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A publicidade, há anos, desenvolve em suas campanhas a criação de identidades, a representação de "estilos de ser", um habitus de caráter múltiplo, cambiável e fluido [percebemos que o habitus na moda segue exatamente essas características descritas por

Bourdieu (2004)]. Entre as imagens que marcaram alguns anos da década de 1990, destacam- se as divergências das representações da mulher, que vão da sensual - e até mesmo erótica -, voluptuosa - e até mesmo masculina - à (falsa) religiosa. E essas divergências não são o bastante, pois, durante a análise das imagens percebemos que cada uma nos confere um toque de magia, mistério e sedução sujeitos à efemeridade que tanto permeia o universo da moda.

A Alta Costura iniciou, além disso, um processo original na ordem da moda: psicologizou-a, criando modelos que concretizam emoções, traços de personalidade e de caráter. Desde então, segundo o traje, a mulher pode parecer melancólica, desenvolta, sofisticada, severa, insolente, ingênua, fantasista, romântica, alegre, jovem, divertida, esportiva: aliás, essas essências psicológicas e suas combinações é que serão sublinhadas de preferência pelas revistas de moda (LIPOVETSKY, 2009, p. 112). As imagens que estão sendo analisadas como representações do consumo pertencem à moda, e como tais, estão sujeitas às suas leis e características intrínsecas. Portanto, torna-se relevante compreender as particularidades, evoluções e transições da moda para que possamos analisar as fotografias que as pertencem.

A moda, embora não pareça, à primeira vista, é um fenômeno recente. Surgiu no final da Idade Média, quando a burguesia alcançou um maior poder aquisitivo nas sociedades e passou (grosso modo) a "imitar" o vestuário e estilo da nobreza. A nobreza, ao tomar conta das imitações, transformava, rapidamente, seus vestuários e estilos de vida por algo "novo" e a burguesia, idem. Dessa forma, surgiu o caráter cambiável da moda, transitório, passageiro e volúvel às novidades.

A moda está nos comandos de nossas sociedades; a sedução e o efêmero tornaram- se os princípios organizadores da vida moderna; vivemos em sociedades de dominante frívola, último elo da plurissecular aventura capitalista-democrática- indivudalista. (LIPOVETSKY, 2009, p. 13).

Anterior ao surgimento da moda, a tradição vigorava como aspecto fundamental e diferenciador dos objetos. Tal pensamento passou a ser progressivamente substituído pela moda, que elevou o fascínio da novidade. Surge o momento definido por Lipovetsky como o fim das "Eras de costume" e o surgimento das "Eras da moda". Ou seja, abandonaram-se os laços das tradições com o antigo, o costumeiro e adotou-se, com cada vez mais necessidade e avidez, o "Novo". Assim, difundiu-se a moda, sempre atenta às novidades na França, Itália e Espanha, o estrangeiro como ideal (bem como fazia a burguesia diante das modas da nobreza). A novidade passou a gerir as buscas por estar “na moda”, ou seja, “estar à frente” das últimas “tendências” garantia aos indivíduos alcançar visibilidade social. O traço mais específico que marca o surgimento da moda é a variação. “Não há sistema da moda senão na conjunção destas duas lógicas: a do efêmero e a da fantasia estética” (LIPOVETSKY, 2009, p. 37).

Santaella (2004) argumenta que a moda alcançou grande destaque, a partir da revolução industrial, quando os produtos passaram a ser fabricados em série. A moda difundiu-se juntamente com a difusão consumista da cultura de massas, tão passageira quanto as imagens que transitam nas mídias, no cinema e na publicidade. Mas o que a moda visa despertar nos espectadores é a sensação. “Sensação é um processo nervoso, físico e mental, que se desencadeia em um órgão dos sentidos quando este reage a um estímulo externo.” (SANTAELLA, 2004, p. 119). As fotografias parecem exercer um papel fundamental em busca de provocar tais sensações nos espectadores, como complementa Santaella (2004, p. 120), “O que seria da moda sem as imagens, sem a pulsão escópica? Como poderia subsistir se não fosse através do olhar que é mirado pelo objeto do seu fascínio, olhar capturado na rede insidiosa de um desejo sem nome e sem lugar?”

A incessante busca pelo novo, projetada pela moda, aponta o atual desejo de afirmação do “eu” por meio do consumo. Consumo este, como Simmel (2008) argumenta, profundamente fincado nas relações sociais, desenrolando um processo de compra para autoafirmação em sociedade. A moda consiste em um processo paradoxal: ao mesmo tempo em que modelos são universalizados e precisam/desejam ser imitados pelos outros, há, em cada indivíduo, uma vontade de diferenciação dos demais, em marcar o seu estilo e afirmar a construção de um "eu" social (SIMMEL, 2008).

Assim como Simmel, Svendsen acredita que “Não consumimos para nos tornarmos conformistas, sim para expressar uma individualidade” (SVENDSEN, 2010, p. 132). As pessoas desejam ser iguais e, ao mesmo tempo, diferentes; precisam estar "na moda", mesmo que, de um dia para o outro, as regras mudem e seu vestuário (instantaneamente) se encontre "antiquado". No entanto, ainda nos surpreendemos com os surgimentos e desaparecimento de um determinado estilo “(...) cada moda singular surge, de certo modo, como se pretendesse viver eternamente” (SIMMEL, 2008, p. 53).

As mudanças, durante toda a história, causaram impacto nas sociedades, rejeições, críticas, condenações, porém, após perceber que a maioria social aprova o novo estilo, as pessoas (em grande parte) adquirem e incorporam, às suas vidas, tal produto que promete livrá-las do terror da marginalização social. O sucesso da moda consiste no desejo/necessidade que possuímos da convivência e do reconhecimento social e, para que isso ocorra esperamos, precisamos consumir, das roupas às identidades pessoais, o que mais nos identificamos e que pode nos conferir visibilidade diante os outros. “Não consumimos apenas para suprir necessidades já existentes: nós o fazemos provavelmente para criar uma identidade.” (SVENDSEN, 2010, p. 129).

A partir da necessidade de diferenciar-se emergiu a moda que, através da sua ambiguidade e efemeridade, permite a diferença com base nas semelhanças, e dessa forma, escolhemos uma identidade que nos agrada.

Precisamos de razões para preferir uma coisa à outra numa sociedade de consumo. Precisamos de diferenças. Compramos essas diferenças, em particular, na forma de valores simbólicos. Podemos dizer que, em grande medida, o valor simbólico substituiu o valor de cada utilidade, isto é, que nossa relação com os objetos tem cada vez menos a ver com o uso (SVENDSEN, 2010, p. 138).

Outra característica marcante da moda é a sua pluralidade. Svendsen (2010) defende que não é possível pensá-la no singular, pois são muitas e cabe a nós escolhermos exatamente a que nos convém, de acordo com o ambiente sociocultural ao qual pertencemos. É com uma falsa promessa de "liberdade" que a moda se funda, afinal, todos possuem liberdade de escolher os produtos que formarão o seu "estilo" de ser, no entanto, as opções já são previamente escolhidas. São muitas as escolhas, bem como as identidades que nos são oferecidas nas fotografias de moda. Assim, podemos compreender o porquê da fluidez das representações expressas nas cinco imagens anteriores. Além da variação aparente, de uma fotografia para outra (que marcam estilos distintos), ainda percebemos a mesma variação dentro da mesma coleção. “A top model, mais do que modelo, é hoje artista em período integral, um „corpo intertextual‟, presente em diferentes âmbitos, que consegue dar consistência e identidades múltiplas aos modelos que veste” (MARRA, 2008, p. 58).

Através de um “efeito comportamento” (MARRA, 2008) que a moda possui, percebemos que a mulher consegue ser, ao mesmo tempo, sensual e sarcástica, conservar um "erotismo", ainda que muito contido pelos ditames do mercado, apresentar uma sensualidade que já virou "clichê", trocar de roupa e adquirir uma postura talvez um pouco masculina, mas se enquadrando em limites estabelecidos pela campanha e, por fim, uma "distinta" senhora que apresenta um toque de "perversão", ironia ou até mesmo profanidade. Todos esses modelos apresentados nos mostram que, antes de tudo, a imagem feminina - quando representada na publicidade de moda - apresenta as suas divergências, onde se torna relevante compreender bem mais que o que simplesmente "parece" ser.

Essas transformações da representação feminina marcam tentativas de construções de identidades, que talvez não tenham a precisão de definir uma mulher específica, já que estão sujeitas às lógicas do mercado e, para isso, é necessário mudar sempre. Não é possível "estagnar" e manter uma construção clara em uma única fotografia.

Na tentativa de criar imagens para a mulher - e assim reitera-se, no plural - a marca Dolce & Gabbana participa do movimento que a moda dilacera: o do individualismo.

As pessoas possuem a necessidade de criar o seu estilo - mesmo que passageiro - diante das sociedades. Esse processo - tão natural no universo da moda - dilacerou correntes individualistas que já vêm se difundindo desde o surgimento da moda. Lipovetsky (2009) compreende que a moda agrega o chamado “individualismo estético” entre os sujeitos que, ao adotarem o uso de determinados trajes, maquiagem, penteados, participam de um processo de afirmação do “Eu” em sociedade, na eterna busca da diferenciação dos outros. Para Marra (2008) a moda é comportamento. Mais do que escolher uma roupa, escolhemos identidades que pretendemos seguir e de uma forma de ser associada a essa roupa.

Todo criador de moda, quando propõe uma roupa, ou melhor ainda, uma certa linha, propõe, antes de tudo, um modelo de mulher e de homem, um modelo, uma tipologia desejável, nova, diferente daquelas disponíveis, um modelo virtual que necessita de um atestado de verdade para se tornar crível e, portanto, adquirível por parte do público (MARRA, 2008, p. 57).

A partir da segunda metade do século XIX, conforme Lipovetsky (2009), teve início o período conhecido como "Moda de cem anos", período que consagrou a moda de acordo com a concepção moderna do termo. A alta costura emergiu apresentando um olhar que se tornou cada vez mais refinado. Seria possível criar peças exclusivas que fariam os indivíduos sentirem-se cada vez mais únicos e "na moda". As grandes referências eram ditadas na Europa, pela França, Espanha e Itália. Mas, em consequência a essas tendências, as confecções populares dilaceraram-se em grande escala, popularizando o consumo e garantindo que as classes com menor poder aquisitivo também obtivessem visibilidade na moda. Foi nesse período que marcas, como a Chanel, revolucionaram o vestuário feminino e, consequentemente, o comportamento da mulher, ao lançar o estilo "pobre" de vestir-se, o simples e o casual, considerada o alvo das grandes imitações e garantindo um maior acesso das classes populares à moda.

As transformações do comportamento feminino, que marcaram o século XX, em grande parte, foram incentivadas pela moda, pois esta, ao desenvolver identidades e criar "estilos", fez com que as mulheres se libertassem de suas vidas servis em lares domésticos e percebessem todo o seu potencial, dos esportes aos cargos profissionais de sucesso. É possível vislumbrar um século de transformações do comportamento feminino através das transformações no seu vestuário, como já foi reiterado pela historiadora e pesquisadora Mary Del Priore.

A moda de cem anos aprofundou a distância entre os diferentes tipos de vestuário femininos. De um lado, uma moda de dia (cidade e esporte), sob a égide da discrição, do confortável, do „funcional‟. Do outro, uma moda de noite feérica,

realçando a sedução do feminino. A democratização da moda caminhou junto com a desunificação da aparência feminina: esta tornou-se muito mais proteiforme, menos homogênea; pôde atuar sobre mais registros, da mulher voluptuosa à mulher descontraída, da school boy à mulher profissional, da mulher esportiva à mulher sexy. A desqualificação dos signos faustosos fez o feminino entrar no ciclo do jogo das metamorfoses completas, da coabitação de suas imagens díspares, por vezes antagônicas (LIPOVETSKY, 2009, p. 88).

Esse antagonismo das identidades femininas representadas é marcante nas campanhas da marca Dolce & Gabbana e tal processo se desencadeou na "moda de cem anos", quando a mulher descobriu o vestuário esportivo, passou a vestir-se de formas mais "leves". O esporte contribuiu para a redução das peças do vestuário feminino; as roupas tornaram-se mais curtas, mais leves e passaram, progressivamente, a exibir mais o corpo sem roupa e a consequente valorização de suas formas.

Em seguida, surgiu a "Moda Aberta", onde os ditames tão estabelecidos pela moda entraram em um processo de "reconfiguração" e posicionaram-se diante dos consumidores, de forma menos agressiva, valorizando a liberdade dos indivíduos e a "livre" (embora não tão livre) escolha. “O que caracteriza a moda aberta é a autonomização do público em relação à idéia de tendência, a queda do poder de imposição dos modelos prestigiosos” (LIPOVETSKY, 2009, p. 165). O jeans surgiu em meio a essas transformações e foi outra peça do vestuário que transformou o comportamento feminino, quando agregou sensualidade aos corpos que os vestiam, a praticidade e o conforto.

As características que marcaram a "Moda Aberta”, descrita por Lipovetsky (2009), foram a pretensão da sedução nas sociedades e a crescente "psicologização" dos produtos, ou seja, as pessoas compram cada vez mais para assumir identidades, gerando satisfações pessoais em agregar determinados itens em suas vidas, afinal, eles poderiam radicalizar o seu "estilo de ser".

Nos dias atuais se vive a "moda consumada", descrita por Lipovetsky (2009) como o período onde a socialização da escolha pela imagem é marcada pelo efêmero, pela sedução e pela diferenciação marginal. A atual sociedade prioriza, paulatinamente, a expansão das suas necessidades, marcadas pela velocidade da obsolescência, em meio à sedução passageira e à frequente diversificação das coisas. O fator preponderante em tais sociedades é a distinção social, a elevada necessidade que os indivíduos possuem de distinguir-se, no entanto, para si. A sociedade contemporânea é permeada pelo hedonismo, narcisismo e a constante valorização de si, da sua autossatisfação. Mais que vestir-se para os outros, os indivíduos pretendem se agradar e, somente assim, poderão conseguir a valoração social almejada. É nesse "mote" que as marcas têm trabalhado, há anos, as vendas de produtos para

o público exclusivamente feminino. As marcas reiteram essa "liberdade" alcançada pela mulher, mostrando que ela é "capaz", ela deve se "amar", se "cuidar", se "valorizar" e não deixar, em nenhuma hipótese, de comprar, pois, dessa forma, garante sua satisfação.

Após compreender a relação entre a representação e a construção de um habitus vinculado às imagens que permearam a publicidade da marca Dolce & Gabbana, na década de 1990, percebemos a intensidade com que a mulher vem sendo representada nas imagens na contemporaneidade. Estudar as fotografias e suas complexidades (ainda que sujeitas à lógica do consumo na publicidade) é sempre um desafio a ser seguido e, ao estabelecer uma parceria com a representação da mulher, agregamos toda uma história de luta e desafio, de transformações e transgressões nas imagens que permeiam o universo artístico – da pintura a óleo, à fotografia para fins artísticos ou publicitários. Estabelecer uma relação entre essas diferentes mulheres e compreender suas nuanças e facetas tornaram-se questões imprescindíveis.