• Nenhum resultado encontrado

A EDUCAÇÃO SUPERIOR PRIVADA NO DISTRITO FEDERAL E A NOÇÃO

CAMPO EM BOURDIEU

Bourdieu & Wacquant (1992, p.97) conceituam campo da seguinte forma:

Eu poderia, deformando a célebre fórmula de Hegel, dizer que o real é relacional: o que existe no mundo social são relações - não as interações ou os elos intersubjetivos entre os agentes, mas as relações objetivas que existem "independentemente das consciências ou das vontades individuais", como dizia Marx. Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede, ou uma configuração de relações objetivas entre as posições. Estas posições são definidas objetivamente na sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus ocupantes, agentes ou instituições, pela sua situação (situ) atual e potencial na

estrutura de distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja possessão comanda o acesso aos benefícios específicos que estão em jogo no campo, e, ao mesmo tempo, pelas suas relações objetivas com as outras posições (dominação, subordinação, homologia etc.). Nas sociedades altamente diferenciadas, o cosmos social é constituído pelo conjunto desses microcosmos relativamente autônomos, espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de uma necessidade específicas e irredutíveis àquelas que regem os outros campos.

Bourdieu assume como objeto de estudo o sistema de relações objetivas, as relações dialéticas entre as estruturas componentes do mesmo e as disposições duráveis dos atores por meio das quais as estruturas vão mudando e sendo modificadas. Para ele (Bourdieu, 1992, p.102),

as ‘teorias’ são programas de pesquisa que reclamam não o ‘debate teórico’, mas a aplicação prática capaz de refutá-las ou generalizá-las; ou melhor, de especificar e diferenciar sua pretensão à generalidade.

Com essa visão da práxis, o autor entende a percepção do mundo social desde duas perspectivas (Bourdieu, 2003, p.139-140):

do lado objetivo, ela está socialmente estruturada porque as autoridades atribuídas aos agentes ou às instituições não se oferecem à percepção de maneira independente, mas em combinações de probabilidade muito desigual(...)do lado subjetivo, ela está estruturada porque os esquemas de percepção e de apreciação, suscetíveis de serem utilizados no momento considerado, e sobretudo os que estão sedimentados na linguagem, são o produto das lutas simbólicas anteriores e exprimem, de forma mais ou menos transformada, o estado das relações de poder simbólico.

Ao analisar a relação do campo com o mundo social, Bourdieu analisa as práticas sociais como constituintes sincronizadas da efetivação do mesmo; levando em consideração tanto as necessidades dos agentes quanto os objetivos da sociedade. Resgatando a figura do agente social, Bourdieu estabelece que os agentes constroem a realidade social individual e coletivamente, por meio de categorias produzidas não apenas por eles, mas como resultado de um processo longo, lento e inconsciente de incorporação das estruturas objetivas, denominado inculcação (Bourdieu, 2002).

Grupos e estratos sociais, na visão de Bourdieu são portadores e disseminadores de mecanismos, convenções e valores socialmente compartilhados, que geram um sistema de disposições sociais, atualizado por determinado estilo de vida. Os atores, enquanto constroem a realidade social, se envolvem em lutas e transações, buscando a sedimentação de sua visão, a partir de interesses, pontos de vista e princípios que delimitam sua posição no espaço social. É assim que “a verdade do mundo social está em jogo nas lutas entre agentes que estão equipados de modo desigual para alcançar uma visão absoluta” (Bourdieu , 1990, p.164).

Bourdieu deduz que à medida que a complexidade social aumenta, maior é a sua diversificação nos vários campos – cultural, educacional, político, científico, artístico, filosófico – que atuam de acordo com especificidade e estrutura peculiares, assim estruturando a ação dos agentes. Em sua atuação dentro do “campo”, o agente busca atuar de acordo com o campo; ou seja, ajusta sua forma de agir, pensar ou perceber às regras e exigências do campo.

Considerando-se as Instituições de Ensino Superior do Distrito Federal como um campo, as IESs privadas podem ser consideradas um “sub-campo”, uma parte do campo. No entanto, Bourdieu (2003) demonstra que o sub-campo também é um campo, de acordo com as suas especificidades e lutas. Logo, consideramos simultaneamente as Instituições de Ensino Superior privadas do Distrito Federal, ao mesmo tempo, como um sub-campo do grupo de IESs do Distrito Federal, mas também como um campo em si. E assim será referido nesta tese.

Ao analisar-se a estrutura de poder do campo e um lugar de destaque alcançado por determinada instituição de ensino superior privada, em seu campo pode-se perceber como a credibilidade ou confiabilidade desenvolvida ao longo do tempo opera sobre os outros atores e agentes tais como alunos potenciais, alunos atuais da IES, a concorrência, além de outros atores, instituições e comunidade. Bourdieu (2003, p.238) afirma:

De fato, os esquemas de percepção e de apreciação que estão na origem da nossa construção do mundo social são produzidos por um trabalho histórico coletivo, mas a partir das próprias estruturas deste mundo: estruturas estruturadas, historicamente construídas, as nossas categorias de pensamento contribuem para produzir o mundo, mas dentro dos limites da sua correspondência com estruturas preexistentes. É na medida e só na medida em que os atos simbólicos de nomeação propõem princípios de visão e de divisão objetivamente ajustados às divisões preexistentes de que são produto, que tais atos têm toda a sua eficácia de enunciação criadora que, ao consagrar aquilo que enuncia, o coloca num grau de existência superior, plenamente realizado, que é o de instituição instituída. Por outras palavras, o efeito próprio, quer dizer, propriamente simbólico, das representações geradas segundo esquemas adequados às estruturas do mundo de que são produto, é o de consagrar a ordem estabelecida: a representação justa sanciona e santifica a visão dóxica29 das divisões, manifestando-a na objetividade de uma ortodoxia por um verdadeiro ato de criação que, proclamando-a à vista de todos e em nome de todos, lhe confere a universalidade prática do oficial.

Assim, é que em estudo relativo à atratividade de IESs privadas, Perfeito et al. (2004, p.8-9) mencionam que os quatro itens colocados em primeiro lugar pelos alunos pesquisados foram, respectivamente: qualificação dos professores, principalmente, mestres e doutores;

29 Para Bourdieu (1983, p. 91) a doxa refere-se a “tudo aquilo que constitui o próprio campo, o jogo, os objetos

de disputas, todos os pressupostos que são tacimente aceitos, mesmo sem que se saiba, pelo simples fato de jogar, de entrar no jogo”.

possibilidade de realização profissional; IES reconhecida pela qualidade de ensino; saber que a instituição possui uma boa conceituação perante o MEC, isto é, é fundamental na escolha a “consagração oficial” tal como o bom conceito perante o MEC e a IES reconhecida pela qualidade de ensino; e, em relação aos professores, a titulação – mestres e/ou doutores.

O segundo item destacado – a possibilidade de realização profissional – conforme mencionado pelos alunos, se destaca a partir da titulação acadêmica, conforme Bourdieu (2003, p.149 em nota de rodapé) cada vez mais ligada à retribuição, à realização profissional:

A entrada na profissão dotada de um título é cada vez mais estreitamente subordinada à posse de um título escolar, e é estreita a relação entre os títulos escolares e a retribuição profissional.

É assim que nas relações do campo – Instituições de Ensino Superior Privadas – a confiança é criada, desenvolvida e propalada a partir do próprio campo e de sua estruturação. Essa confiança é creditada à instituição por ocasião do ingresso do aluno e testada gradativamente em várias situações de troca (econômica e/ou social) na busca de comprovação da confiança e do reconhecimento inicialmente depositados pelo aluno na IES. Ou como coloca Bourdieu (2003, p.187-188):

capital simbólico, crédito firmado na crença e no reconhecimento ou, mais precisamente, nas inúmeras operações de crédito pelas quais os agentes conferem a uma pessoa – ou a um objeto [ou instituição] – os próprios poderes que eles lhes reconhecem. E a ambigüidade da fides, analisada por Benveniste (1969): força objetiva que pode ser objetivada nas coisas,(...)produto de atos subjetivos de reconhecimento e que, enquanto crédito e credibilidade, só existe na representação e pela representação, na confiança e pela confiança, na crença e pela crença(...)O poder simbólico é um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com que ele o credita, uma fides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo nele sua confiança.

Tanto quanto a IES, o professor, se principal representante perante o aluno é depositário dessa fides do saber não somente em relação ao conhecimento mas a juízos de valor, valores socialmente compartilhados e transmitidos ao aluno num processo de inculcação e titulação (Bourdieu, 2002). Sendo assim o crescimento da confiança inicial é confirmado (ou não) pelas relações de saber e valores transmitidos nas trocas sociais (Mauss, 2003) estabelecidas com os alunos nas aulas, nas provas, no sistema de avaliação, nas conversas, nos apertos de mão. Analisando o campo do ensino superior e a confiança Bruhn (2002, vii), explica:

Trabalhando durante 35 anos em instituições de ensino superior como estudante, professor, pesquisador e administrador, trabalhei em diversas instituições de ensino, faculdades e universidades, tendo observado e experimentado um amplo espectro de confiança e desconfiança. Usualmente o foco era a liderança, que de acordo com a

literatura sobre liderança é quem define o estágio de confiança ou desconfiança no qual a organização se encontra. No entanto, percebi que líderes confiáveis nem sempre conseguiam mudar uma cultura organizacional de desconfiança, enquanto líderes com características semelhantes à cultura se adequavam bem a essas organizações. Por outro lado, quando líderes e organizações confiáveis se encontravam, a sinergia resultante criava alto moral, orgulho pela organização e alta produtividade, que se demonstrava pela alta permanência dos indivíduos na organização, por períodos de tempo mais longos, bem como altos níveis de lealdade à organização.

A maioria dos reitores, ou outro tipo de líderes, gosta de dizer que trabalha em uma organização confiável. Porém, organizações não são sempre confiáveis ou não confiáveis. Elas têm ciclos de vida que são influenciados por eventos externos que alteram o grau de confiança ou desconfiança na organização, ao longo do tempo.

À medida que a oferta de vagas nas IESs privadas do Distrito Federal chegaram a um ponto de crescimento quase vegetativo, uma certa estabilidade, se comparada a períodos anteriores (por exemplo, 1995 a 2001 e 2001 a 2003), as trocas sociais relacionadas à confiança tornaram-se fundamentais para a sobrevivência e posicionamento de liderança no campo de ensino superior privado do Distrito Federal.

É de se destacar que a sociedade vem cobrando, via reforma educacional, maior participação nos conselhos de gestão das IESs. Como menciona Rhodes (2004), em vários países os conselhos de gestão das universidades contam com a participação de membros da comunidade, como instrumento de articulação social com as sociedades que as permeiam. Sobral (2000, p.11) relata:

pode-se enfatizar a idéia inicial de que a concepção de educação muda através dos tempos e que, a sociedade contemporânea, considerada como sociedade do conhecimento, requer um repensar sobre a educação. Na década de 90, ela está sendo pensada como educação para competitividade (mais no nível médio e superior) e como educação para a cidadania social (mais no nível fundamental). Porém, é importante destacar que uma única concepção de educação não pode dominar inteiramente, da mesma forma como se afirmou anteriormente que o novo modo de produção de conhecimento não pode excluir o antigo ou que se sugeriu um modelo misto de desenvolvimento científico e tecnológico.

No que se refere à educação, as dimensões social e econômica não são necessariamente excludentes. A visão utilitarista não pode eliminar a visão humanista.

A maior relação da educação proporcionada pelas IESs focada em ambas as dimensões: social e econômica, como menciona Sobral, necessita maior reflexão. Analisando os desafios do ensino superior brasileiro, Martins comenta (2006, p.1015):

Um dos desafios centrais do ensino superior brasileiro é repensar o tipo de formação acadêmica que vem sendo propiciada aos seus estudantes, procurando equilibrar a aquisição de conhecimentos numa determinada área profissional específica com uma formação intelectual mais generalista, de cunho humanístico, capacitando-os a analisar e situar-se diante do processo de mutações das sociedades contemporâneas e de seus inerentes riscos, imprevistos e incertezas, que perpassam as esferas pessoais, sociais e profissionais.

E juntamente com as Instituições de Ensino Superior públicas, as Instituições de Ensino Superior privadas têm um papel fundamental nessa transformação, nessa busca por uma educação técnica, mas humanística.

Ou como informado por Paulo Henrique Martins (2004, p.71):

Acreditamos que as estruturas estatais, sobretudo nos países do Sul, estão sendo pressionadas para a realização de mudanças institucionais importantes, o que pode ser identificado, no Brasil, por exemplo, ao se analisar as mudanças estruturais na área da saúde. Estas mudanças ocorrem ainda em outras áreas e são observadas quando nos aproximamos das realidades municipais e verificamos as novas iniciativas públicas nos setores do trabalho, da educação [grifo nosso] e da organização das mulheres, entre outros. Em geral, as políticas de descentralização estão colocando novos desafios para a gestão estatal, implicando, igualmente, na necessidade de o Estado fazer alianças [grifo nosso] com associações não-governamentais e associações locais, contribuindo para estimular diversas mobilizações cívicas e autonomizantes.

A partir do que foi dito acima, um Estado que forneça uma base institucional que favoreça e premie a solidariedade e a confiança como valores institucionais e sociais, valores postos e instilados nas políticas educacionais tanto voltadas a Instituições de Ensino Superior Públicas como a Instituições de Ensino Superior Privadas, pode estimular uma mudança no processo educacional que traga em seu bojo mudança social. Pois cada vez mais, a educação é fundamental no desenvolvimento do capital simbólico que propiciará às gerações presentes e futuras trocas sociais de qualidade, começando com o aprofundamento da relação de confiança das Instituições de Ensino Superior Privadas com alunos, professores/parceiros, funcionários e a comunidade/sociedade.

Uma das conseqüências esperadas dessa reflexão e do estudo da confiança como um capital organizacional é que à medida que as organizações percebam de forma mais ampla itens intangíveis e diferenciados em sua constituição, de origem sociológica como capital intelectual/cultural (Bourdieu, 2002) e confiança (Simmel, 1979; Mauss, 2003) comparando- se em importância com o tradicional capital econômico – que para muitos teóricos organizacionais e economistas é o único que realmente importa – as relações existentes entre valores organizacionais e sociais possam ser repensadas de uma nova forma. Que se reveja, portanto, o papel das organizacões.

Buscando uma visão geral do estudo até aqui, os principais eixos analisados foram: A reflexão sobre o capital, inicialmente por meio das reflexões de Weber e Marx, com maior destaque para o capital econômico. A partir daí, ancorados em Bourdieu, analisamos o capital cultural, principalmente em sua manifestação denominada capital intelectual. Seguimos com Putnam, Coleman e outros no crescimento e desenvolvimento do capital social, um capital baseado em relacionamentos, já percebido, embora não com essa

nomenclatura, por Tocqueville, na primeira metade do século XIX, como fundamental para uma maior coesão social, a partir de normas de relacionamento bem definidas, sistemas de participação social e confiança.

Seguimos analisando o Capital Social Organizacional: a confiança, inicialmente a partir de Simmel, e seu destaque de elementos racionais, tais como “boas razões” para confiar, bem como “um elemento adicional de socio-psicológica quase-religiosa fé” (Simmel, 1979, p.179). Verificamos também o desenvolvimento do construto confiança na Sociologia e nas outras Ciências Sociais. Conclui-se com o conceito de confiança nas organizações e, especialmente buscando aprofundar-se, a partir das várias vertentes desse conceito, na pesquisa empírica em IESs privadas de Brasília, objetivando delimitar melhor o construto.

A partir daí fizemos uma análise nos vários autores com relação à troca econômica e à troca social, com ancoragem, além de outros autores, em Mauss e seu “Ensaio sobre a Dádiva”. Ligadas a esses eixos temáticos, houve variadas discussões visando melhor esclarecimento da linha teórica desenvolvida, sendo as principais:

- O conceito de interesse, inicialmente amplo, havia sido tomado pela economia, ligado ao homo oeconomicus, significando fundamentalmente interesses econômicos individuais. Nessa discussão vimos, a partir de clássicos como Tocqueville, Marx, Weber, Durkheim, Simmel, como também Mauss, Polanyi, Schumpeter, Veblen; além de sociólogos contemporâneos como Bourdieu, Swedberg, Granovetter e outros, que há interesses individuais e coletivos, bem como interesses econômicos e ideais (Weber, 1978); mas que, além dos interesses econômicos envolvidos em uma troca econômica, estão os interesses sociais e a troca social; assim, mesmo os interesses econômicos estão socialmente “imersos” (embedded).

- As firmas: a partir da análise weberiana que as denominava “organização capitalística racional” vimos, via análise de Fligstein, Granovetter, DiMaggio, Siqueira & Bandeira, Almeida, Abramovay e outros que com a evolução do capitalismo, ou dos vários capitalismos, que no denominado capitalismo pós-industrial valores como confiança, dádiva e laço social têm tido seu desenvolvimento. E ficou, dentre outras, a questão: Será que o capitalismo atual mantém as mesmas características da época em que Weber fez suas análises?

- A análise de confiança e valor em que inicialmente por meio da análise clássica de Marx, perpassando Mankiw, na teoria econômica, Kotler, na teoria organizacional, a análise maussiana de valor e concluindo com a análise bourdieuniana de valor, percebeu-se que os capitais organizacionais - econômico, cultural/intelectual, capital

social organizacional, ou seja, a “confiança” - são componentes do valor organizacional, geram valor para a organização, mas não são o valor em si. A partir do conjunto de capitais, como percebido pelos compradores/clientes vai se formar o valor organizacional. E esse valor não é apenas econômico, mas, certamente, também social. - A troca maussiana (Mauss, 2003) fundamentada nos conceitos básicos de dar, receber e retribuir; mais recentemente analisados por Caillé, Godbout, Martins, Nunes, além de outros; conceitos esses que precisam de tempo para seu pleno desenvolvimento, e que, ao longo de seu ciclo, via confiança desenvolvida nas trocas sociais e trocas econômicas (socialmente “imersas” – embedded) vão gerar o laço social: uma relação de confiança e confiabilidade de longo prazo.