• Nenhum resultado encontrado

1.3 A tarefa da hermenêutica

1.3.1 Das hermenêuticas regionais à hermenêutica geral

1.3.1.2 F. Schleiermacher

Para Ricoeur, o movimento de desregionalização começa com o esforço de encontrar uma questão comum na interpretação dos textos diferentes. Ele considera que o primeiro a empreender tal esforço foi Schleiermacher. Segundo Ricoeur, antes de Schleiermacher, havia duas tendências na hermenêutica. A primeira tendência é caracterizada pela filologia dos textos clássicos (especialmente os da antiguidade greco-latina). A segunda tendência é caracterizada pela exegese dos textos sagrados (especialmente os do Antigo Testamento e os do Novo Testamento). É válido ressaltar que, em cada uma das tendências, o trabalho de interpretação varia conforme a diversidade dos textos.41

Assim sendo, de acordo com Ricoeur, a hermenêutica geral exige uma elevação acima das aplicações particulares e um discernimento das operações comuns às duas tendências da hermenêutica anteriores a Schleiermacher. Contudo, para tal, é necessária também uma elevação acima das particularidades

40

Ibidem. 41

35 das regras, das receitas, entre as quais se dilui a arte de compreender. Então, conforme Ricoeur, a “hermenêutica nasceu desse esforço para se elevar a exegese e a filologia ao nível de uma Kunstlehre, vale dizer, de uma “tecnologia” que não se limita mais a uma simples coleção de operações desarticuladas.”42. Ou seja, a hermenêutica se origina, de fato, com a subordinação das regras particulares da filologia e da exegese à problemática geral do compreender.43

Conseqüentemente, para Ricoeur, essa subordinação constitui uma reviravolta análoga à operada pela filosofia kantiana com referência às ciências da natureza. Portanto, ele conclui que o kantismo constitui o horizonte filosófico mais próximo da hermenêutica. Segundo Ricoeur:

É compreensível que o clima kantiano tenha sido adequado à formação do projeto de referir as regras da interpretação, não à diversidade dos textos e das coisas ditas nesses textos, mas à operação central que unifica a diversidade da interpretação. Se Schleiermacher não está pessoalmente consciente de operar na ordem exegética e filológica o tipo de revolução copérnica operada por Kant na ordem da filosofia da natureza, Dilthey estará perfeitamente consciente disso, no clima neo-kantiano do fim do século XIX.44

Entretanto, de acordo com Ricoeur, antes da operação dessa revolução copérnica, é necessária uma extensão ao pensamento de Schleiermacher. Essa extensão consiste na inclusão das ciências filológicas e exegéticas no ceio das ciências históricas. Apenas nessa inclusão a hermenêutica aparece como uma resposta global à lacuna do kantismo. Mais do que preencher a lacuna do kantismo, essa inclusão revoluciona profundamente a noção de sujeito.45

Conforme Ricoeur, o kantismo consegue somente evidenciar um espírito impessoal, portador das condições de possibilidade dos juízos universais. No entanto, a hermenêutica acrescenta algo ao kantismo. Mas esse algo que ela acrescenta é recebido da filosofia romântica. O que a hermenêutica acrescenta ao kantismo é a convicção de que o espírito é o inconsciente criador trabalhando em individualidades geniais. Logo, simultaneamente, o programa hermenêutico de 42 RICOEUR, 1977, p. 20. 43 Cf. RICOEUR, 1977, p. 20. 44 RICOEUR, 1977, p. 20. 45 Cf. RICOEUR, 1977, p. 20-21.

36 Schleiermacher era portador de uma marca dupla: romântica e crítica. Acerca dessa marca dupla, Ricoeur afirma:

Romântica por seu apelo a uma relação viva com o processo de criação e crítica por seu desejo de elaborar regras universalmente válidas da compreensão. Talvez, toda hermenêutica fique sempre marcada por essa dupla filiação romântica e crítica, crítica e romântica. Crítica é o propósito de lutar contra a não-compreensão em nome do famoso adágio: “há hermenêutica, onde houver não-compreensão”(...); romântica é o intuito de “compreender um autor tão bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se compreendeu”.46

Assim, Ricoeur atenta para o fato de Schleiermacher expressar, ao mesmo tempo, uma aporia e um primeiro esboço. Na compreensão de Ricoeur, Schleiermacher se defrontou com o problema da relação entre duas formas de interpretação: a interpretação gramatical e a interpretação técnica. A interpretação gramatical apóia-se nos caracteres do discurso que são comuns a uma cultura. A interpretação técnica dirige-se à singularidade, até mesmo à genialidade, da mensagem do escritor. Porém, se as duas interpretações possuem direitos iguais, não podem ser praticadas ao mesmo tempo, pois uma exclui a outra. Aprofundando o pensamento de Schleiermacher sobre interpretação gramatical e interpretação técnica, Ricoeur diz que:

(...) considerar a língua comum é esquecer o escritor, compreender um autor singular é esquecer sua língua que é apenas atravessada. Ou percebemos aquilo que é comum, ou percebemos o que é próprio. A primeira interpretação [gramatical] é chamada de objetiva, pois versa sobre os caracteres lingüísticos distintos do autor, mas também negativa, pois indica simplesmente os limites da compreensão; seu valor crítico refere-se apenas aos erros concernentes ao sentido das palavras. A segunda interpretação é chamada de técnica, sem dúvida por causa do projeto de uma Kunstlehre, de uma tecnologia.47

Para Ricoeur, é na interpretação técnica que se realiza o projeto mesmo de uma hermenêutica. Trata-se de atingir a subjetividade daquele que fala, ficando a língua esquecida. Assim sendo, a linguagem torna-se o órgão a serviço

46

RICOEUR, 1977, p. 21. 47

37 da individualidade. Essa interpretação é positiva, pois atinge o ato de pensamento que produz o discurso.48

Além de a interpretação gramatical excluir a interpretação técnica, segundo Ricoeur, cada uma delas exige habilidades distintas. Isso pode ser constatado pelos excessos de ambas. Por um lado, o excesso da interpretação gramatical gera o pedantismo. Por outro lado, o excesso da interpretação técnica gera a nebulosidade.49

De acordo com Ricoeur, apenas nos últimos escritos de Schleiermacher a interpretação técnica ganha um primado sobre a interpretação gramatical e o caráter adivinhatório da interpretação enfatiza seu caráter psicológico. Ricoeur esclarece que nesses últimos escritos de Schleiermacher a expressão “interpretação psicológica” substitui a expressão “interpretação técnica”. Todavia, é importante deixar claro que a interpretação psicológica jamais se limita a uma afinidade com o autor. Antes, ela implica motivos críticos na atividade de comparação, pois uma individualidade só pode ser apreendida por comparação e por contraste.50

Conforme Ricoeur, a interpretação psicológica de Schleiermacher também comporta elementos técnicos e discursivos. Isso porque, como fora dito, uma individualidade jamais pode ser apreendida diretamente, contudo, apenas sua diferença com relação à outra e a si mesma. Então, Ricoeur constata que:

Complica-se (...) a dificuldade de se demarcar as duas hermenêuticas pela superposição, ao primeiro par de opostos, o gramatical e o técnico, de um segundo par de opostos, a adivinhação e a comparação.51

Para Ricoeur, essa dificuldade só pode ser superada se duas atitudes forem tomadas. A primeira atitude consiste em elucidar a relação da obra com a subjetividade do autor. A segunda atitude consiste em, no ato da interpretação,

48 Cf. RICOEUR, 1977, p. 22. 49 Ibidem. 50 Ibidem. 51 RICOEUR, 1977, p. 22.

38 deslocar a ênfase da busca patética das subjetividades subterrâneas em direção ao sentido e à referência da própria obra.52

Entretanto, antes de desenvolver essas duas atitudes, Ricoeur considera necessário levar adiante a aporia central da hermenêutica, que se expressa na dissociação entre explicar e compreender. Isso ele o fará considerando a aplicação decisiva pela qual Dilthey a fez passar subordinando a problemática filológica e exegética à problemática histórica. Ricoeur diz que é “essa ampliação, no sentido de uma maior universidade [chamada anteriormente de revolução copérnica], que prepara o deslocamento da epistemologia em direção à ontologia, no sentido de uma maior radicalidade”53.

Uma vez apresentado o pensamento de Schleiermacher, através do qual se inicia o processo de desregionalização, Ricoeur segue em sua argumentação expondo o pensamento de Dilthey, através do qual a desregionalização será preparada para ser conduzida à radicalização, que consiste no deslocamento da epistemologia em direção à ontologia.