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A educação popular e a escola pública como campos de estudo

A matriz da esperança é a mesma da educabilidade do ser humano: o inacabamento de seu ser de que se tornou consciente. Seria uma agressiva contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse num permanente processo de esperançosa busca. (FREIRE, 2000, p.114)

Refletir sobre o papel da educação na sociedade contemporânea constitui uma tarefa complexa, mediante sua relação contraditória com a sociedade e com o modo de produção capitalista de tendência globalizante.

As formas de organização desse sistema, perverso, através da posse de complexo aparato ideológico e tecnológico e da exploração da força de trabalho, entre outros tantos mecanismos de manipulação, intensificam e aprofundam, a cada dia, as diferenças e desigualdades entre os homens, principalmente no que diz respeito ao acesso às oportunidades sociais de humanização.

Ao analisar a lógica do sistema capitalista Jezine (2006, p.81) enfatiza que, “a sociedade globalizada envolve poderosos jogos de forças sociais polarizadas entre a soberania e hegemonia, democracia e tirania, guerra e revolução, alienação e emancipação”. Dessa forma, as ações dos sujeitos passam a ser influenciadas para a geração de demandas sociais

pautadas sob o princípio do individualismo, como meio de sobrevivência, em detrimento das lutas de classe e dos interesses coletivos.

Jezine (2006) ainda ressalta que as mudanças ocorridas na estrutura da relação capital-trabalho e no modo de produção do sistema capitalista afetaram não só as relações econômicas e sociais, mas também as relações culturais e epistemológicas de interpretação da realidade social, e, portanto, alguns elementos da ação educativa foram ressignificados, alterando a perspectiva prática-ideológica da educação, tais como:

A informação passa a ser fator produtivo e decisivo na valorização do capital; O saber torna-se uma mercadoria chave, assumindo a condição de competidor e cunho comercial no mercado; A cultura globalizada, os fluxos planetários de informações, o dinamismo da telemática [...] desenvolvem novas formas de saber e poder; As instituições sociais clássicas como a família, a escola, a universidade perdem a hegemonia no âmbito do saber, da transmissão de valores e conceitos. A visibilidade social do poder do saber é transferida para a mídia de massa (JEZINE 2006, p.89 – grifos nossos). A rápida transformação das sociedades humanas ocorridas nos últimos tempos, influenciadas pela evolução das tecnologias da informação e da comunicação, provocou rupturas e avanços nas relações sociais. Esse processo desenvolveu uma rede de interdependência mundial e local que ao mesmo tempo interliga culturas e modos de vida diferentes, mas também revela grandes desigualdades.

Perante estes desafios da sociedade contemporânea emergem questionamentos sobre qual a função social da educação formal frente às exigências da economia globalizada, da inovação tecnológica e das desigualdades sociais que continuam a oprimir as classes populares?

Na relação sociedade e educação o poder emanado pelo conhecimento gera um campo de disputa, seja pela ótica das classes hegemônicas que se utilizam desse instrumento para manutenção do status quo ao estabelecer que a educação deve estar a serviço da produção e do consumo, ou pela ótica das classes populares que buscam sua apropriação como instrumento de emancipação humana, de ascensão social e econômica.

Neste contexto, a educação enfrenta o grande desafio de ser um elemento de coesão e não de exclusão social é o que afirma Delors e Eufrázio (1998, p.4) na obra “Educação: um tesouro a descobrir”:

Nesse aspecto, a educação enfrenta enormes desafios, e se depara com uma contradição quase impossível de resolver: por um lado, é acusada de estar na origem de muitas exclusões sociais e de agravar o desmantelamento do tecido social, mas por outro, é a ela que se faz apelo, quando se pretende restabelecer algumas das “semelhanças essenciais à vida coletiva”, de que falava o sociólogo francês Emile Durkheim, no início deste século. [...] Confrontada com a crise das relações sociais, a educação deve, pois, assumir a difícil tarefa que consiste em fazer da diversidade um fator positivo de compreensão mútua entre indivíduos e grupos humanos. A sua maior ambição passa a ser dar a todos os meios necessários a uma cidadania consciente e ativa, que só pode se realizar, plenamente, num contexto de sociedades democráticas.

Nesse sentido, a educação popular deve desenvolver e fortalecer a educação para a cidadania democrática a fim de promover novas formas de educação cidadã. Perante os atuais desafios da sociedade contemporânea e da vulnerabilidade que afeta importantes grupos humanos, não é possível manter uma educação popular somente reativa, é preciso desenvolver uma educação cidadã pró-ativa.

Situando a educação no campo especifico da educação popular, é interessante observar que, antes dela inserir-se em espaços institucionais, tanto na América Latina como no Brasil, consolidou-se como uma ferramenta forjada no campo da organização e das lutas populares tornando-se responsável por muitos avanços e conquistas em nossa história, nos últimos cinquenta anos.

A educação popular41 a um só tempo é uma concepção prático/teórica e uma

metodologia de educação que articula os diferentes saberes e práticas, as dimensões da cultura e dos direitos humanos, o compromisso com o diálogo e com o protagonismo das classes populares nas transformações sociais. (BRASIL, 2014. p.7).

Passadas mais de quatro décadas o legado prático-teórico deixado por Paulo Freire continua atual e denunciador das desigualdades, influenciando positivamente os discursos e as práticas educativas daqueles que, atualmente, defendem a necessidade de oferecer às classes populares e oprimidas uma educação capaz de “criar disposições mentais, críticas e permeáveis que possa superar a força da inexperiência democrática” (FREIRE,1959, p.87)

No livro Pedagogia da Autonomia, Freire (1996) ataca o pensamento e a prática neoliberal afirmando que este sistema abomina o sonho:

41 Definição de Educação Popular apresentada no documento “Marco de Referência da Educação Popular para as

Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia. Daí a minha raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. (FREIRE, 1996, p.15).

Na concepção freiriana, o processo de construção de uma nova consciência problematizadora, politizada, solidária e otimista é que habilitaria homens e mulheres – “como seres inacabados, inconclusos” (FREIRE,1981, p.83) – a interagir no e com o mundo conhecendo-o e transformando-o com sua prática, com seu trabalho, na medida em que vão tecendo sua práxis. A práxis é a reflexão e a ação transformadora da realidade (p.108).

Ao longo do tempo, muitas lutas foram travadas pelas minorias sociais em prol da efetivação do direito público subjetivo da educação formal provida pelo Estado. Essas lutas resultaram em grandes avanços como, a universalização do ensino fundamental de nove anos e a ampliação do acesso à educação de jovens e adultos, ao ensino médio e superior.

No entanto, o processo de escolarização das classes populares é permeado por histórias de fracasso escolar que, de muitas formas, vão impedindo que estudantes vivam a escola como um espaço de aprendizagem significativa, de experiência exitosa e como possibilidade de mobilização educacional e social. Portanto, cabe às políticas públicas assegurar o direito de uma educação pública de qualidade “especialmente aos sujeitos das classes populares, uma vez que são eles que constituem fundamentalmente a escola pública e vêm sendo historicamente excluídos da educação escolar” (ESTEBAN, 2007, p.9).

Assumir a escola pública como lugar de educação popular é considera-la como parte importante na construção de projetos coletivos que incorporam diferentes saberes e a participação de diferentes sujeitos, num importante movimento de reflexão e emancipação. Nesse sentido, Esteban (2007, p.9) argumenta que:

Estudar o cotidiano das escolas públicas e, principalmente, nele atuar exige diálogo constante com os sujeitos que habitam as margens sociais e passam a compor o cenário escolar como consequência da democratização do acesso. Os estudos demonstram que a educação superior tem um papel fundamental no processo de emancipação e na mobilidade social dos sujeitos. Portanto, para a maioria dos jovens provenientes das classes populares a formação em nível superior constitui a única forma de se obter ascensão social, o que só é possível através do ingresso numa universidade pública.

Reconhecemos a importância da educação superior pública, baseada na práxis educativa e dialógica, para o enfrentamento das desigualdades sociais, com vistas à construção de um sistema educacional de qualidade comprometido com “a produção diária do êxito como uma possibilidade real para um segmento social historicamente negado, marginalizado, abandonado, fracassado” (ESTEBAN, 2007, p.11).