• Nenhum resultado encontrado

1.2 Educação CTS

1.2.1 A educação CTS e os Referenciais de Paulo Freire

A articulação dos referenciais teóricos da educação CTS e do pensamento de Paulo Freire se concretiza no sentido de possibilitar à educação científica uma visão humanística, com uma abordagem política que atue na transformação social (SANTOS, 2008). Desse modo, como afirma Prudêncio (2013), tal articulação se dá exatamente pela necessidade de que

[...] o ensino adquira criticidade, à medida que passa a considerar não somente os fatores sociais, históricos, econômicos, políticos e éticos, defendidos por ambas, mas, também a questão da vontade política, da solidariedade, da consideração das situações de exclusão e dos problemas ambientais e econômicos presentes na realidade brasileira (PRUDÊNCIO, 2013 p. 34).

Ainda de acordo com a autora, a articulação entre tais campos carrega em si um potencial transformador da realidade, a partir do momento no qual se coloca em pauta uma concepção de educação problematizadora.

Como lembram Nascimento e Linsingen (2006), a problematização no pensamento freireano não se basta na simples utilização de uma questão cotidiana dos alunos, para, a partir disso, introduzir conceitos selecionados de antemão pelo professor.

Para esses autores, por problematização deve ser entendido “[..]um processo no qual o educando se confronta com situações de sua vida diária, desestabilizando seu conhecimento anterior e criando uma lacuna que o faz sentir falta daquilo que ele não sabe” (NASCIMENTO; LINSINGEN, 2006 p. 104).

Ainda de acordo com tais autores, os pontos de convergência entre o enfoque CTS e a concepção de educação de Freire se estabelecem de maneira evidente na abordagem temática de seleção de conteúdos –

rompendo propostas curriculares tradicionalistas e apostando nos temas cotidianos; na perspectiva interdisciplinar do trabalho pedagógico e na formação de professores – buscando uma maior atenção à discussão de temas com relevância social a partir dos professores e da comunidade escolar; e, por fim, no papel do professor que, pautado pela concepção dialógica de educação, assume o papel de catalizador no processo de ensino- aprendizagem. A partir de tais convergências, os referidos autores acreditam que

[...] a articulação de tais propostas educacionais seja um ganho para ambas: para o enfoque CTS por lhe assegurar uma base educacional sólida e coerente (algo nem sempre presente nas abordagens CTS) e, por outro lado, para o método freiriano (e seus desdobramentos no ensino de ciências) por efetivar a contemplação de temas atuais de dimensão social, política e econômica (NASCIMENTO; LINSINGEN, 2006 p. 113).

A aproximação desses dois referenciais se dá pelo entendimento de que a democratização na tomada de decisões é ponto central no pensamento de Freire, para quem a educação deve propiciar uma leitura crítica da realidade, de modo a fornecer subsídios para que esta seja transformada. De tal sorte, os pressupostos presentes no pensamento de Freire, como lembram Auler e Delizoicov (2006a), atuam no sentido de concretizar o papel transformador da educação, uma vez que tais pressupostos apontam para:

[...] além do simples treinamento de competências e habilidades. A dimensão ética, o projeto utópico implícito em seu fazer educacional, a crença na vocação ontológica do ser humano em “ser mais” (ser sujeito histórico e não objeto), eixos balizadores de sua obra, conferem, ao seu projeto político-pedagógico, uma perspectiva de “reinvenção” da sociedade, processo consubstanciado pela participação daqueles que encontram-se imersos na "cultura do silêncio", submetidos à condição de objetos ao invés de sujeitos históricos. (AULER; DELIZOICOV, 2006a, p.341).

Para tanto, uma transformação efetiva por meio dos processos educativos depende, como lembram Auler e Delizoicov (2001) e Auler (2007a), de uma compreensão crítica das relações CTS, uma vez que a dinâmica social observada na atualidade se vê intimamente atrelada ao desenvolvimento científico e tecnológico.

Para tal compreensão, como acreditam Auler e Delizoicov (2006b), faz- se necessária a problematização de construções históricas sobre a ciência e a tecnologia, expressas pelos autores como: superioridade/neutralidade do

modelo de decisões tecnocráticas; perspectiva salvacionista/redentora atribuída à Ciência -Tecnologia; e, finalmente, o determinismo tecnológico.

Como forma de enfrentamento ao efeito paralisante de tais construções, os autores propõem três parâmetros no sentido de superar a visão de neutralidade da ciência e da tecnologia e de contemplar a democratização das decisões nas temáticas relacionadas a tais campos: superação do modelo de

decisões tecnocráticas; superação da perspectiva salvacionista/redentora atribuída à Ciência-Tecnologia; e superação do determinismo tecnológico,

descritos no Quadro 2.

Quadro 2: Parâmetros propostos para superação de construções históricas do desenvolvimento científico e tecnológico. Adaptado de Auler e Delizoicov (2006b, p. 4).

Superação do Modelo de Decisões Tecnocráticas

A suposta superioridade do modelo de decisões tecnocráticas é alicerçada na crença da possibilidade de neutralizar/eliminar o sujeito do processo científico-tecnológico. O expert (especialista/técnico) pode solucionar os problemas, inclusive os sociais, de um modo eficiente e ideologicamente neutro. Para cada problema existe uma solução ótima. Portanto, deve-se eliminar os conflitos ideológicos ou de interesse. Considera-se que tal compreensão não contribui para a democratização de processos decisórios.

Superação da Perspectiva Salvacionista/Redentora Atribuída à Ciência-Tecnologia Há uma compreensão, bastante difundida, de que em algum momento do presente ou do futuro, Ciência-Tecnologia resolverão os problemas, hoje existentes, conduzindo a humanidade ao bem-estar social. Atribui-se um caráter redentor à CT. A ideia de que os problemas hoje existentes, e os que vierem a surgir, serão automaticamente resolvidos com o desenvolvimento cada vez maior da CT, estando a solução em mais e mais CT, está ignorando as relações sociais em que esta CT são concebidas e utilizadas.

Superação do Determinismo Tecnológico

Em linhas gerais, há duas teses definidoras do determinismo tecnológico:

• A mudança tecnológica é a causa da mudança social, considerando-se que a tecnologia define os limites do que uma sociedade pode fazer. Assim, a inovação tecnológica aparece como o fator principal da mudança social;

• A tecnologia é autônoma e independente das influências sociais

A quebra de tais concepções acerca da neutralidade do desenvolvimento científico e tecnológico, de acordo com Auler e Delizoicov (2006a), coloca em xeque o modelo linear de progresso, que prevê que o desenvolvimento científico gera desenvolvimento tecnológico, este gerando o desenvolvimento econômico que determina, por sua vez, o desenvolvimento social.

Ainda de acordo com esses autores (AULER; DELIZOICOV, 2006b), vários discursos, apoiados nas concepções históricas centradas na neutralidade da ciência e da tecnologia, acabam por estabelecer uma

interpretação pouco crítica das relações CTS, que, na concepção freireana, pode ser entendida como consciência ingênua ou nível de consciência real.

Para demonstrar tal questão, os autores apresentam uma esquematização onde as concepções históricas são entendidas como pilares, realimentando a concepção proposta no modelo linear de progresso (FIGURA 1).

Figura 1: Concepção pouco crítica sobre interações CTS. Construções históricas sobre neutralidade da Ciência-Tecnologia oferecem sustentação ao modelo linear de progresso, onde o desenvolvimento científico (DC) gera desenvolvimento tecnológico (DT), este gerando o desenvolvimento econômico (DE) que determina, por sua vez, o desenvolvimento social (DS). Adaptado de Auler e Delizoicov (2006a; 2006b).

Em contraposição a tal abordagem – considerada pouco crítica – apresentada no esquema da figura anterior, Auler e Delizoicov (2006b) propõem outro modelo no sentido de estabelecer uma relação entre o enfoque CTS e o pensamento de Freire.

Para estes autores, ao articular esses dois referenciais distintos, se estabelece o que Freire denominava como nível de consciência máxima

possível. Essa forma de esquematização é apresentada na figura a seguir

(FIGURA 2).

A articulação entre os pressupostos do pensamento de Paulo Freire e do enfoque CTS, de acordo com Auler (2007b), coloca em pauta um processo educacional que se concretiza no ato de aprender participando, em contraposição à concepção propedêutica de ensino, onde essa participação se

dá no futuro, apenas como consequência do que foi aprendido.

Figura 2: Articulação entre pressupostos de Freire e enfoque CTS. Adaptado de Auler e Delizoicov (2006b).

Para este autor, o aprender se dá na busca de respostas, na reinterpretação e ressignificação da experiência vivida e nos encaminhamentos para resolução de problemas contemporâneos, superando a concepção de que é preciso “saber sobre” para “colocar em prática”, que atua de forma a estabelecer uma barreira entre o processo de pensar e de atuar. Nesse contexto, o aprender se dá na própria participação. Ainda segundo o autor,

No campo da educação científica, defende-se a superação da concepção linear, a qual postula que primeiro o aluno precisa adquirir uma cultura científica (estar alfabetizado científico-tecnologicamente), para depois participar da democratização de processos decisórios. Entende-se que a constituição de uma cultura científica não é independente da participação social, mas dimensões estreitamente vinculadas, constituindo processos que se realimentam mutuamente. Em síntese, o aprender tem uma dimensão individual, subjetiva, mas não ocorre num vazio social (AULER, 2007b, p. 184 – 185).

Delizoicov (2008) ressalta o caráter político e ideológico presente no pensamento de Freire, em especial na sua abordagem sobre o papel da conscientização no sentido da promoção da liberdade e, para além, na própria ênfase da libertação como aspecto central da educação. Mas, além deste aspecto, o autor também reforça a importância dos procedimentos e métodos que fundamentam as práticas educativas na perspectiva freireana.

Dentre tais procedimentos, Auler, Dalmolin e Fenalti (2009) destacam a abordagem temática. No referido trabalho, os autores se lançaram ao objetivo

de estabelecer como os temas eram utilizados nas práticas de ensino a partir da perspectiva de Freire e a partir do enfoque puramente CTS. Como resultado, os autores destacam o fato das escolhas e aplicações dos temas no enfoque CTS serem uma opção, em geral, exclusiva do professor, ao passo que, na perspectiva freireana, aplicada a partir do processo de investigação/redução temática, tais temas emergem por meio da participação efetiva da comunidade escolar.

O processo de investigação/redução temática é constituído, de acordo com os autores, por cinco etapas, descritas no quadro a seguir (QUADRO 3). Quadro 3: Etapas do processo de investigação/redução temática a partir da perspectiva de Paulo Freire. Adaptado de Auler, Dalmolin e Fenalti (2009, p. 70).

Levantamento preliminar: faz-se um levantamento das condições da localidade, onde, através de fontes secundárias e conversas informais com os indivíduos, realiza-se a “primeira aproximação” e uma recolha de dados;

Análise das situações e escolha das codificações: faz-se a escolha de situações que encerram as contradições vividas e a preparação de suas codificações que serão apresentadas na etapa seguinte;

Diálogos descodificadores: Os investigadores voltam ao local para os diálogos descodificadores, sendo que, nesse processo, obtém-se os temas geradores;

Redução temática: consiste na elaboração do programa a ser desenvolvido na última etapa. A partir do trabalho de uma equipe interdisciplinar, identifica-se e seleciona-se qual “conhecimento universal” é necessário para a compreensão dos temas identificados na etapa anterior;

Trabalho em sala de aula: somente após as quatro etapas anteriores, com o programa estabelecido e o material didático preparado, que ocorre o trabalho de sala de aula.

Quanto à abrangência dos temas, os autores verificaram que, na concepção CTS, são utilizadas abordagens mais gerais, sem vinculação a contextos locais e mais específicos, ao contrário do que se observou na perspectiva freireana, onde os temas se constituíram a partir de manifestações locais, aspecto fundamental na curiosidade epistemológica.

Outro aspecto identificado na referida pesquisa diz respeito ao envolvimento das disciplinas escolares nos trabalhos avaliados. Os autores revelam que, enquanto no material de orientação freireana observou-se um esforço integrado de aproximação entre as ciências humanas e as ciências

exatas, a articulação e a discussão dos temas no material de orientação CTS articulava apenas a Biologia, Física, Química, Geologia e Matemática. Tal fato chama atenção e gera uma crítica dos autores, para os quais

Os alunos, sistematicamente analisando temas sociais unicamente a partir dos óculos deste campo de conhecimento, poderão construir a compreensão de que tal campo é suficiente para compreender e buscar soluções para problemas sociais marcados pela dimensão científico-tecnológica (AULER; DALMOLIN; FENALTI, 2009 p.80).

A discussão conduzida até o presente momento evidencia que uma maior articulação entre os referenciais de Paulo Freire e do enfoque CTS podem potencializar as práticas de ensino de ciências, no sentido de permitir uma compreensão mais crítica, democrática e participativa diante dos impactos do desenvolvimento científico e tecnológico nas dimensões sociais, políticas e econômicas da sociedade atual.

Tal feito, no entanto, depende, de acordo com Auler (2007b), da adoção de currículos mais abertos que se pautem em temáticas contemporâneas e se posicionem diante de problemas, no sentido freireano de estabelecer “uma nova relação entre currículo e realidade local. Entre o mundo da escola e o mundo da vida (AULER, 2007b, p.175).

Diante de tal constatação, daremos sequência ao nosso itinerário lançando nosso olhar para as questões curriculares e o enfoque CTS em nosso próximo tópico de discussão.