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Relação com o tempo: os jovens populares e seus projetos de vida

3.3 As diferentes vertentes das trajetórias de sucesso escolar

3.3.2 Bernard Charlot: a relação com o saber e os casos de êxitos paradoxais nos

3.3.2.4 Relação com o tempo: os jovens populares e seus projetos de vida

Para compreender a relação dos jovens com o tempo é preciso relembrar quem são os jovens pesquisados por Charlot (2009, p.261):

[...] os jovens em questão pertencem em maior escala às camadas populares e ainda tem aqueles que são filhos de pais imigrantes ou de origem estrangeira na França. Eles enfrentaram dificuldades nas etapas anteriores da escolarização e ainda continuam sendo escolarizados em estabelecimentos “difíceis” de “subúrbio”.

Partindo desse entendimento, é possível fazer uma ponte entre as experiências destes jovens e a realidade vivenciada pelos jovens brasileiros de origem popular que, na sua maioria, tiveram seu processo de escolarização marcado pelas desigualdades sociais.

Nos relatos dos jovens de famílias populares investigados foi possível perceber que a relação destes com o tempo é, pois, de uma expectativa de futuro baseada no curso “normal” da vida (crescer, estudar, concluir os estudos, encontrar um trabalho, casar-se e ter filhos). Segundo Charlot (2002, p.17) “para quem nasceu num bairro popular francês, numa favela, ter uma vida normal é uma conquista, não é uma coisa dada no nascimento”.

[...] estes jovens não planejam projectos mirabolantes, eles têm um projeto muito simples, tão simples que a classe média (nomeadamente os professores e os assistentes sociais) não veem que ali reside um projeto: ter uma vida normal (CHARLOT, 2009, p.61).

Mas a vida destes jovens nem sempre segue o percurso tranquilo, por vezes esse curso normal do tempo é desorientado e até interrompido por acontecimentos positivos ou negativos, por “rupturas” que desestabilizam e perturbam o curso normal das coisas afetando diretamente o processo de escolarização.

Dentre os acontecimentos citados aparecem com maior frequência as “rupturas” familiares, como: a separação ou divorcio dos pais, falecimento de um deles, processo de imigração, mudança de moradia, desemprego ou acontecimentos obscuros. Também surgem os acontecimentos relacionados ao desgosto amoroso, a droga, a descoberta de uma religião, a experiência escolar etc.

Enquanto que alguns jovens conformam-se com os acontecimentos da vida como sendo uma fatalidade, há outros que mesmo reconhecendo a força das rupturas envolvem-se no combate e demonstram uma vontade de lutar para ultrapassar os problemas, “fazer as coisas acontecerem” porque “nada acontece sem esforço” (CHARLOT, 2009, p.61); e “outros recompõem-se através de forças misteriosas que assim passam a reger-lhes a vida” (CHARLOT, 2009, p.62).

Na verdade, Charlot afirma que a relação com o tempo das famílias populares e dos seus filhos é uma relação de luta em prol da conquista de uma vida normal que possa ser transmitida às novas gerações.

É preciso estudar e obter os diplomas para ter um trabalho, o que permite ter a sua autonomia, construir uma família, triunfar na vida e ser alguém, enfim ter uma boa vida. Eis, fundamentalmente, o que para eles é importante, o que eles esperam da existência (CHARLOT, 2009, p.55)

Portanto, a relação desses jovens com o tempo é uma relação tipo ‘táctico” e não “estratégico”, eles não desenham a priori o projeto da sua vida de forma cronometrada e a longo prazo. Eles vão se ajustando e tirando partido dos acontecimentos da vida e assim reorientam seus projetos a curto prazo para atingir a meta final que é o projeto de “uma vida normal”. Diferentemente das classes médias que estabelecem uma relação com o tempo tipo “estratégica”, “ao tentar planificar para os seus filhos percursos a longo prazo que lhe assegurem triunfo e mobilidade social ascendente” (CHARLOT, 2009, p.61), como por exemplo, o prolongamento dos estudos em nível superior.

Charlot defende que, ao contrário do que se pensa, estes jovens têm uma consciência política constituída por experiências pessoais e com frequência apresentam uma forte consciência da dominação, das desigualdades e das diferenças sociais.

As principais formas de dominação social a que esses jovens estão submetidos e que interferem na relação com o saber e com a aprendizagem diz respeito ao: racismo étnico (negros), ao preconceito social (oriundos de bairros populares e imigrantes), às relações de gênero (sexo feminino) e o não domínio da linguagem legítima no uso escolar e profissional. E, para além da natureza identitária da dominação dos sujeitos, acrescenta-se a problemática da crise econômica que tem, como vertentes, o “desemprego” e a “modernização” dos meios de produção e de gestão.

Embora confrontados com o processo de dominação social que muitas vezes esmaga ou anula o valor dos sujeitos, alguns jovens adotam estratégias diferentes para lidar com a questão da dominação e ainda conservam a esperança e o desejo de “ser alguém”.

Para se vir a ser alguma coisa, alguém, alguém que se pode levar em consideração é preciso aprender. Quando um aluno tem esse tipo de relação com a aprendizagem ele não necessita de motivação externa, ele é movido por um motor interno. [...] O motor da mobilização para aprender é o desejo de si envolvido nas redes de desejo tecidas com a família, com os amigos, por vezes alguns professores, muitas vezes a antecipação dos seus futuros filhos (CHARLOT, 2009, p.204).

Segundo Charlot essas duas forças antagônicas, “a dominação” e o “desejo”, contribuem para a construção de histórias singulares. O saber, de forma geral a “aprendizagem”, podem ser instrumentos de dominação e também objeto de desejo.

No caso dos jovens dos meios populares a escola, o sucesso escolar, “é única forma de se safar” da condição precária em que vivem nos bairros de subúrbio, porque a escola está associada a relação diploma-emprego-salário. Logo, “o significado da escolarização emerge como possibilidade de emancipação de suas condições sociais e culturais de existência” (VIANA, 2003, p.181).

No entanto, para vencer na vida é preciso ir além do aprender e realizar um trabalho sobre si próprio – é preciso evoluir, amadurecer, “crescer”. Do ponto de vista pedagógico, o crescimento intelectual e o êxito escolar exigem do indivíduo trabalho (esforço, dedicação), alguns sacrifícios e renúncias: o afastamento dos amigos, da vida social/ lazer, dos eventos familiares etc. Mas para que isso aconteça, “estes alunos precisam de um projecto seu, um projecto de vida ... e de professores que, por último, consigam explicar-lhes o que fazem ali, o que lhes ensinam” (CHARLOT, 2009, p.267).

Podemos concluir que o estudo de Charlot sobre a relação dos jovens das camadas populares com o saber e com a escola, mais especificamente com o sucesso escolar, aponta uma diversidade de processos que precisam ser analisados em três dimensões: dimensão epistêmica (os dispositivos cognitivos e didáticos), dimensão identitária e social (os dispositivos relacionais, consigo e com os outros). Logo, a aprendizagem do sujeito não passa pelos mesmos processos, e a situação de “aprendizado” ocorre num espaço-tempo da história singular de cada sujeito.

Nesse contexto, Charlot advoga que a família e a escola são dois espaços importantes e heterogêneos na educação e na formação do sujeito e, portanto, precisam ser explorados

considerando que “a relação com o saber é relação como mundo, em um sentido geral, mas é, também, relação com os mundos particulares (meios e espaços) nos quais a criança e o jovem vive e aprende” (CHARLOT, 2000, p.67).

Essa constatação de Charlot se apoia na argumentação de Rochex (1995, apud VIANA, 2003, p.182) ao dizer que dentre as condições que possibilitam ou dificultam o sucesso escolar, as quais são produzidas anterior e exteriormente à escola, estão

[...] a história e as práticas familiares, as competências, procedimentos e disposições cognitivas que aí se constroem, as continuidades e contradições que se estabelecem no seio dos processos identificatórios ligadas às relações entre gerações.

Mesmo reconhecendo que nestes espaços de aprendizagem as práticas dos agentes educativos (pais e professores) podem levar o sujeito à condição de dominado, o autor chama atenção para a necessidade de compreender “qual é o tipo de relação com o mundo e com o saber que a criança/ jovem deve construir, com a ajuda da escola, para ter acesso ao pleno uso das potencialidades escondidas na mente humana” (CHARLOT, 2000, p.65).

Com isso, o autor reclama por uma educação, uma pedagogia ativa, que permita descobrir outra forma de relação com o mundo distinta da construída no dia-a-dia das famílias populares, que considere as dificuldades específicas enfrentadas por estes jovens e apontem novas possibilidade para a construção do sucesso escolar.

Considerando que a escolarização, sobretudo a prolongada para os jovens das camadas populares, implica emancipação social e também um provável distanciamento das origens – acarretando “a renúncia, provisória ou profunda, de outras formas de relação com o mundo, consigo e com os outros" (CHARLOT, 2000, p.64) – caberá ao pesquisador investigar em que medida essa situação provocará, ou não, rupturas no plano simbólico das histórias escolares analisadas.

Portanto, caberá ao “investigador explorar e analisar as formas heterogêneas da aprendizagem e da subjetividade, sem hierarquizar as normas” (CHARLOT, 2009, p.273), em outras palavras, é preciso ter o cuidado de considerar que existem processos comuns ao “grupo de jovens dos meios populares”, mas isso não quer dizer que deve ser aplicado a todos os sujeitos do grupo, pois a história escolar de cada sujeito precisa ser analisada na sua singularidade.

3.3.3 Bernard Lahire: a interdependência das configurações familiares e o sucesso