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1.4 Itinerário até o “Mundo do Texto”

1.4.2 A efetuação do discurso como obra estruturada

114 Ibidem. 115 Idem, p. 48-49. 116 Cf. RICOEUR, 1977, p. 49.

61 Segundo Ricoeur, a noção de obra possui três traços distintos: 1) Composição ou totalidade finita e fechada; 2) Codificação ou gênero literário; 3) Configuração única ou estilo. Acerca desses três traços distintos, ele diz:

Em primeiro lugar, uma obra é uma seqüência mais longa que a frase, e que suscita um problema novo de compreensão, relativo à totalidade finita e fechada constituída pela obra enquanto tal. Em seguida, a obra é submetida a uma forma de codificação que se aplica à própria composição e faz com que o discurso seja um relato, um poema, um ensaio, etc. [Sic!] É essa codificação que é conhecida pelo nome de gênero literário. Enfim, uma obra recebe uma configuração única, que a assimila a um indivíduo e que se chama de estilo. Composição, pertença a um gênero, estilo individual caracterizam o discurso como obra.117

De acordo com Ricoeur, a própria palavra obra expressa a natureza desses três traços distintos. Tais traços são categorias da produção e do trabalho. Ou seja, impor uma forma à matéria, submeter a produção a gêneros e produzir um indivíduo são traços distintos manifestos pela palavra obra. Logo, conforme Ricoeur, o discurso se torna o objeto de uma práxis e de uma techné. Mais ainda, tanto o trabalho do espírito quanto o trabalho manual tornam-se a estrutura principal da prática, pois correspondem à atividade prática objetivando-se em obras.118

Assim sendo, para Ricoeur, a obra literária é o resultado de um trabalho que organiza a linguagem. Isso porque, ao trabalhar o discurso, o homem opera a determinação prática de uma categoria de indivíduos denominada obras de discurso. É nesse ponto que a noção de significação recebe uma nova acepção, a de ser transferida para a obra individual. Então, constata-se um problema de interpretação das obras, irredutível à simples inteligência das frases isoladamente. Sobre isso, Ricoeur afirma:

O fato de estilo ressalta a escala do fenômeno da obra como significante, globalmente enquanto obra. Assim, o problema da literatura vem inscrever-se no interior de uma estilística geral (...) “Procurar as mais gerais condições de inserção das estruturas numa prática individual, esta seria a tarefa de uma estilística” (...).119 117 RICOEUR, 1977, p. 49. 118 Cf. RICOEUR, 1977, p. 49-50. 119 RICOEUR, 1977, p. 50.

62 Após relembrar o paradoxo do evento e do sentido, isto é, de que o discurso é efetuado como evento, no entanto, compreendido como sentido, Ricoeur relaciona a noção de obra com tal paradoxo. Segundo ele, ao introduzir na dimensão do discurso categorias próprias à ordem da produção e do trabalho, a noção de obra aparece como uma mediação prática entre a irracionalidade do evento e a racionalidade do sentido. Conseqüentemente, o evento é a própria estilização. De acordo com Ricoeur, essa estilização surge no seio de uma experiência já estruturada, mas comportando aberturas, possibilidades de jogo e indeterminações. Portanto, “apreender uma obra como evento é captar a relação entre a situação e o projeto no processo de reestruturação.”120.

Desenvolvendo um pouco mais essa idéia, Ricoeur pondera que a obra de estilização toma a forma de um acordo. Tal acordo se dá entre uma situação anterior desfeita e uma conduta que reorganiza os resíduos deixados. Aqui, Ricoeur reitera que o paradoxo do evento fugido, e do sentido identificável e repetível encontra uma mediação na noção de obra, pois o estilo acumula tanto o evento quanto o significado. Ele surge temporalmente como um indivíduo único. Acerca disso, Ricoeur diz:

O estilo é a promoção de um parti pris [pré-juízo ou pré-conceito] legível numa obra que, por sua singularidade, ilustra e enaltece o caráter acontecimental do discurso. Mas esse acontecimento não deve ser não deve ser procurado alhures, mas na forma mesma da obra. Se o indivíduo é inapreensível teoricamente, pode ser reconhecido como a singularidade de um processo, de uma construção, em resposta a uma situação determinada.121

Logo, conforme Ricoeur, quando o discurso se torna uma obra, o sujeito de discurso recebe um novo estatuto. Ele atenta para o fato de que a chave desse novo estatuto encontra-se do lado das categorias da produção do trabalho. Assim, a idéia de autor, que qualifica a de sujeito de discurso, aparece como um correlato da individualidade da obra. Com o intuito de explicitar melhor o que está dizendo, Ricoeur passa à idéia de estruturação. Para ele, até mesmo a construção de um

120

RICOEUR, 1977, p. 51. 121

63 modelo abstrato dos fenômenos, que faz parte do processo de estruturação, traz um nome próprio. Isso porque a estruturação necessariamente apresenta o escolhido, em detrimento do outro. Assim sendo, Ricoeur considera que o estilo é um trabalho que individualiza e que designa seu autor. Sobre isso ele afirma:

Assim, o termo autor pertence à estilística. Autor diz mais que locutor: é o artesão em obra de linguagem. Ao mesmo tempo, porém, a categoria do autor é uma categoria da interpretação, no sentido em que é contemporânea da significação da obra como um todo. A configuração singular da obra e a configuração singular do autor são estritamente correlativas. O homem se individua produzindo obras individuais. A assinatura é a marca dessa relação.122

Porém, Ricoeur pondera que a conseqüência mais importante da introdução da noção de obra deve-se à idéia de composição. Pela composição da obra de discurso evidenciam-se os caracteres de organização e de estrutura. São eles que permitem estender ao próprio discurso os métodos que, num primeiro momento, foram aplicados às entidades da linguagem mais curtas que a frase, em fonologia e em semântica. Nesse ponto, Ricoeur demonstra o seguinte questionamento:

A objetivação do discurso na obra e o caráter estrutural da composição, a que se acrescentará o distanciamento pela escrita, leva-nos a questionar por completo a oposição recebida de Dilthey entre “compreender” e “explicar”.123

Segundo Ricoeur, tal questionamento inaugura uma nova época da hermenêutica, caracterizada pelo sucesso da análise estrutural. Nessa nova época da hermenêutica, a explicação é o caminho obrigatório da compreensão. Aqui Ricoeur atenta para um fato importante:

A objetivação do discurso, numa obra estruturada, não suprime o traço fundamental e primeiro do discurso, a saber, que o é constituído por um conjunto de frases onde alguém diz algo a alguém a propósito de alguma coisa. A hermenêutica, como vimos, permanece a arte de discernir o discurso na obra. Mas este discurso não se dá alhures: ele se verifica nas estruturas da obra e por elas. Conseqüentemente, a interpretação é a réplica desse

122

RICOEUR, 1977, p. 52. 123

64 distanciamento fundamental constituído pela objetivação do homem em suas obras de discurso.124

Com essa definição de interpretação, Ricoeur encerra sua exposição sobre a efetuação do discurso como obra estruturada e segue seu itinerário em direção ao “Mundo do Texto”. A terceira parada acontece na relação da fala com a escrita no discurso e nas obras de discurso.

1.4.3 A relação da fala com a escrita no discurso e nas obras de