tende a perder a prerrogativa masculina da violência. Poder-se-ia pensar aqui os efeitos do alcoolismo, não apenas como intensificador da violência masculina, mas por vezes como fator de inversão de papéis em uma sociedade de uma masculinidade circulante. Em determinadas circunstâncias é possível que o corpo do alcoólatra ganhe o lugar feminino do receptáculo da violência e por isso essa violência precisa ser sistematicamente escondida, talvez do próprio sujeito que a sofre.

Fui tirar satisfação com a minha mulher que estava na cozinha a preparar o jantar. Como ela não ficou satisfeita com a conversa, atirou uma panela com óleo quente na minha cara.

Entre a construção e manutenção de si, como mulher, e os jogos flutuantes de masculinidade e feminilidade, vão-se construindo modos de vida que não podem ser avaliados por outros parâmetros que não os que emergem das próprias tessituras culturais em jogo. De tal encontro projetam-se representações, valores, ordens, incomensuráveis e incorrigíveis em relação a parâmetros de outras latitudes. Para se evitar a imputação de etnocentrismo e sua variante mais recorrente, é preciso entender a violência interpessoal como forma de encontro, trocas físicas e simbólicas que os sujeitos operam e que constituem formas de vida (LOPES, 1997).

Nessa perspetiva, é de salientar que alguns autores como Smigay (2000) apontam que as mulheres vivem uma relação ambígua com a violência, sendo, que “por um lado, sentem-na como um elemento constante em suas vidas, que é parcialmente tolerado, por outro lado, ressentem-se de sua presença inquietante, conduzindo-as as crises. Até certo ponto, a violência as define.” (SMIGAY, 2000 apud LOPES, 1997, p. 19).

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Na medida em que a relação entre as famílias dos parceiros não carrega um princípio de vínculo moral, aqui, correntemente o vínculo conjugal inicial entre os adolescentes raramente chega a se consumar na forma social de casal. Quando os jovens chegam a morar juntos o laço está sempre sujeito a uma dissociação causada por um princípio de instabilidade na relação que é o da supremacia masculina.

Analisando as relações familiares em Calheta, podemos afirmar que tal instabilidade conjugal assume a forma de uma assimetria em que o masculino prima por investimentos pessoais unilaterais e o lado feminino pela ausência de um projeto de ascensão social, reduzida a condição de suporte econômico e de cuidados do lar. À medida que a distância entre os parceiros se estende espacial e socialmente, longe de uma relação recíproca de compromissos com o homem-pai-de-seus-filhos, as mulheres em Calheta se vêm cada vez mais isoladas. É comum na Calheta as mulheres reconhecerem a ausência de um companheiro de fato mesmo quando a separação ainda não se efectivou.

De acordo com as histórias de vidas relatadas, constata-se que o ciclo dependência económica estrutural dá-se com relação à família materna. As prestações económicas do parceiro sexual estão melhor inseridas numa economia política libidinal, do que propriamente na economia de manutenção de um lar como o senso estabelecido tende a nos enganar.

A mulher percebe que, nas tramas de relações de género, a afirmação da honra masculina é problemática se, de alguma forma, os homens aparecem como dependentes das esposas. Sob o esquema de dominação masculina, os homens são compelidos a dissolver a prazo à própria família para estar a altura da sua política de masculinidade.

Numa sociedade em que se espera que os homens ou sejam provedores ou não estejam em família, um lar é, a prazo, uma praça de guerra, em que a honra masculina está sob escrutínio. Transformar o quotidiano em

espaço de demonstração de força física é retomar o fator simbólico-cultural da virilidade em mãos. O poder falocrático, construído socialmente para um exercício doméstico ilimitado exige respeito e prestígio como prova de erecção.

Na ilha de Santiago, das camadas populares mais atingidas pela pobreza, domina cada vez mais a geografia de uma masculinidade centralizada nas mercearias de venda de aguardente. A centralidade geográfica das mercearias, o tempo estruturado pelo levar da vida em hábitos de estar na rua a beber com os amigos conforma hoje uma masculinidade mais insustentável do que no passado (Miranda, 2013). O trânsito entre a rua e a casa é dominado pela rua e a regulação da honra masculina é mais do que nunca regida nos bares nas relações entre pares.

A maioria dos estudos antropológicos feitos em comunidades pequenas do interior da ilha, constatam, à semelhança da Calheta, uma masculinidade concebida e estruturada em espaços públicos e depois projetada de forma anómala para dentro do lar. Aqui a masculinidade é marcada por uma virilidade feita para apreciação de outros homens. Desde o ato sexual, a toda a organização da vida social, todos os atos quotidianos são militarizados para uma apreciação pelos outros homens da dominação masculina exercida em sobre a mulher.

Assim, o esforço feminino para manter o homem em casa visa trazer o parceiro para um espaço de relações em que a dominação pode ser subvertida por dentro, no próprio modo como as categorias de masculinidade e feminilidade circulam instáveis por corpos mais ou menos fragilizados.